Bolsonaro foi alvo de 37 denúncias na ONU; imagem do País se deteriora

O governo Jair Bolsonaro foi alvo de ao menos 37 denúncias na ONU por parte de entidades estrangeiras e brasileiras, além de ações lideradas por deputados e mesmo pela OAB. A informação é do jornalista Jamil Chade, colunista do UOL. Em meio às comemorações do Dia Mundial dos Direitos Humanos, nesta terça-feira, a constatação de organizações e diplomatas é de que o Brasil vive seu pior momento internacional em termos de direitos humanos desde o restabelecimento da democracia, em 1985.

Marielle

Há poucos meses, numa reunião entre governos e ONGs, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, qualificou o Brasil de “exemplo e inspiração” no que se refere aos direitos humanos. Mas, nas correspondências sigilosas e nos bastidores das entidades internacionais, essa não é a realidade que se constata.

Entre os relatores da ONU, 12 cartas sigilosas foram enviadas ao governo brasileiro ao longo do ano para se queixar de violações cometidas pelo Estado e cobrando respostas, inclusive sobre ameaças sofridas por líderes indígenas, ameaças contra a liberdade de imprensa e a apuração do assassinato de Marielle Franco. Nos textos, podem-se ler termos como “profunda preocupação” ou “alarmados” em relação às medidas adotadas pelo governo, além de pedidos para que algumas das iniciativas sejam suspensas.

Além das cartas enviadas pelos relatores das Nações Unidas, a entidade já vive uma rotina diferente em relação ao Brasil. Escritórios da ONU em Genebra passaram a ver uma frequente chegada de documentos e denúncias formalizadas contra o Estado brasileiro. A onda foi interpretada como sinal de um profundo mal-estar no País e da suspeita de que instituições nacionais não estão sendo capazes de lidar com o desmonte do sistema de direitos humanos.

Diplomatas mais experientes relatam que o cenário de ataques internacionais ao Brasil só se assemelha aos anos do regime militar (1964-1985), quando a situação do País também entrou na agenda da ONU de maneira constante. Também houve denúncias sob os governos FHC, Lula, Dilma – as mesmas ONGs que hoje atacam o governo Bolsonaro recorreram aos organismos internacionais contra aquelas gestões. Mas, agora, a dimensão dos ataques e a frequência dos casos se multiplicou de forma inédita.

A situação das prisões, a violência policial, o fechamento de conselhos, o desmonte de mecanismos de combate à tortura, o meio ambiente, as barragens, a condição dos indígenas e o comportamento de Bolsonaro sobre o golpe de 1964 foram apenas alguns dos temas denunciados diante das entidades internacionais desde janeiro de 2019.

Deterioração de imagem e credibilidade

Ainda que a ONU não tenha meios para forçar o Estado brasileiro a modificar seu comportamento, a enxurrada inédita de denúncias criou um constrangimento para o governo. Em dezenas de reuniões ao longo do ano, o Brasil passou a ter de se defender, criando um esquema entre diplomatas para que se revezem nos encontros para ler declarações elaboradas em Brasília sobre os diferentes temas sob ataque.

Além disso, recomendações dos peritos põem pressão sobre o governo e aprofundam o processo de deterioração da imagem do País na comunidade internacional. Ao não cumprir uma recomendação da ONU, o Brasil ainda enfraquece sua posição e afeta sua credibilidade no que se refere a assuntos relacionados a direitos humanos.

Apenas a Conectas fez 14 denúncias em eventos relacionados ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. A entidade também apresentou seis apelos urgentes, em cartas para diferentes organismos internacionais, além de já planejar outras três denúncias ainda no mês de dezembro.

A Justiça Global liderou mais 12 apelos urgentes para a ONU, ao lado de organismos nacionais e internacionais. Entre as denúncias está o desmantelamento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o caso da intervenção e censura no Conselho Nacional de Direitos Humanos, as retaliações contra a Subprocuradora-Geral da República Deborah Duprat e casos de violência policial.

Um caso ainda mais problemático para o país é o que foi apresentado por parte de advogados e da Comissão Arns perante o Tribunal Penal Internacional, acusando o governo de “incitar o genocídio e promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas do Brasil”. Ao longo do ano, diversos grupos indígenas viajaram até a ONU para apresentar queixas.

Um deles foi o povo Xavante, que entregou um dossiê ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial. O grupo denunciou o “desmonte” da Funai e pediu que obras de estradas planejadas para suas terras sejam suspensas até que consultas possam ser realizadas.

Em novembro, uma delegação composta por vários povos indígenas brasileiros ainda entregou dados de uma nova denúncia às Nações Unidas. Já nesta semana, a ONU e a OEA se uniram em lançar um apelo ao governo para que as mortes das lideranças indígenas Firmino Praxede Guajajara, Raimundo Guajajara e Paulino Guajajara sejam alvo de investigações imparciais.

Organizações internacionais da França e Suíça ainda denunciaram a Ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, por demitir a coordenadora geral do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Caroline Dias dos Reis. Para o Observatório para a Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos, o ato “constitui mais um passo no retrocesso dos direitos humanos no país”.

Entre as atividades realizadas pelo Conselho estão o monitoramento das políticas públicas de direitos humanos, a elaboração de propostas legislativas, a articulação com entidades públicas e privadas, como os sistemas internacionais e regionais de direitos humanos. Parte das queixas recebidas pela ONU também veio de parlamentares. Um grupo de deputados apresentou denúncia sobre torturas em presídios do Pará.

Ditadura

Já a OAB e Instituto Vladimir Herzog se uniram para denunciar o comportamento do governo brasileiro em relação à insistência do presidente Jair Bolsonaro de negar a existência de um golpe de Estado em 1964. As duas entidades apresentaram aos relatores internacionais dados ligando apoio do atual chefe de Estado à ditadura e seu trabalho de desmonte de estruturas de memória, verdade e justiça. Diversos ativistas também viajaram até a ONU para apresentar suas denúncias. Uma delas foi Mônica Benício, companheira de Marielle Franco.

Para especialistas, a ação internacional contra o Brasil é considerada fundamental. “Bolsonaro e seu governo têm recuado de propostas nefastas quando há reação”, disse Maria Hermínia Tavares de Almeida, pesquisadora do Cebrap e membro da Comissão Arns. “Fazer pressão para que recue de iniciativas danosas para o país e para a maioria da população é sempre bom. Esse é um presidente de inclinação claramente autoritária que governa uma democracia. Pressões internas e externas são necessárias para mantê-lo na linha.”

Apesar dos ataques, o Brasil conseguiu votos suficientes para renovar seu mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Para isso, porém, o Itamaraty barganhou uma troca de apoios, em gestos políticos que pouca relação tinham com a situação dos direitos humanos. Mesmo governos que registraram tensões com o Brasil acabaram votando no País, depois que Brasília negociou apoios recíprocos em outras entidades. Com a França, o governo Bolsonaro prometeu apoiar um candidato de Paris para um comitê das Nações Unidas em troca do voto para o Conselho de Direitos Humanos.

Em seu comunicado de imprensa, no momento da eleição, o Itamaraty insistiu que a votação era um sinal do “sólido reconhecimento internacional das credenciais do Brasil em matéria de promoção e proteção dos direitos humanos”. Não era. O voto refletiu apenas a barganha política que se fez nos bastidores e que também garantiu a eleição de violadores de direitos humanos como Líbia, Sudão ou Mauritânia.