David Inca: “na Bolívia há uma agressão cruel aos direitos humanos”

Membro da Assembleia Permanente de Direitos Humanos em El Alto, cidade boliviana onde ocorreu o massacre de Senkata em que morreram oficialmente 10 manifestantes e 30 ficaram feridos à bala, o ativista David Inca denunciou o terrorismo praticado por Jeanine Áñez. A “autoproclamada” presidenta reconhece que há, até o momento, 34 manifestantes mortos, 800 feridos e 1.500 prisioneiros.

Por Leonardo Wexell Severo*

Davi Inca - Foto: JR

Nesta entrevista exclusiva, o humanista que nos acompanhou na visita ao hospital de El Alto, alertou para “os riscos da campanha de silenciamento, perseguições e ameaças” desencadeada pelos golpistas contra jornalistas, “com o objetivo de invisibilizar as vítimas”. “Quem está conseguindo romper o cerco midiático é a imprensa internacional, pois a mídia nacional está tendo uma relação comercial, mercadológica, que informa à medida em que o veículo recebe publicidades do governo, censuras ou ameaças”, frisou.

Acompanhando a delegação argentina que se fez presente elevando a voz por justiça no país de Tupac Katari, Bartolina Sisa e Evo Morales, o humanista David Inca condenou o decreto apresentado pelo governo Áñez de desembolsar “um pagamento global e único” de pouco mais de sete mil dólares como ajuda às famílias de cada um dos falecidos. Finalmente, destacou “o papel da solidariedade internacional, que brotou com força, espontaneamente, do coração, respondendo à intensidade, ao grau da brutalidade com que seres humanos foram atacados, chegando a perder a vida”.

Como ativista boliviano, acompanhaste a delegação argentina que veio avaliar a situação dos direitos humanos após o golpe contra o presidente Evo Morales. Qual a importância desta visita?

Em primeiro lugar, é importante dizer que a delegação argentina não foi a única que veio até nós. Inicialmente, a algumas semanas, tivemos a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e, posteriormente, da audiência realizada no dia primeiro de dezembro, participaram representantes das Nações Unidas. Eu, pessoalmente, fui quem organizei, coordenei a visita da CIDH à cidade de El Alto. A princípio queriam que as vítimas baixassem até La Paz, mas houve uma decisão do povo, dos feridos, dos afetados, que seriam eles quem deveriam subir a El Alto.

Ficou expresso que era necessário realizar uma reunião sem a presença das forças da Polícia e do Exército.

Exatamente. Os corpos dos falecidos estavam na Capela São Francisco de Assis, em Senkata, na zona 25 de julho. Eles morreram no dia 19 de novembro, na parte da manhã e da tarde, e estavam sendo velados na capela. No dia 20 se realizaram as autópsias, da qual participaram o procurador geral e o procurador do departamento, e se fizeram presentes a Defensoria do Povo nacional e departamental, minha pessoa, como representante da Assembleia Permanente de Direitos Humanos de El Alto, a Igreja e uma equipe do Fórum. Não foi permitido que levassem os corpos até os ambulatórios judiciais que se encontram em La Paz. Foi feito um pedido para que subissem e assim o fizeram.

Qual foi a avaliação das autópsias?

Se chegou à conclusão que de seis dos corpos inicialmente avaliados, dois tinham impactos de bala na cabeça, dois no peito – um que perfurou o pulmão e outro que perfurou o coração -, e outros dois no ventre, no rim e no fígado. Todos morreram devido ao sangramento produzido pelas balas. A dedução é que todos morreram pela intensa perda de sangue e foram vítimas da ação de franco-atiradores. Em outubro de 2003 passou o mesmo, muitos dos mortos foram abatidos com tiros na cabeça ou no peito. Pela precisão, isso é claramente a demonstração de que houve intervenção de franco-atiradores.

Uma covardia sem limites, é fascismo…

É fascismo. Todos os cerca de 60 feridos registrados, absolutamente todos, assim o foram pelo impacto de balas, seja no pescoço, no braço, na perna, na panturrilha… Foram utilizadas armas de guerra para dispersar uma mobilização de paz. Qual seria o argumento para se utilizar armas de guerra? Se aprova um decreto supremo que viabiliza, garante, permite que os militares e policiais usem armamento de guerra sempre que se cumpram dois requisitos. O primeiro, o da legítima defesa. Se as “forças da ordem” estão sendo ameaçadas por um grupo, entre aspas terrorista, sedicioso ou de criminosos com armas de fogo, eles, por princípio de legítima defesa têm ordem de disparar. Nenhum dos mortos e feridos de El Alto foi encontrado com arma de guerra, nem de grosso, nem de pequeno calibre, nem de qualquer calibre. Portanto, não se cumpriu este requisito prévio. Mas o que disse o ministro da Defesa? Que nenhuma bala saiu das armas do Exército, que os soldados não dispararam um único tiro. Isso é mentira.

