Como Ofelia Fernández virou a deputada mais jovem da América Latina

Ela é jovem, descolada, feminista, defensora da legalização do aborto e militante de um movimento popular. Ofelia Fernández não lembra o padrão de pessoas que costumam ocupar cargos eletivos e espaços de decisão na política institucional. Mas, a partir de 10 de dezembro, ela assume como deputada de Buenos Aires, capital da Argentina. Eleita em outubro, a garota de 19 anos votou para presidente pela primeira vez no mesmo pleito em que foi eleita a legisladora mais jovem da América Latina.

Ofelia Fernandez

Em maio de 2018, Ofelia era uma líder estudantil que tinha acabado de completar 18 anos quando foi convidada a apresentar seus argumentos a favor da legalização do aborto na Câmara de Deputados da Argentina. Na ocasião, seu discurso chamou a atenção pela contundência e pela articulação de ideias em um espaço que não costuma ser ocupado por jovens combativas. O projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez foi aprovado pela Câmara em junho daquele ano, mas acabou rejeitado pelo Senado do país dois meses depois.

Um ano depois daquele discurso, Ofelia lançava sua pré-candidatura. “Minha plataforma tem eixos fundamentais que enfrentam algum fator de resistência porque todos são uma novidade para a política tradicional, apesar de serem questões que já aparecem nas ruas e na agenda de mobilizações da juventude”, explica a deputada eleita em entrevista a Universa.

“O primeiro é, sem dúvida, a agenda feminista e o acesso à interrupção da gravidez nos termos que já estão previstos pela lei atual.” Desde 1921, o aborto na Argentina não é punível nos casos previstos pelo artigo 86 do Código Penal: quando a gravidez representa risco de morte para a mãe e esse perigo não pode ser evitado por outros meios e quando é resultado de estupro.

Ofelia também destaca a agenda ambiental e o acesso à educação de qualidade como pautas que pretende defender em seu mandato. No legislativo portenho, a jovem integrará o bloco da Frente de Todos – a mesma coligação do presidente eleito Alberto Fernández e da ex-presidente, atual senadora e futura vice-presidente Cristina Kirchner.

Como membro de uma força minoritária na casa – em contraponto ao partido do atual presidente, o direitista Mauricio Macri, que detém a maioria –, a deputada eleita admite que tem poucas chances de levar adiante o debate legislativo sobre as pautas que defende. “Não sou nenhuma fada-madrinha dessas reivindicações”, diz. “Não vou lá resolver tudo magicamente de maneira individual. O que me dá o amparo para pensar em transformações, especialmente nas que incomodam o poder e disputam interesses, é a existência de um movimento massivo, tenaz e que vai estar presente para apoiá-las.”

Da escola às ruas

Capacidade de mobilização é o que não falta a Ofelia. Quando era estudante do ensino médio, liderou mais de uma ocupação do colégio Carlos Pellegrini, um dos mais tradicionais da capital argentina, para reivindicar melhorias na educação pública. Entre 2016 e 2017, quando era presidente do centro acadêmico, começou a ganhar notoriedade ao conceder entrevistas a jornalistas homens e de meia-idade. Quando a tratavam com certa indulgência, terminavam por ajudá-la a construir argumentos para a necessidade de maior participação de jovens na política institucional.

Em uma palestra na série de conferências Ted Talks, feita em setembro de 2018, em Montevidéu, Ofelia mostra um vídeo de uma dessas entrevistas. O trecho mostra como o jornalista Carlos Monti, nascido na década de 1950, chama a então líder estudantil de “chiquita” (algo como mocinha, em tradução livre). Ofelia então responde: “Não me chame de mocinha”, ao vivo, para todo o país.

