CT&I: a “operação desmonte” e seus resistentes

Luis Fernandes – professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio e da UFRJ, analisa as tentativas de desconstrução do Sistema Nacional de Ciência,Tecnologia e Inovação no governo Bolsonaro e a resistência que se formou contra esse desmonte.

O texto, explica o Nexo, é o primeiro de uma série sobre o primeiro ano de Jair Bolsonaro na Presidência – e é parte de uma parceria entre o Nexo e a Associação Brasileira de Ciência Política.

Leia a íntegra:

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Ciência, Tecnologia e Inovação: a ‘operação desmonte’ e seus resistentes

Por Luis Fernandes

Na sua primeira visita oficial aos Estados Unidos em março de 2019, em jantar na residência do embaixador do Brasil com Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump, e o escritor e ideólogo de ultra direita Olavo de Carvalho, o presidente Jair Bolsonaro definiu sua agenda de governo como um “ponto de inflexão” que teria por missão “desconstruir” e “desfazer” para abrir caminho para a construção de novos rumos para o país.

O balanço dessa agenda “revolucionária” no primeiro ano do novo governo é ambivalente. Boa parte das medidas econômicas adotadas pela equipe de Paulo Guedes deu continuidade às reformas econômicas liberalizantes iniciadas no governo Temer. É o caso da principal reforma aprovada no ano — a da Previdência — uma vez expurgado, pelo Congresso, o modelo “chileno” de capitalização proposto inicialmente pelo governo. A proposta de criação da Carteira de Trabalho “Verde-Amarela” opera nos contornos da redução de direitos e precarização das condições de trabalho sacramentadas na reforma trabalhista aprovada em 2017. De igual modo, a agenda de privatizações e concessões dá continuidade a iniciativas lançadas no governo anterior, sem ainda se desdobrar em ações de maior vulto.

Na área de Ciência, Tecnologia e Inovação (vamos usar a sigla CT&I) o balanço também é ambivalente. Mas, nesse caso, inúmeras iniciativas de desmonte do sistema nacional de CT&I, montado ao longo das últimas sete décadas no país, foram deflagradas pelo governo Bolsonaro ao longo do seu primeiro ano.

A estruturação do sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação

O sistema nacional de Ciência e Tecnologia começou a ser estruturado no Brasil após a Segunda Guerra Mundial. Seus marcos fundantes foram a criação, em 1951, do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisas) e da Capes (Campanha Nacional de Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior), posteriormente renomeada para Coordenação de Aperfeiçoamento. Em 1967, foi criada a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), com foco inicial no apoio a pré-projetos de engenharia articulados com a política nacional de desenvolvimento da época. Em 1968, foi instituído o Plano Estratégico de Desenvolvimento, que incorporava explicitamente a área de Ciência e Tecnologia como dimensão estruturante da política de desenvolvimento do país. Para viabilizar os investimentos necessários na área foi criado o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), cuja secretaria-executiva foi assumida pela Finep em 1971.

Em duas décadas, foi montado um sistema engenhoso e robusto de financiamento e apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico do país, estruturado sobre um tripé de agências de fomento federais com missões e papéis complementares: o CNPq sendo responsável, fundamentalmente, pelo apoio a projetos individuais de pesquisa, a Capes pelo apoio a programas de pós-graduação (que passaram a concentrar grande parte da atividade de pesquisa do país) e a Finep, na condição de secretaria-executiva do FNDCT, pelo apoio à infraestrutura de pesquisa das instituições e ao desenvolvimento tecnológico das empresas nacionais. O que se estruturou, desde então, foi uma política de Estado na área de ciência e tecnologia vinculada a uma visão estratégica de desenvolvimento do país, que perpassou (com adaptações) por seguidas mudanças de governo e até de regime político, como o advento do próprio regime militar em 1964 e da “Nova República” em 1985. Com base nessa política, logramos estruturar um sistema nacional de ciência e tecnologia complexo e qualificado, que se distingue até hoje por ser o mais avançado da América Latina e um dos mais avançados de todos os países em desenvolvimento.

