Uma pequena história da cerveja no Brasil

Os primeiros contatos brasileiros com cerveja importada e as invenções nacionais.

Cervejaria Ritter e Filhos na Belle Époque: Imigração e mudança de gosto / Arquivo

Até meados do século 19, a cerveja era uma bebida praticamente desconhecida dos brasileiros, notórios bebedores de cachaça.

Algumas garrafas começaram a chegar na corte com mais regularidade depois da abertura dos portos, em 1808. Vinham da Inglaterra ou da Alemanha e logo conquistaram os consumidores de elite.

Com a relativa popularização do gelo pelo Rio, a cerveja passou a concorrer seriamente com a cachaça pela preferência dos consumidores ricos de bebidas alcoólicas. Tornou-se um negócio lucrativo, com a montagem de fábricas e um consumo crescente.

Para entender a mudança de gosto nos padrões mundiais de cerveja ao longo do século 19, é preciso uma pequena pausa para explicar as diferentes técnicas de produção da bebida e, em especial, a diferença entre as cervejas de baixa e alta fermentação.

As boas cervejas eram importadas. Primeiro da Inglaterra, que dominou o mercado brasileiro na primeira metade do século XIX e era grande fabricante com tradição de exportação e marcas como a Porter ou a Pale Ale. A cerveja Porter, feita em Londres, inclusive, já empregava maquinário a vapor e métodos avançados de produção na sua fabricação.

Para entender a mudança de gosto nos padrões mundiais de cerveja ao longo do século 19, é preciso uma pequena pausa para explicar as diferentes técnicas de produção da bebida e, em especial, a diferença entre as cervejas de baixa e alta fermentação.

A cerveja é uma bebida produzida a partir da fermentação de amido, na forma de cereais. Consumida desde os tempos dos sumérios, várias foram suas técnicas de fabricação e produção. Também, ao longo dos séculos, várias foram as tentativas de se fazer cerveja com diferentes cereais, como o arroz, o milho, a aveia ou a cevada, que se mostrou a mais apropriada ou cujo gosto final era melhor.

Antônio Houaiss, consumidor e estudioso da bebida, afirma que foi a partir do uso do lúpulo que a cerveja entrou na modernidade. Ele dá, inclusive, uma seqüência bastante didática dos passos básicos da fabricação da bebida nos dias de hoje.

Segundo o estudioso, são necessárias 17 etapas entre a fabricação e o consumo: “1. presença da cevada, 2. germinação da cevada, tornada malte, 3. tostação da cevada, com o que se obtém, do malte verde, o malte tostado, ou simplesmente malte, em sentido estrito, 4. moagem do malte para se obter a farinha de malte, 5. recipiente aquecido de empastagem do malte, pela adjunção de água, 6. na caldeira de filtração, filtragem da massa, para obtenção do mosto, 7. aquecimento ou ebulição do mosto, com adjunção do lúpulo, 8. esfriamento prévio e decantação do mosto, 9. centrifugação, 10. refrigeração do mosto, 11. fermentação, com adjunção do levedo, donde se obtém a chamada cerveja verde, que segue para 12. a maturação em tanques de guarda, donde sai cerveja, 13. que é filtrada, daí saindo para 14a. os barris de chope ou 14b. o engarrafamento e por fim, 15. a pasteurização […], 16. a distribuição e 17. o consumo.”

Ainda que as técnicas tenham variado ao longo do tempo, o processo de fabricação de uma cerveja caseira é bastante semelhante e muito parecida com o que deveria ocorrer nas fábricas no século 19. A alta ou baixa fermentação da cerveja acontece no começo do processo, antes da obtenção do mosto, que é alma da cerveja. Existem duas ou três fases de fermentação, com adjunção de levedo, que é obtido a partir de microorganismos (como no pão). É nessa fase de fermentação que acontece a diferenciação entre as cervejas.

As cervejas de alta fermentação são chamadas de Ales, hoje identificadas com as cervejas inglesas e irlandesas, mais escuras e com um sabor pronunciado de cereais e ésteres, produzidos durante a fermentação. Em geral, não se usa lúpulo nessas cervejas, que podem ter um aroma de fruta, com baixo teor de gás carbônico e que devem ser servidas em temperaturas mais elevadas.

