Cientistas fazem balanço negativo do governo Bolsonaro

Em reportagem do Jornal da Ciência, cientistas e pesquisadores analisam com pouco otimismo o cenário atual da educação, ciência e tecnologia no Brasil.

Pandemia aumentou necessidades de investimento em educação e saúde - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Sob o risco de entrar em 2020 com orçamento de 2010, a ciência e tecnologia (C&T) brasileira tem pouco a celebrar neste momento. Ao fim do primeiro ano do novo governo, o cenário é de uma piora acentuada nos recursos para a área e de iniciativas em discussão que podem conduzir a um desmonte institucional do Sistema Nacional de CT&I, como as extinções do CNPq e o FNDCT.

No Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2020), enviado pelo Executivo ao Congresso em agosto, a receita de investimentos (excluindo as despesas obrigatórias) do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) será de R$ 3,8 bilhões, bem menor que os R$ 5 bilhões deste ano

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) não terá recursos suficientes para fomento, e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) terá seu orçamento cortado em cerca de 30%. Além disso, segue o contingenciamento da quase totalidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) para pagamento da dívida pública, com sério risco de dissolução desta verba que é gerida pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Para completar, o fantasma da fusão das agências – Capes e CNPq – e a possível extinção do FNDCT, afetando profundamente a Finep.

Diante deste quadro, o Jornal da Ciência entrevistou alguns dos mais respeitados cientistas e pesquisadores sobre o que esperar do futuro.

“O Brasil não tem opção a não ser investir cada vez mais em C&T”, respondeu o neurocientista Sidarta Ribeiro. Pesquisador da memória, do sono e dos sonhos, autor de mais de noventa artigos científicos em periódicos internacionais e diretor da SBPC, Ribeiro tem manifestado publicamente a preocupação com os rumos da educação e da ciência brasileira.

Ele frisa o compromisso do presidente Jair Bolsonaro, ainda na campanha em 2018, de elevar de 1,2% para 3% do Produto Interno Bruto (PIB) o investimento em C&T, o que seria coerente com o tamanho e a riqueza do Brasil em relação aos demais países emergentes. Porém, se diz pouco otimista quanto ao futuro devido aos sinais contraditórios enviados pelo Ministério da Educação, com cortes de bolsas de estudos e ataques aos professores e estudantes.

Fábio Guedes, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal) e vice-presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) tampouco é otimista: “O que observamos é a tentativa política de esvaziamento do Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia, com cortes do orçamento e o esdrúxulo contingenciamento do FNDCT que, além de vir da iniciativa privada, está sendo desviado de sua função original.”

Economista, pesquisador e professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade Federal de Alagoas (FEAC/UFAL), Guedes alerta que os cortes orçamentários, apoiados em uma narrativa do descontrole dos gastos públicos, levam ao combate às despesas obrigatórias – especialmente saúde e educação – que repercute nos sistemas estaduais de financiamento à pesquisa, cujos orçamentos são vinculados às receitas das unidades da federação.

“A consequência de tudo isso é que nos estados que têm sistemas (de financiamento à ciência) mais robustos, as FAPs garantem seus recursos conforme o que determina a constituição, ampliando o fosso em relação aos estados que não contam com o mesmo volume de receitas”, pondera o presidente da Fapeal.

Guedes não vê muitas saídas no futuro próximo, já que a atividade econômica está fraca mesmo para os estados mais ricos, que obtêm a maior parte dos recursos com a indústria. “O que dizer daqueles que dependem do comércio, serviços e do funcionalismo público?”

Um momento de descrédito da ciência, fomentado por notícias falsas espalhadas pelas redes sociais, vem agravar a situação, comenta o professor Aldo José Gorgatti Zarbin, conselheiro da Sociedade Brasileira de Química (SBQ). “As pessoas usam o celular, comem, colocam dois tipos de combustíveis no carro e não têm noção da quantidade absurda de ciência que tem por trás do celular, da agricultura, dos combustíveis, da vestimenta, dos calçados“, analisa Zarbin. E completa: “temos que convencer a população e a classe política do tamanho do tiro no pé que corresponde a esses cortes orçamentários que prejudicam a educação e a pesquisa científica”.

Resgate histórico

Carlos Roberto Jamil Cury sugere que esse é o momento de um resgate histórico sobre o que o Brasil produziu em C&T. Filósofo de formação, professor e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e ex-vice-presidente da SBPC, Cury desenvolve estudos no campo do direito à educação e das políticas públicas nessa área. Ex-presidente da Capes (2003), ele afirma: “Acho importante retomar algumas coisas do passado, o que foi o esforço e a imensa luta para que o Brasil construísse um sistema de C&T, não foi do dia para a noite”.