Isso não quer dizer que essa política não tenha passado por mudanças e adaptações ao longo das sete últimas décadas. Quando a fonte de financiamento orçamentário do FNDCT secou nos anos 1990, sob impacto da crise da dívida externa da década anterior e as políticas de ajuste que se lhe seguiram, o financiamento do Fundo foi recomposto (sobretudo no segundo mandato do governo FHC) com a criação de contribuições extra-orçamentárias em distintas setores da economia para irrigar os investimentos em ciência e tecnologia nessas áreas (os chamados fundos setoriais). Já no governo Lula, a política de reversão progressiva do contingenciamento dos recursos alocados ao FNDCT permitiu o crescimento acelerado dos investimentos governamentais em ciência e tecnologia ao longo da primeira década do presente século, combinada com a implantação de um novo modelo de gestão integrada dos fundos setoriais visando concentrar investimentos em projetos e ações estruturantes do desenvolvimento nacional.

A asfixia financeira do sistema de nacional de CT&I

A retração dos investimentos governamentais em ciência, tecnologia e inovação nos anos mais recentes se iniciou ainda no segundo mandato do governo Dilma, em 2015. O processo se intensificou no governo Temer, sob o impacto da aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos em 2016 (que deixou sem limite, como se sabe, os gastos com pagamentos da dívida pública, que se mantiveram em forte expansão). Do tripé de agências federais de fomento, o CNPq e a Finep foram as mais afetadas. Conforme estudo elaborado pela Comissão de Financiamento à Pesquisa e de Política de Ciência da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), os investimentos efetuados pelo CNPq em 2018 regrediram, em valores corrigidos pelo IPCA, a patamares equivalentes aos praticados 20 anos antes, reduzidos a pouco mais da metade do que foi investido em 2014. Já os investimentos não-reembolsáveis efetuados em instituições variadas de ciência em tecnologia pela Finep em 2018 recuaram a patamares equivalentes aos de 2003, representando menos de 33% do que foi executado em 2010. Por sua vez, os dispêndios da Finep com subvenção econômica para inovação nas empresas — instrumento criada pela Lei de Inovação para estimular a inovação nas empresas nacionais — caíram a apenas 8% do que foi executado em 2010.

Por esse ângulo, os cortes nos investimentos em ciência e tecnologia efetuados pelo governo Bolsonaro ao longo de 2019 também deram continuidade à política do governo anterior, mantendo inalterado, inclusive, o Teto Constitucional dos Gastos Públicos aprovado em 2016. Os valores disponibilizados para pagamento de bolsas do CNPq em 2019 representaram apenas 65% do ano anterior. O colapso do sistema só foi evitado no final do ano por um aporte emergencial de recursos oriundos de acordo da Operação Lava Jato com a Petrobras, via Projeto de Lei do Congresso Nacional. Já o contingenciamento dos recursos do FNDCT, captados via Cide (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico) de diferentes setores, foi elevado a 86% do total arrecadado. Acresce-se a isso a suspensão das operações de equalização de taxa de juros que permitem à Finep oferecer crédito às empresas nacionais em condições mais favoráveis para projetos de inovação e/ou de pesquisa e desenvolvimento.

O formato institucional de fusão do antigo Ministério da Ciência e Tecnologia com o Ministério das Comunicações, inaugurado no governo Temer, foi mantido no governo Bolsonaro. Esse formato marginalizou e enfraqueceu a área de ciência e tecnologia no novo ministério formado. Como bem observa o já mencionado estudo da SBPC, das sete secretarias do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), só uma está destinada à ciência. Na prática, a área de comunicações predomina nas preocupações e ações do ministério. Os investimentos realizados na área de ciência e tecnologia pelo MCTIC em 2019 (pouco mais de R$ 3 bilhões) representam metade do que era investido pelo antigo Ministério da Ciência e Tecnologia em 2005.

O repúdio ao forte contingenciamento anunciado nos orçamentos do Ministério da Educação e da Capes geraram as maiores mobilizações de massa contra o governo Bolsonaro no ano de 2019, concentradas entre os meses de maio e agosto. Do ponto de vista orçamentário, as mobilizações surtiram efeito e a Capes teve o seu orçamento recomposto até o final do ano. Ainda assim, os investimentos em bolsas, auxílios à pesquisa e portal de periódicos (excluindo a parte aplicada em ensino básico) em 2019 mantiveram-se 10% abaixo do que foi executado em 2014.