Essas cervejas eram as variedades produzidas e importadas para o Brasil no século 19, já que as máquinas de refrigeração não eram comuns e são absolutamente necessárias para se produzir uma cerveja de baixa fermentação.

As cervejas de baixa fermentação, as Lagers, eram consumidas na Europa Central desde o final da Idade Média. Ainda hoje é o tipo de cerveja mais produzido pela indústria. A grande diferença entre as duas bebidas é a fermentação utilizada.

Lager, em alemão, significa “armazenar”, e esse tipo de bebida precisa de um tempo de armazenamento antes de ser consumido. Enquanto as Lagers começam seu processo de fermentação em temperaturas mais baixas, entre 7 e 12°C, as Ales precisam de temperaturas mais altas, que variam de 15 a 24°C. Outra diferença importante é que a fermentação das Ales deixam resíduos que se acumulam no topo do tanque de fermentação.

As cervejas alemãs da Boemia e da Baviera, que começaram a chegar ao Brasil em maior quantidade no final do século 19, eram do tipo Lagers. Em comparação com cervejas de alta fermentação, o resultado da bebida de baixa fermentação era uma cerveja leve, mais clara, com melhor sabor e mais bem conservada. Foi esse tipo de bebida que acabou se tornando a preferência dos consumidores no mundo no século 19, inclusive no Brasil.

A grande exportação das cervejas Lagers desde meados do século 19 foi resultado, em grande parte, da Revolução Industrial, já que esse tipo de bebida precisava do desenvolvimento de sistemas complexos de refrigeração e armazenamento.

A escala de produção também aumentou significativamente com a introdução das máquinas de vapor inglesas. De qualquer forma, com a importação do produto alemão o consumo de cerveja no Brasil só aumentou, saltando de cerca de 66.700 hectolitros em 1876 para cerca de 300.000 hectolitros, em 1900.

Mas a grande importação de cerveja alemã no Brasil durou até o final do século XIX, mais precisamente 1896, quando o governo brasileiro anunciou um aumento de quatro vezes nos impostos referentes às cerveja importadas.

A Imperial fábrica de cerveja nacional, situada na rua Matacavalos, Rio de Janeiro

Existiam outros tipos de bebidas mais ou menos derivadas da cerveja e que faziam grande sucesso na época. Era o caso da gengibirra, teoricamente, feita de gengibre, açúcar e água gaseificada (o gengibre nem sempre era adicionado às receitas).

A bebida fazia parte do rol de produtos ingleses exportados para o Brasil, ao lado da cerveja Porter. Logo foi produzida no Brasil, com grandes variações nos ingredientes. “Uma dessas bebidas, a chamada ‘caramuru’, feita de milho socado, gengibre, casca de limão e água. Outra, a gengibirra (que quando abre logo espirra), era feita de farinha de milho, gengibre, casca de limão e água, e vendida a 80 réis a garrafa ou botija louçada. Eram as bebidas de água preferidas pelas crianças”.

Câmara Cascudo dá outra receita para a gengibirra. A bebida, “popularíssima”, chamava-se ginger beer, em inglês, cerveja de gengibre. “Faziam-na no Brasil… sem gengibre. Água, açúcar, sumo de fruta, cremor tártaro, um fermento, ácido cítrico, conseguiam uma bebida leve, clara, espumante, saborosa, champanhe nacional, gabada do Amazonas ao Plata, do Rio Grande ao Pará.”

Com o tempo e a popularização, a cerveja acabou por se tornar um produto popular, indigno de figurar em mesas, almoços ou jantares mais elegantes ou refinados.

No Cozinheiro Nacional, o autor ensinava às donas de casa: “No interior do Brasil usam dar cerveja depois do doce; sendo este um costume bárbaro que peca tanto contra o gosto, como contra a higiene, posto que seu preço iguale ao do vinho, sempre é considerada como uma bebida pouco decente, e só é própria para botequins; a cerveja só deve ser tomada como refresco em dias de calor e longe das comidas”.

Joana Monteleone é editora e historiadora. Autora dos livros “Toda comida tem uma história” (Oficina Raquel, 2017) e “Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo” (Alameda Casa Editorial, 2015).

Fonte: Brasil de Fato

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