A letargia dos capitães da indústria

O Brasil pega o caminho oposto ao da China ao encaminhar a sua economia para o rumo da política externa dos Estados Unidos. Os setores industriais brasileiros, mais uma vez, se mostram incapazes de formular uma reação à crise para a qual foram arrastados.

Em São Paulo, sempre foi comum ouvir a palavra “poderosa” antes da sigla Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, instalada em um prédio de dezesseis andares construído sob a forma de pirâmide num dos pontos mais valorizados da Avenida Paulista. A combinação da sigla com o adjetivo colou por sintetizar o poderio do baronato paulista.

Hoje, a entidade, presidida por Paulo Skaf, está desmoralizada por se lançar nos braços do presidente Jair Bolsonaro. Recentemente, o jornal Folha de S. Paulo abriu espaços para industriais que criticam a utilização da entidade como biombo político do seu presidente e fez até um editorial atacando o que chamou de “cartório industrial”.

Covil de retrógados

Em tempos passados a Fiesp também serviu a governos autoritários. O caso mais grave foi o financiamento do DOI-Codi paulista, a organização terrorista da ditadura militar no estado. Quem organizava o esquema era o histórico industrial Nadir Dias de Figueiredo, notório manipulador dos bastidores do sindicalismo patronal paulista, que elegeu todos os presidentes daquela entidade durante três décadas, até 1980.

Foi, também, um dos mais influentes arquitetos do condomínio sindical do patronato brasileiro (Fiesp/Ciesp/Sesi/Senai). Seu fiel escudeiro, um diretor do Ciesp, o empresário dinamarquês naturalizado brasileiro Albert Henning Boilesen, presidente do grupo Ultra, seria emboscado e metralhado por um comando guerrilheiro ao sair de casa na manhã de 15 de abril de 1971, na Alameda Casa Branca. Morreu na sarjeta.

A Fiesp foi também atacada quando fez algumas críticas ao peso excessivo do setor rentista nas políticas do governo durante a “era neoliberal”. O então presidente Fernando Collor de Mello chegou a dizer que o prédio famoso da Paulista era um “covil de retrógrados”.

No governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco, disse que a entidade era um “monumento ao desperdício”. Ele se referia à Fiesp como “aquela negra torre de mármore construída com dinheiro dos impostos que incidem sobre o emprego, aquele monumento vivo ao custo Brasil”.

Padrão burguês

Não faz o menor sentido a principal representante da indústria brasileira apoiar o bolsonarismo. Mas não é só ela. Entidades congêneres pelo país afora também permanecem indiferentes ao desastre representado pelo governo Bolsonaro para a economia brasileira, em especial a indústria.

Essa posição remete ao debate histórico sobre a chamada burguesia brasileira. Seus vícios vem da formação do país. Ela não emergiu, ao contrário de outras burguesias, como personagem novo na arena política e econômica, gerado a partir de seu poderoso e inovador modo de produção: a indústria e o comércio.

No Brasil, o surgimento dessa nova classe social foi sufocado com a conservação do poderio do antigo modelo de produção dos senhores de terra. O que se viu no cenário brasileiro foi um aburguesamento das antigas classes escravocratas.

A corte — famílias tradicionais, proprietárias e próximas do poder — adotou superficialmente o padrão burguês de comportamento de modo a perpetuar o domínio político e econômico que exercia sobre seus latifúndios. Por isso nunca se interessou efetivamente em libertar a vasta área de consumo que padece com a falta de renda.

Como no passado, hoje em dia são poucos os empresários brasileiros que advogam uma política industrial ativa, livre das amarras do quadro macroeconômico administrado pelo manual do neoliberalismo neocolonial.

A própria Fiesp entrou nesse debate, quando o empresário Cláudio Vaz concorreu com Skaf em 2004. “Num país como o nosso, precisamos do Estado como instrumento de efetiva liberdade, indutor de investimentos, inclusive para dar forma a uma sólida sociedade civil”, escreveu ele em artigo publicado na Folha de S. Paulo.

Áreas necrosadas

A desindustrialização do país é um processo que atenta contra a soberania nacional. Ela empurrou vastos contingentes populacionais para o abismo social. Em vários centros industriais do país, a expulsão de pequenas e médias empresas do mercado criou áreas necrosadas.

Antigas indústrias hoje são galpões abandonados — ou ocupados para outros fins teoricamente não econômicos — e levas de desempregados perambulam pelas ruas sem perspectivas, contribuindo para elevar os estratosféricos índices de criminalidade. São as vítimas da lógica neoliberal segundo a qual para que alguns possam emergir social e economicamente muitos precisam submergir na pobreza e na miséria.

Na mesma Folha de S. Paulo, em 13 de junho de 1999 o renomado economista Celso Furtado escreveu que com essa política “o país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos”. “É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI)”, escreveu.

