É a retórica ou a orientação política que está envelhecida?

No cenário nacional há uma ofensiva de extrema-direita não só incrustada nos três poderes, mas também com apoio popular.

O economista Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores (PT), em recente exposição em um seminário realizado em Porto Alegre alertou os petistas de que “a sociedade do final dos anos 70 e início dos anos 80, que deu origem ao PT, não existe mais”.  Além de um diagnóstico relativo às mudanças nas classes trabalhadoras, apresentou como novidade na paisagem social brasileira a força das igrejas evangélicas e de grupos ligados ao crime organizado. “Hoje, cerca de 80 milhões de brasileiros frequentam semanalmente assembleias, as assembleias de Deus. Por volta de 2032, os evangélicos já serão maioria no Brasil. A lógica que rege esse fenômeno está mais ligada à subjetividade das pessoas do que à racionalidade. Essas igrejas são espaços de sociabilidade onde as pessoas podem falar sobre seus desejos e anseios. Lá elas encontram laços de fraternidade e solidariedade. Temos que ter a humildade de reconhecer a nossa defasagem de compreensão dessa realidade”. Afirmou que essa capacidade de atração e aglutinação das igrejas evangélicas deriva de sua capacidade de fornecer respostas de curto prazo aos problemas cotidianos das pessoas, à falta de perspectiva de futuro, especialmente para a juventude pobre das periferias, e que os partidos e sindicatos estão com a retórica envelhecida.

Na mesma toada, em entrevista ao Portal UOL, o ex-presidente Lula afirmou que “Quando o PT foi criado, você estava no auge da Teoria da Libertação. Não que a cúpula da igreja tivesse qualquer afinidade com o PT, porque nunca se manifestou e nunca teve. Nem Dom Paulo Evaristo Arns, que era o símbolo maior da igreja se manifestava favoravelmente ao PT. Se manifestava favoravelmente aos direitos humanos e a democracia. Mas onde o PT crescia? Onde tinha padre, onde tinha trabalho de Comunidade de Base, era habitual o PT crescer e também crescia em setores onde tinha evangélicos progressistas”. Mais adiante, após um diagnóstico sobre as mudanças nas classes trabalhadoras, que também coincide com o de Pochmann, afirma que “o PT precisa voltar à periferia para aprender a conviver com este movimento. O que é as igrejas pentecostais hoje no Brasil? O que eles representam? Já são 30, 35 por cento da população. No início do século passado eram praticamente zero. E estas pentecostais da prosperidade tem uma linguagem fácil para conversar com o povo, porque você tem de um lado o autor de todos os problemas que é o diabo, e você tem a solução toda que é Deus, e se não tiver solução o cara é o culpado porque não tem fé. Esta fé do povo brasileiro é muito grande, e nós temos que respeitar. E ao invés de sermos contra, nós temos que saber como é que a gente lida com este novo modo de pensar do povo brasileiro, inclusive de pensar a religião”. Mais adiante afirma que “o que o PT tem que entender é que estas pessoas estão oferecendo para as pessoas pobres uma saída espiritual. Uma saída que mistura as vezes a fé com o desemprego, com a economia, e com o contato direto com as pessoas. As pessoas estão ilhadas na periferia, sem receber a figura do Estado, sem receber a figura de muita gente. Ele recebe quem? De um lado o traficante que está na periferia, e de outro lado a igreja evangélica e a igreja católica, que tem uma atuação forte ainda”.

Quanto ao diagnóstico apresentado, no que se refere as mudanças no mundo do trabalho e, especialmente, quanto à força das igrejas evangélicas e de grupos ligados ao crime organizado nas periferias, não há discordâncias. No entanto, ao apontar as causas da perda de influência do PT sobre as camadas populares e indicar a solução, penso que ambos os dirigentes escorregam em equívocos, especialmente quando tratam o problema como uma mera questão de discurso.

Se tal afirmação é uma forma de alerta à militância petista para que compreenda esta nova realidade não há nenhum problema. No entanto, da mesma forma que vastos setores do PT e das esquerdas – no que diz respeito a todo o processo que se iniciou com as manifestações de 2013 e se completou com o impeachment de Dilma e eleição de Bolsonaro – insistiam que o problema é que se havia perdido a disputa de narrativas, parece-me que mais uma vez tratam a questão da disputa política como uma mera questão de retórica.