O segundo requisito proposto pelo decreto supremo é o estado de necessidade, que é quando um direito fundamental – e o primeiro direito fundamental é a vida – está sendo agredido por outros direitos. Pode ser que caso se estivesse exagerando no direito ao protesto, à marcha, que isso pudesse estar colocando em risco a vida. Mas o direito ao protesto e à manifestação não estava pondo em vida o perigo de militares que estavam com helicópteros, tanques e muito bem armados. Dificilmente quem está com paus e pedras poderia agredir com a mesma intensidade, proporcionalmente, uma força militar. Então, à luz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, houve a violação de um princípio básico, do direito de manifestantes a protestarem.

Houve o caso de um enfermeiro que denunciou que pessoas morreram sangrando porque os militares abriram fogo, inclusive contra ele, na tentativa de impedir os seus primeiros socorros.

Sim, agora este enfermeiro está na prisão e acusado dos delitos de sedição e terrorismo. A CIDH e as Nações Unidas receberam a denúncia da esposa dele e devem pedir uma medida cautelar em defesa da vida do enfermeiro. A mesma solicitação foi apresentada ao Parlasul.

Foram violados os direitos humanos deste enfermeiro, sendo aplicado o princípio de culpabilidade e não de inocência. Em menos de 48 horas lhe fizeram uma acusação e o levaram à prisão por ter socorrido feridos à bala. Essa foi a sua culpa.

Do ponto de vista dos direitos humanos, como estão agindo os meios de comunicação locais?

Aqui é preciso que sejamos pontuais. Uma coisa são os trabalhadores dos meios de comunicação e outra a mídia como instituição, que têm uma linha editorial a favor ou contra o governo. Quem sofreu neste período foram os profissionais que faziam seu trabalho, recolhiam informações, entrevistavam, gravavam, levavam diretamente ao jornal, rádio ou emissora, e o diretor de redação colocava o que convinha ao proprietário. Resulta que a maioria da mídia, no caso dos canais de televisão os mais conhecidos, teve uma posição contrária aos manifestantes e, ao se colocar contra, fez o chamado circo midiático. Não expunham, não informavam nada sobre o falecido, não mostravam como notícia o irmão que morreu, boliviana ou boliviano. Tampouco faziam a cobertura sobre o manifestante ferido que estava neste ou naquele hospital, se esqueciam totalmente.

Os manifestantes vítimas foram invisibilizados.

Completamente invisibilizados. Quem vem conseguindo romper o cerco midiático atualmente é a imprensa internacional. A mídia nacional está tendo uma relação comercial, mercadológica, que informa à medida em que o meio de comunicação recebe publicidades do governo, censuras ou ameaças. As pessoas não compreendiam o que estava acontecendo e viam os trabalhadores, os jornalistas locais, como os inimigos. As lideranças sindicais, comunitárias, os dirigentes populares, pensavam que era o profissional de imprensa quem estava fazendo a censura, e por isso os agrediam, insultavam e batiam. Aqui houve uma desproporção, com as pessoas jogando sua raiva contra o trabalhador, que estava exposto, em vez de despejá-la contra a linha editorial do veículo, contra os proprietários que estavam tentando manipular abertamente a situação. E tiraram proveito, muito proveito, enquanto seus jornalistas eram feridos.

O que viu a delegação de ativistas de direitos humanos da Argentina?

Em primeiro lugar, os companheiros comprovaram que houve tortura e, sendo assim, não cabe enviar qualquer informe ao Estado boliviano, uma vez que ele está comprometido com tal prática, mas às Nações Unidas.

Em segundo lugar, foi comprovado que houve prisões arbitrárias de menores de idade, abuso de autoridade por parte dos militares e policiais que os jogaram no cárcere sem qualquer critério ou julgamento, violando direitos humanos.

E os centros de tortura?

Os quartéis viraram centros de tortura, da mesma forma que as delegacias de polícia. No caso das companheiras, conforme denunciado, houve não só ultraje da sua dignidade como estupro.

E temos massacres.

Ocorreram dois massacres: um em Cochabamba, Sakaba, e outro em El Alto, Senkata, violando os direitos humanos, como denunciamos, em um delito de lesa-humanidade. Quando comprovamos que houve um massacre, é preciso que sejamos atendidos por um órgão judicial interno, e caso não haja justiça, é preciso que sejamos atendidos pela CIDH.

Diante do terrorismo de Estado praticado pelo governo de Jeanine Áñez, uma delegação da ONU desembarcou em La Paz com um mandato. Há uma clara fascistização do poder. O que fazer?