O que prevaleceu foram os históricos egoísmo, inépcia e má vontade dos detentores do grande capital. A bolsa de valores, por exemplo, só foi aparecer no Brasil na década de 1960. E, é provável, mais por conta de um decreto ou da exigência das multinacionais que chegavam com poderes absolutos pelas mãos dos golpistas de 1964 do que por um real desejo dessa burguesia.

Tanto isso é verdade que ainda hoje o capital que transita pelas bolsas brasileiras não cumpre a função de financiar projetos, investir em novos negócios, apostar em pesquisas de ponta. O dinheiro está lá. Mas não de fato, como deveria. Está lá para ser usado na ciranda financeira especulativa.

Bens exportados

O agravamento desse cenário tem a ver com a ideologia neoliberal. Essa inépcia fez a indústria brasileira sucumbir diante do poder das corporações privadas, um desafio para os Estados democráticos. Como constatou Karl Marx, a produção é dominada por um número constantemente menor de magnatas do capital. Ao trazer o assunto do poder para a discussão econômica, ele desmistificou a noção de absolutismo do mercado.

Um exemplo disso é a tese do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que o Brasil é dominado por “meia dúzia” de empresas, “três ou quatro em cada setor”. A solução seria abrir ainda mais o país para a entrada de empresas e capitais.

Uma amostra do que representa essa tese pode ser vista no superávit dos Estados Unidos na balança de bens e serviços com o Brasil, que subiu para US$ 12,2 bilhões em 2019, uma elevação de 44% sobre o saldo positivo favorável aos norte-americanos em 2018, que foi de US$ 8,49 bilhões.

Os principais bens exportados pelos Estados Unidos para o Brasil foram gasolina, diesel e outros derivados de petróleo, que cresceram em US$ 7,7 bilhões até novembro do ano passado. O Brasil é um dos poucos países e regiões a apresentar déficit nas relações comerciais com os Estados Unidos.

Cruzada anticomunista

Os recentes números da produção industrial do país, apontando uma queda de 1,1% em 2019, ascenderam o sinal de alerta, com os jornalões – porta-vozes de grupos econômicos – fazendo editoriais cobrando do governo medidas para promover a reindustrialização. Mesmo tendo um parque industrial entre os nove ou dez maiores do mundo, o Brasil não consegue se inserir na competição mundial por ter acumulado uma enorme defasagem tecnológica.

Em lugar de buscar o caminho da soberania nacional, com uma política de desenvolvimento tecnológico, o governo Bolsonaro opta por servir à política externa expansionista dos Estados Unidos, um governo paralelo que emergiu das imposições do pós-Segunda Guerra Mundial.

Os demais países centrais, exaustos pela guerra, foram obrigados a aceitar essa ordem em troca de ajuda para a sua reconstrução. Assim, os Estados Unidos deixaram de ser apenas mais um agregado no conjunto de países que lutavam por pedaços do mundo e passaram a ocupar o pico de uma pirâmide solidamente dirigida por eles.

As regras desse jogo foram definidas num momento privilegiado para o grande país americano. Nenhum representante da periferia participou desses tratados. A Europa, destruída por duas grandes guerras num curto espaço de tempo, não estava em condições de se opor à grande capacidade de produção norte-americana proporcionada pela Segunda Revolução Industrial – que dotou o país de uma poderosa e inovadora indústria. Na Ásia, o Japão, também destroçado pela guerra, foi ocupado pelos Estados Unidos, que ditaram o rumo da sua reconstrução.

Esse processo do pós-Segunda Guerra Mundial que desencadeou a dominação norte-americana no chamado mundo ocidental levou o capitalismo a uma transformação profunda. No final dos anos 1940, somente os Estados Unidos estavam em condições de exportar capital em grande escala. E o país usou essa condição privilegiada para manter sob o seu controle as rédeas num mundo que buscava alternativas ao seu modelo político e econômico. Desde então, os norte-americanos intervieram em vários países e promoveram uma feroz cruzada anticomunista.

Avanço da crise

Mas, no seu flanco asiático, surgiu a pujante economia chinesa — que ocupou em larga medida o seu mercado mundial. A ascensão de Donald Trump fez os Estados Unidos partirem para o confronto aberto com a China. Com a economia norte-americana voltada para a sua crise interna, Trump confronta inclusive o aliado histórico, a Europa, com anúncios de sobretaxas para importações da União Europeia.

Mesmo sob ataque, e atingida pelo surto do coronavírus, a China mostra força. O FMI diz que apoia os esforços do país para lidar com o problema e que está confiante de que a economia “continua resiliente”. Conforme a agência Xinhua, a porta-voz do FMI, Gerry Rice, expressou apoio ao combate da China ao surto e assinalou que as autoridades claramente “o estão levando muito a sério”.

A política de Bolsonaro, ao contrário, é uma camisa de força que amarra a economia brasileira. Estabeleceu-se uma situação política que paralisa o país. Sem uma ação que aponte alguma perspectiva para a retomada do crescimento, a tendência é de avanço da crise. E la nave va… Para onde, ninguém sabe.

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