A ‘operação desmonte’ da arquitetura do sistema nacional de CT&I

Se nas suas políticas econômico-orçamentárias o governo Bolsonaro aprofundou uma orientação de desinvestimento público na área de ciência e tecnologia herdada do seu antecessor, nas proposições e iniciativas referentes à arquitetura e finalidades do sistema nacional de CT&I sua agenda se aproximou bem mais do compromisso “revolucionário” externado no jantar na residência do embaixador do Brasil em Washington. Da valorização da universidade como lócus privilegiado da produção de conhecimento científico e tecnológico — possivelmente potencializado, no período do regime militar, pela formação positivista das nossas Forças Armadas —, o governo Bolsonaro elegeu as universidades públicas como alvo de uma “guerra ideológica” visto que o “marxismo cultural” (especialmente materializado na “ideologia de gênero”) dominaria o ambiente universitário nacional.

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O FOMENTO PÚBLICO DA GERAÇÃO DE CONHECIMENTO E INOVAÇÃO NACIONAIS É DIMENSÃO CRÍTICA PARA UMA POLÍTICA DE DESENVOLVIMENTO ADAPTADA E ADEQUADA AOS DESAFIOS DA SOCIEDADE DO CONHECIMENTO NO SÉCULO 21

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A nomeação do ministro Weintraub, em abril de 2019, marcou uma intensificação dessa “guerra ideológica” no MEC, sobretudo por meio das mídias sociais. As universidades públicas passaram a ser caracterizadas como “locais de balbúrdia”, que abrigariam extenso cultivo e produção de drogas e narcóticos. Os departamentos de ciências humanas e sociais foram acusados de terem se tornado “criadouros” de ideologias contrárias aos valores religiosos e tradicionais da maioria da sociedade brasileira. Em substituição à veneração quase religiosa da ciência pelo pensamento positivista de outrora, os ataques às universidades passaram a se alimentar (e a realimentar) de um anti-intelectualismo potencializado pela velocidade e superficialidade do fluxo de informações nas novas mídias, e que passou a caracterizar as “posições de autoridade do conhecimento” nas universidades e nos institutos de pesquisa como parte da “elite globalista” que havia sido derrotada nas últimas eleições (ecoando formulações e desenvolvimentos em países que viveram a ascensão de governos com perfil político-ideológico semelhante, como a Hungria e a Polônia). O próprio sistema de avaliação centralizada dos programas de pós-graduação nacionais pela Capes passou a ser alvo de questionamentos crescentes.

A ameaça que esta agenda representa para a autonomia universitária e para a pluralidade paradigmática do seu ambiente de pesquisa é evidente. A postura negacionista mantida pelo próprio presidente Bolsonaro durante meses em relação aos dados sobre a escalada das queimadas e do desmatamento na região amazônica captados por imagens de satélite do Inpe — e que resultou na demissão do seu diretor Ricardo Galvão e em grave crise diplomática com os governos europeus — compõe essa escalada de questionamento ideológico do “conhecimento” científico e tecnológico (ainda que o governo tenha voltado atrás nessa questão, depois de muita pressão interna e externa, com o envio das Forças Armadas à região amazônica para combater as queimadas e as ações de desmatamento ilegal que as alimentam).

Aliada à agenda ultraliberalizante do Ministério da Economia, a agenda da “guerra ideológica” deflagrou, ao longo de 2019, sucessivas iniciativas para desconstruir a arquitetura do sistema nacional de ciência e tecnologia vigente no país há quase sete décadas. O primeiro indicativo nesse sentido veio com a proposta governamental, no final da tramitação da Medida Provisória que definia a nova estrutura administrativa do Governo Federal, de transferir a secretaria executiva do FNDCT da Finep para a administração central do MCTIC, o que acarretaria a própria extinção da Fundação como agência nacional de fomento. A medida foi barrada na tramitação final da MP no Congresso. Como a proposta partiu do próprio MCTIC, entidade que não se caracterizou por envolvimento com a agenda da “guerra ideológica” ao longo de todo o primeiro ano de governo, é possível que seu encaminhamento refletisse mais a preocupação com a recomposição do orçamento declinante do ministério do que uma agenda de “desmonte” do sistema nacional de CT&I. Mas suas consequências seriam trágicas para o sistema.