Cury lembra que o Sistema Nacional de C&T é resultado de um longo processo de constituição de conhecimentos, cuja lógica era dar autonomia tecnológica ao País. Desde os primeiros pesquisadores enviados por D. João VI ao exterior, à fundação de instituições como o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB, fundado em 1838) e o Observatório Nacional (1827) até a criação das primeiras universidades no século XX, foram quase 200 anos para construir a estrutura de pesquisa que levou o País a conquistas como o desenvolvimento de vacinas, agricultura de precisão e um ‘know how’ próprio na exploração de petróleo em alto mar, entre muitos outros avanços.

Com amplo apoio de entidades como a SBPC e Academia Brasileira de Ciências (ABC), diz Cury, foram criadas as estruturas de financiamento à pesquisa científica como o CNPq e a Capes. “Houve um esforço dos pesquisadores para criar um sistema sólido de financiamento para dar sustentação institucional baseado nos institutos, universidades e agências”, comenta.

Ao mesmo tempo, Cury alerta que não houve o envolvimento das empresas no investimento em pesquisas. “Hoje isso faz falta, no momento em que o País passa a ser governado por um grupo político que propõe o recuo do Estado”.

O biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Adalberto Luís Val, observa igualmente a falta de conexão com o setor privado como um problema a ser resolvido, principalmente no que se refere à exploração da Amazônia. Val afirma que o Brasil obteve grandes avanços na pesquisa, mas ainda tem que encontrar processos eficazes de disseminação e criação de protocolos produtivos que permitam aproximar da sociedade os resultados destas pesquisas. Alguns dos mecanismos para isso são a educação e os programas de extensão que permitem decodificar e levar para o setor produtivo o que ele chama de “taxa de apropriação da informação pela sociedade”. “Os cientistas conversam com seus pares, mas se não tiverem uma taxa de apropriação maior, vão produzir um monte de ‘papers’ que não serão transformados em desenvolvimento socioeconômico”. Carlos Roberto Jamil Cury sugere que esse é o momento de um resgate histórico sobre o que o Brasil produziu em C&T. Filósofo de formação, professor e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e ex-vice-presidente da SBPC, Cury desenvolve estudos no campo do direito à educação e das políticas públicas nessa área. Ex-presidente da Capes (2003), ele afirma: “Acho importante retomar algumas coisas do passado, o que foi o esforço e a imensa luta para que o Brasil construísse um sistema de C&T, não foi do dia para a noite”.

Val diz ver com “perplexidade” a situação da ciência no Brasil hoje, com investimento pífio em pesquisa e desenvolvimento. Ele, que estuda adaptações biológicas às mudanças ambientais – tanto aquelas de origem natural como aquelas causadas pelo homem-, alerta que o País poderá perder ainda mais a corrida do desenvolvimento tecnológico no segmento.

“A biodiversidade é um patrimônio ambiental e socioeconômico”, afirma o pesquisador do Inpa. Para ele, seria importante estimular a cooperação científica com outros países para viabilizar a pesquisa, buscando simetria nos acordos com laboratórios bem estruturados.

O que é positivo

Como pontos positivos, Fábio Guedes, da Fapeal, aponta o avanço da Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), movimento organizado pela comunidade brasileira de ciência e tecnologia para atuação permanente junto aos parlamentares no Congresso Nacional, em Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, em prol do desenvolvimento científico e tecnológico. “A ICTP.br tem ganhado muito a simpatia dos parlamentares e hoje quase todos reconhecem a importância da ciência.” Para o vice-presidente do Confap, a tarefa da comunidade acadêmica e científica é aumentar a aproximação com a sociedade através da divulgação. “Agora é o momento de popularizar a ciência”, opinou.

Destacando também o sucesso da ICTP.br e lembrando a petição para manutenção do CNPq que obteve um milhão de assinaturas, Aldo Zarbin acha que a pressão da comunidade está sendo surtindo efeito. “A SBPC e a ABC estão fazendo um trabalho absolutamente fantástico, de luta permanente pela causa, junto com as demais entidades científicas – a nossa SBQ da qual sou conselheiro e outras sociedades – estamos organizados de alguma forma, a questão é sensibilizar as autoridades.”

Por Janes Rocha – Jornal da Ciência