Mais velha que a influência evangélica nas periferias é a influência dos comunicadores, promotores de programas policiais, responsáveis pela eleição deles próprios ou de trogloditas ligados aos aparatos de segurança. Afirmar que tal influência decorre do discurso que aborda questões do cotidiano das massas periféricas, relacionadas à questão da violência, não é uma inverdade. Mas a retórica por si só não produz influência. Neste caso, o discurso conservador e reacionário destes comunicadores só encontra eco na periferia porque contam com os meios de comunicação (rádio e TV) e a própria estrutura de segurança pública. Dispondo dos meios de comunicação e associados ao lado mais violento dos aparatos policiais, que muitas vezes estão associados a milícias e narcotráfico, contam com instrumentos de grande capilaridade social para transformar seu discurso em influência política concreta sobre as massas periféricas. Da mesma forma, o fenômeno evangélico e a perda de influência petista nas periferias não decorrem exclusivamente de uma perda da disputa de narrativa ou de discurso.

Quem morou na periferia de grandes cidades, nos anos 70 e 80, deve lembrar que nos finais de semana a cada meia hora tinha que atender a porta. Era um desfile de pregadores da Assembleia de Deus, Testemunhas de Jeová, Evangelho Quadrangular e outras igrejas, tentando regimentar fiéis. Por esses tempos, onde havia movimento popular organizado, em sua ampla maioria eram dirigidos pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) que, através da Teologia da Libertação, desenvolviam intensa atividade de mobilização política. Junto com a Pastoral Operária, tais CEBs deram origem e corpo ao PT. Nesta época, em decorrência da redemocratização, outras organizações de esquerda tentavam se reconstruir, mas enfrentavam ferrenha oposição das CEBs, que blindavam as periferias, muitas vezes com um discurso retrógrado e anticomunista. Portanto, Lula que me desculpe, mas não era “onde tinha padre, onde tinha trabalho de Comunidade de Base, era habitual o PT crescer”. O PT foi a expressão política das CEBs. As CEBs construíram o PT, e foram seu instrumento de capilaridade social. A estrutura da Igreja Católica foi o instrumento de penetração do PT nas massas populares. O PT detinha discurso e instrumento e, como veremos à frente, um ambiente político favorável ao seu crescimento.

Após a condenação dos principais fundadores da Teologia da Libertação pela Santa Sé, na década de 80, esta corrente perdeu espaço nas estruturas da igreja católica, deixando as CEBs, no decorrer dos anos 90, de se constituir em instrumentos de organização política das massas periféricas e, consequentemente, de forma gradativa, o PT foi se afastando destas massas.

Ao tempo que as CEBs deixavam uma avenida aberta nas periferias, tanto do ponto de vista político como religioso, assistimos a ascensão, nos anos 90, das chamadas igrejas neopentecostais. Este crescimento se sustentava em duas estratégias fundamentais.

A primeira se refere ao modelo de organização e expansão que difere profundamente das demais organizações religiosas. A expansão se dá pelo fracionamento. Ao contrário de outras religiões que exigem longos estudos e trajetos para formar seus sacerdotes ou representantes, uma vez convertido a uma confissão neopentecostal o indivíduo rapidamente adquire a expertise para abrir a uma igreja autônoma no seu bairro. A expansão se dá em progressão geométrica e assegura profunda capilaridade nas periferias.

A outra estratégia fundamental foi a comunicação. Ao invés de bater de porta em porta fazendo pregações e distribuindo impressos de péssima qualidade, como faziam as pentecostais, os neopentecostais seguiram a estratégia dos comunicadores policiais comprando tempo de rádio e TV para promover os shows da fé. Os roteiros não diferem em nada dos programas de variedades. A diferença é que no lugar de baboseiras e joguinhos de entretenimento os pastores apresentam encenações de exorcismos e no lugar da mensalidade de um carnê do Baú da Felicidade para ser sorteado nos programas, o fiel paga o dízimo na esperança de ser agraciado por um milagre de Deus durante os cultos. Assim como nos programas de variedades são apresentados os afortunados que supostamente foram sorteados e ganharam valiosos prêmios, nos shows da fé são apresentados os abençoados que não tinham nada e agora, com a graça de Deus e o pagamento do dízimo, adquiriram carrões 0 km e mansões.

Assim como no processo de transição do bipartidarismo para o pluripartidarismo várias lideranças, entre eles Fernando Henrique Cardoso, assediavam os líderes da Teologia da Libertação para que as CEBs fornecessem as bases para a constituição de um partido social-democrata, à medida que cresciam, os evangélicos passaram a ser assediados pelos partidos de centro e centro-direita. Começaram a ganhar gosto pela política e, ainda que dispersos em vários partidos, atualmente constituem a maior bancada do Congresso Nacional. Evangélicos, milicianos e narcotraficantes hoje blindam as periferias das grandes cidades como o faziam as CEBs nos finais dos anos 70.