Na sequência, o MEC lançou o programa “Future-se” com o objetivo de alterar a configuração institucional das universidades públicas e dos institutos de pesquisa. O objetivo declarado era o de dotar essas instituições de maior autonomia financeira. Mas o modelo proposto — o de gerir essas instituições por organizações sociais ligadas ao MEC por contratos de gestão — foi identificado como uma ameaça à autonomia universitária e à autonomia de pesquisa dos institutos. O modelo proposto foi rechaçado pelas comunidades das instituições-alvo, e o MEC elaborou uma nova versão do projeto para encaminhamento no início de 2020. Antes mesmo de iniciar a discussão pública sobre essa nova versão do programa, o governo editou, às vésperas do Natal, medida provisória que retira dos conselhos universitários o poder de compor a lista tríplice de candidatos a reitor, e centraliza nos reitores nomeados diretamente pelo MEC o poder de designar os diretores de unidade das universidades, acabando com os processos de consulta e/ou eleição para esses cargos.

Antes, já havia vazado a informação de que o governo tinha preparado outra medida provisória para fundir a Capes e o CNPq (na verdade, incorporar o CNPq à Capes) e extinguir a Finep (que seria absorvida pelo BNDES). Na prática, essa proposta desmontaria por completo a longeva e robusta arquitetura do sistema nacional de CT&I. A proposição gerou forte reação da comunidade científica e tecnológica, inclusive dos próprios dirigentes do MCTIC, além de um pronunciamento público contrário dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal subscrito por líderes de 18 bancadas partidárias. Diante da reação, o governo recuou da emissão imediata dessa medida provisória e montou uma comissão com os ministérios e agências envolvidos para “estudar melhor a questão”.

Por fim, o governo enviou ao Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição que extingue variados fundos públicos, entre eles o FNDCT e os fundos setoriais que passaram a irrigá-lo nas duas últimas décadas. Pela proposta do Ministro Paulo Guedes, as arrecadações que constituem os recursos desses fundos deixariam de ser investidas nas finalidades para as quais esses fundos foram criados, e seus recursos seriam usados integralmente para pagamento da dívida pública. Pelo enfoque da economia política, trata-se da transferência de recursos destinados a construir o futuro do Brasil (via investimento no desenvolvimento científico e tecnológico do país) para a remuneração de aplicações financeiras de curto prazo de natureza eminentemente especulativa. E resultará na extinção do principal instrumento de estruturação do nosso sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. Infelizmente, ainda não foi possível montar uma frente de oposição a essa medida ampla e firme o suficiente para forçar o governo a recuar, como foi feito nas demais iniciativas de desmonte relatadas.

Perspectivas e desafios

Um balanço das variadas iniciativas da “operação desmonte” da arquitetura do sistema nacional de CT&I no primeiro ano do governo Bolsonaro revela que a institucionalidade da normalidade democrática conseguiu impor limites e derrotas à agenda “revolucionária” que ele tentou implantar na área. Mas esse balanço também revela que os recuos não significam abandono da sua agenda de “desconstrução”. Representam, mais propriamente, uma pausa para reagrupar forças diante das resistências enfrentadas, visando retomar a ofensiva em seguida. O drama dessa ameaça contínua de desmonte é que as bases do desenvolvimento científico e tecnológico demandam o esforço continuado de sucessivas gerações para se estruturar e consolidar. A sua desarticulação e desconstrução, no entanto, podem ser processadas rapidamente, legando uma grave lacuna institucional quando as condições políticas para a retomada do projeto nacional de desenvolvimento forem restabelecidas.

O fomento público da geração de conhecimento e inovação nacionais é dimensão crítica para uma política de desenvolvimento adaptada e adequada aos desafios da sociedade do conhecimento no século 21. Essa é a compreensão adotada e praticada pelos países hoje mais ricos e poderosos no mundo, bem como pelos países que têm logrado estruturar exitosamente ciclos sustentados de desenvolvimento nas últimas décadas, como Coreia do Sul, China e Índia. A grandiosidade do seu êxito está reconfigurando a geopolítica e geoeconomia mundiais. Por isso, é necessário estruturar seguidas frentes de resistência contra as insistentes e recorrentes tentativas de desarticulação do nosso sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação, sabendo combinar, de forma firme e sagaz, ampla atuação institucional e forte mobilização social.

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Luis Fernandes é professor do IRI (Instituto de Relações Internacionais) da PUC-Rio e da UFRJ, e atual Coordenador da Área de Ciência Política e Relações Internacionais da Capes. Foi presidente da Finep, secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia e diretor científico da Faperj.