Me reuni com as Nações Unidas, que sempre quando se deslocam vêm com um mandato. O presidente Evo Morales já havia solicitado sua presença, antes mesmo de partir para o exílio. O primeiro mandato era para a mediação e a pacificação. A mediação para que se reunissem os setores desencontrados e depois se conseguisse a pacificação. Então as Nações Unidas pleitearam que se estivesse a Igreja também. O resultado desta primeira ação, necessariamente, teria que ser a aprovação de uma lei para uma próxima eleição com uma convocatória, Tribunais Eleitorais, com sua regulamentação. A segunda ação seria arrecadar informações e denúncias sobre o desrespeito aos direitos humanos. E então fui convocado para fazer uma apreciação, assim como tu estás fazendo para o ComunicaSul, para dar uma visão de El Alto que não seja alinhada, que não seja parcial.

Leonardo Wexell Severo, do Coletivo ComunicaSul, com David Inca (Foto JR)

E qual a tua visão?

Que houve uma sistemática violação de direitos humanos, agressões desumanas e cruéis, que jornalistas foram impedidos de difundir informação e as pessoas foram barradas de receber. Vejo que estão sendo violados os direitos dos líderes sindicais e populares, dos parlamentares, até mesmo de se pronunciar, de criticar.

E há claramente a prática de dois pesos e duas medidas.

É evidente. Quando queimam residências de governadores do Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-) não dizem que isso é vandalismo, terrorismo ou fascismo. Na prática estão agindo para perseguir, amedrontar e descabeçar quem se levanta para denunciar os atropelos.

Desta forma está agindo a OEA ao dizer que houve fraude nas eleições de 20 de outubro, desconhecendo todos os que reclamam seu justo direito frente a este golpe de Estado.

Se amanhã eu for a um meio de comunicação e disser que houve um golpe, exercendo o meu direito à livre opinião, automaticamente o ministro de Governo me acusará de sedicioso ou terrorista. Porém, se eu, David Inca, disser que o governo Evo não respeitou o voto e que por isso foi delinquente, me aplaudem. Por quê? Esse é o jogo que estão fazendo. Por isso, nós, como instituição de direitos humanos, sugerimos às organizações que não utilizem a palavra golpe de Estado para não entrarmos no jogo linguístico dos que estão agredindo os direitos humanos. Sugerimos que utilizem violação, que é muito mais amplo.

Mas é muito mais impreciso, porque estamos diante de um governo fascista.

Sim, mas o fato é que ele está nos proibindo um direito humano. Estamos tentando não cair na justificativa, no jogo, que eles querem nos empurrar para uma cela. Vivemos uma situação sui generis em que no campo interno todos os dirigentes estão sendo perseguidos e amedrontados, todos os jornalistas, todos os ativistas estão sendo ameaçados. As palavras que disseram e seguem repetindo todos os dias é sedição e terrorismo. Consolidaram o golpe de Estado à medida em que calaram quem poderia dar uma orientação contra os seus inúmeros atropelos aos direitos humanos. A população boliviana já se deu conta de que este governo quer aumentar seu prazo e que se porventura conseguisse não iria deixar ninguém tranquilo pelo exemplo que nos deixou de tratos desumanos e degradantes, de mortes, desaparições e torturas. Do dia 10 de novembro em diante, há uma mensagem clara que salta no imaginário coletivo povo, dos trabalhadores do campo e da cidade, de que se entra a direita, vai entrar matando. Foi deixada uma mensagem, a partir da prática concreta, de que a direita é o lado dos assassinos, dos torturadores e estupradores. E quem o diz não sou eu, é as Nações Unidas, a CIDH, a Anistia Internacional e a Unasul.

Neste contexto de conflitos, traições, perseguições e terror, qual o papel da solidariedade internacional?

Felizmente, a solidariedade internacional brotou com força, espontaneamente, do coração, respondendo à intensidade, ao grau da brutalidade com que seres humanos foram atacados, chegando a perder a vida. Porque se não houvesse este grau de violência, de menosprezo à vida, acredito que o apoio não teria se dado de maneira tão forte e tão ampla.

* Leonardo Wexell Severo é jornalista da Hora do Povo e integra o Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul que está cobrindo a luta do povo boliviano com o apoio das seguintes entidades: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; Diálogos do Sul; SaibaMais; 6 três comunicação; Jaya Dharma Audiovisual; Fundação Perseu; Abramo; Fundação Mauricio Grabois; CTB; CUT; Adurn-Sindicato; Apeoesp; Contee; CNTE; Sinasefe-Natal; Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos e Região; Sindsep-SP, Sinpro MG, Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região, e Professores e Técnicos da Universidade da Integração Latino-Americana (Unila).