As CEBs recusaram as ofertas e constituíram seu próprio partido, o PT. Os evangélicos, à medida que aceitavam os convites, foram se dispersando em vários partidos, mas hoje querem mais. Temo que, assim como o PT foi a expressão política das CEBs, o partido Aliança se converta na expressão política dos evangélicos e milicianos.

Mas o fato é que, como descrevem os dois dirigentes petistas, a força das igrejas evangélicas e de grupos ligados ao crime organizado, é inquestionável. Mas que solução Pochmann e Lula propõem?

Ambos afirmam que as esquerdas e o PT estão com a retórica envelhecida e Lula aponta a necessidade de o PT voltar à periferia e aprender a conviver com o fenômeno religioso evangélico.

As CEBs, sob orientação da Teologia da Libertação, politizavam o povo orientando-o a defender seus direitos, organizando-se nos sindicatos, associações de moradores, Movimento Contra a Carestia, Movimento Contra o Desemprego, MST, movimentos pela moradia, ao mesmo tempo que construíam o PT. O movimento evangélico neopentecostal politiza o povo com uma pauta conservadora e o orienta a seguir à direita, como também interfere nas organizações populares, como as associações de moradores. Ou seja, este último movimento não reflete mais apenas um fenômeno religioso, mas também político.

Então, o que Lula quer dizer com “o PT precisa aprender a conviver com o fenômeno evangélico”? O que Pochmann quer dizer com “mudar a retórica”?

Sim, compreender esta nova realidade e ajustar o discurso a estas novas circunstâncias é um passo importante. Mas apenas mudar o discurso e aprender a conviver com esta nova “religiosidade” do povo vai romper a blindagem evangélica e do crime organizado, estabelecida nas periferias das grandes cidades?

Breno Altman propõe que o PT e outras legendas de esquerda construam células ao lado de cada igreja evangélica. Possuir bases organizadas onde o povo está, sempre foi objetivo permanente de qualquer partido de esquerda e, portanto, não há nada de inovador na proposta de Altman. No início dos anos 80, fortaleciam-se os movimentos de luta pela moradia e por melhores condições de vida, o Movimento Contra a Carestia, os movimentos contra o desemprego. Contribuía ainda um amplo movimento de frente ampla pela democracia que se materializou, em um primeiro momento, no movimento pela anistia, depois pelas Diretas Já, eleição de Tancredo no Colégio Eleitoral, pela Constituinte livre e soberana e a primeira eleição presidencial. Portanto, não eram só as ações das CEBs e as lutas relacionadas às necessidades mais imediatas do povo que contribuíam para o PT e as esquerdas crescerem. Era também, e principalmente, todo um clima de ofensiva democrática que aglutinava as mais amplas forças e empolgava a população. Sem a combinação destes elementos não existiria PT e outras organizações de esquerda viveriam ainda na clandestinidade.

Passa desapercebido pelo diagnóstico dos líderes petistas o fato de que hoje nos encontramos numa ofensiva reacionária em nível mundial talvez só comparável ao período da ascensão nazifascista. Mais, no cenário nacional uma ofensiva de extrema-direita não só incrustada nos três poderes, mas também com apoio popular. Enquanto as esquerdas enfrentam grandes dificuldades de mobilização de massas, pastores evangélicos, em falsos cultos, lotam estádios com milhares de fiéis para aclamar Bolsonaro. Estamos perdendo o debate da educação e segurança, com pais e professores apoiando a militarização das escolas, especialmente nas periferias. Se na década de 80 o PT tinha a maré política a favor, hoje, ainda que contasse com instrumentos que permitissem maior capilaridade junto as massas periféricas, como o eram as CEBs, precisaria nadar contra uma forte correnteza. Ou melhor, contra uma verdadeira avalanche de direita e não será o PT ou as esquerdas sozinhas que conseguirão superá-la.

Portanto, a exigência de uma frente ampla antifascista e em defesa da democracia não diz respeito ao processo eleitoral de 2022 e à luta exclusivamente no campo institucional. Ela é condição necessária ao enfrentamento da onda reacionária e fascista e é condição indispensável para o restabelecimento das condições para a livre organização do povo, sem a qual as esquerdas ficarão fechadas em suas bolhas. Sem a reversão desta ofensiva reacionária as esquerdas ficarão isoladas e enfrentarão enormes dificuldades para se reinserir na luta popular. Somente no processo de luta democrática e antifascista se desvendarão mecanismos de organização do povo que façam frente a esta onda reacionária.

Jornalista e professor, trabalhou no Ministério da Educação (MEC).

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