No Encontro Nacional de Mulheres – evento que reuniu milhares de feministas de toda a Argentina pelo 34º ano seguido –, um discurso de Ofelia bloqueou vários quarteirões da cidade de La Plata. Ovacionada por uma multidão, a então candidata à deputada afirmou que a luta pela legalização do aborto é pedagógica. “Com essa luta, aprendemos que os direitos se conquistam, não se mendigam. Aprendemos que temos direito a decidir como, quando e se queremos ser mães. Aprendemos também a desarticular todos os imperativos de gênero e a colocar sobre a mesa todo um sistema de violência.”
Mais adiante, Ofelia continua: “Aprendemos que o homenzinho cis e pedante não é a única forma de liderança possível porque, evidentemente, não seria capaz de representar essa reivindicação. E, nessa busca, aprendemos que também podemos ter voz própria”.

Na opinião da deputada eleita, não é somente o fato de ser mulher e jovem que lhe gera uma oposição tão forte quanto o movimento que a apoia. “O que incomoda de verdade é ser mulher, jovem e representante de uma juventude organizada e irreverente em um espaço político do campo nacional e popular.”

Aprendendo com Cristina

A jovem é militante também da organização Mala Junta, um espaço feminista que forma parte da Frente Pátria Grande, um dos movimentos políticos que integra a unidade de setores progressistas que disputaram as eleições de 2019 sob o guarda-chuva da Frente de Todos. Assim como a mulher que ocupou todos os espaços nacionais eletivos na Argentina – Cristina Kirchner foi deputada federal, deputada constituinte, presidente, senadora e, em breve, será vice-presidente –, Ofelia evita responder os ataques que recebe por motivos de gênero.

“O pouco tempo que nos permitem usar para debater política tentamos usar para falar de ideias”, resume. “Não tive a possibilidade de falar disso especificamente com Cristina Kirchner, mas, de maneira indireta, aprendi com ela a derrubar cada uma das barreiras que nos impõem por sermos mulheres.”

Atenta aos processos políticos da América Latina, Ofelia denuncia as crises nos países da região. Para ela, o movimento feminista tem um caráter internacionalista porque aborda questões que atravessam as fronteiras. “Uso muito o exemplo do Brasil quando falo que querem despolitizar o feminismo”, diz.

Ela vê em Marielle Franco (PSOL), vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 2018, “uma bússola para todas nós na região”. E saúda os movimentos contra o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL) em plenas eleições do ano passado. “Quando houve as marchas do Ele Não, muitos se apressaram em dizer que a mobilizações tinham ajudado Jair Bolsonaro a se eleger. Que louco, não? Aquelas que se mobilizam com força são as culpadas da derrota, no fim das contas”, diz Ofelia.

“Esse tipo de comentário serve para tentar domesticar o movimento feminista, para dizer ‘não tomem a dianteira estratégica, companheiras. Vocês não servem para isso’. Temos aí uma disputa em nível continental para ocupar esses espaços e entender que somos valiosas na hora de desenvolver estratégias políticas”, avalia.

Apesar da presença magnética que provoca diversos pedidos de selfies – respondidos por Ofelia com generosidade—, a jovem defende que o movimento não deve despertar ternura. “O que temos que fazer é amedrontar. Quando tentam cooptar o feminismo para uma agenda liberal, transformá-lo no feminismo do pequeno direito individual, da privilegiada, temos de pensar que somos um movimento político com estratégias para conquistar lugares de decisão. E fazer isso de maneira coletiva, solidária e organizada.”

É com essa combatividade que Ofelia acredita que os movimentos feministas são capazes de reverter o avanço de forças políticas que se opõem aos direitos conquistados pelas chamadas minorias – e o Brasil está no radar da futura deputada. “Impressiona como a questão da ideologia de gênero foi central na campanha de Jair Bolsonaro. Se ele nos trata como algo tão grande, não podemos nos diminuir”, opina.

Segundo Ofelia, “a demonização do feminismo é o caminho mais fácil para esse tipo de liderança porque, ao nos desqualificar, ele se exime de ter que nos enfrentar em um debate. É mais fácil nos interditar. Acredito que o movimento feminista no Brasil é hoje a grande luz no fim do túnel.”