Um Brasil mais desigual: renda da metade mais pobre caiu 19% em 5 anos
Impulsionada pela recessão, a desigualdade de renda no Brasil teve, em 2019, o quinto ano consecutivo de alta, conforme estudo publicado pela FGV
Publicado 21/02/2020 10:33 | Editado 21/02/2020 18:25
A desigualdade de renda no Brasil teve, em 2019, o quinto ano consecutivo de alta, conforme estudo publicado pela FGV (Fundação Getulio Vargas) na terça-feira (18). Um dado, em particular, evidencia o drama social provocado no período: “A renda da metade mais pobre caiu 19% enquanto a renda do 1% mais rico aumentou 10%”, diz, em entrevista ao Nexo, o economista Marcelo Neri, coordenador do estudo e diretor do FGV Social
A pesquisa se baseia na Pnad Contínua, divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A renda registrada no trabalho se refere aos rendimentos do trabalho habitualmente recebidos per capita em um domicílio – tanto de empregos formais como de informais. São consideradas todas as pessoas de um domicílio, e não apenas quem trabalha. Assim, desempregados e crianças também entram na conta.
A partir desses números, o estudo da FGV calculou a desigualdade nos rendimentos dos brasileiros entre 2012 e 2019. No período considerado no estudo, a desigualdade de renda do trabalho no Brasil começou a subir em 2015 – ano em que o País já estava em crise. A recessão brasileira teve início no segundo trimestre de 2014 e chegou ao quarto trimestre de 2016. Mesmo a partir de 2017 – quando a recessão já havia chegado ao fim – a desigualdade continuou subindo, permanecendo em alta até 2019.
Essa tendência, porém, pode estar em reversão. Segundo o estudo da FGV, o último trimestre de 2019 cortou uma série de 18 trimestres consecutivos de crescimento da desigualdade de renda, quando comparado com o mesmo período do ano anterior. Essa série de altas durou do segundo trimestre de 2015 até o terceiro trimestre de 2019. Neste último período, em relação ao mesmo de 2018, a queda na desigualdade foi de 0,12%.
Para entender o que está por trás da trajetória da desigualdade de renda no Brasil na segunda metade da década de 2010, o Nexo conversou com Marcelo Neri.
Nexo: O que levou ao crescimento da desigualdade entre 2015 e 2019?
Marcelo Neri: Foi uma conjunção de problemas trabalhistas e na rede de proteção social. Os trabalhistas vêm da recessão brasileira. Se analisarmos a queda de renda média do Brasil [no período], foi uma queda de renda não muito grande. Agora, a metade mais pobre perdeu 19% nesse período. O 1% mais rico ganhou quase 10%. Embora se fale que foi uma das piores e mais demoradas recessões, a média [de queda na renda] desse período foi bem pior para a base da distribuição.
Ainda nos elementos trabalhistas, houve o aumento do desemprego – que foi um elemento importante –, a redução da jornada de trabalho. Ou seja, um componente cíclico importante. Do lado da rede de proteção social, tivemos um grande desajuste no Bolsa Família, uma questão fiscal, que é outro componente importante da crise. Lidamos da pior forma possível com o desajuste no Bolsa Família durante esses cinco anos. Não só a desigualdade aumentou como a extrema pobreza aumentou muito.
Nexo: Quais foram os mais afetados pelo aumento da desigualdade? Por quê?
Neri: Os grupos mais atingidos são jovens e pessoas sem instrução, o que mostra que essa crise foi bem diferente do período de crescimento inclusivo, quando a renda subia mais entre as pessoas sem escolaridade e os jovens não eram prejudicados. Pessoas com menos experiência e menos educação pagaram um preço maior por essa crise. Isso está relacionado à escolaridade e à experiência. As mulheres sofreram menos nessa crise do que os homens – e as mulheres são mais escolarizadas. Os resultados são mais ou menos consistentes com a ideia de que a crise, na verdade, não ocorreu no topo da distribuição e foi bem mais branda para os grupos de maior escolaridade.
Nexo: Por mais que tenha crescido, a desigualdade de renda desacelerou ao longo de 2019. A que o senhor credita isso?
Neri: É um componente cíclico, na medida em que o Brasil está saindo da recessão e dá alguns sinais de retomada da renda – embora menores do que se deseja. É verdade que a desigualdade completou o quinto ano de aumento consecutivo, mas no último ano foi um aumento menor. Quando olhamos os dados trimestrais, não só o último ponto [último trimestre de 2019] já está no azul, mas esse processo de aumento está a taxas cada vez menores. O problema que permanece é a redução de salário, é a precarização do trabalho. Essa é a má notícia que ainda não foi revertida. A precariedade continua avançando – e mais entre os mais pobres.
Nexo: É possível dizer que já passamos pelo pico de desigualdade?
Neri: Fizemos uma pesquisa da escalada da desigualdade. Pelo menos agora – pode ser que mude –, a tendência é de sair de uma forte alta para uma queda, pelo componente cíclico. É importante continuarmos investindo em educação e não ter desajustes nessa área. A educação é um estrutural: é importante para o crescimento e para a equidade. É preciso não desajustar e continuar a trajetória dos últimos 30 anos, quando a educação saiu de um nível ruim para um nível menos ruim. Mas essa é a saga brasileira.
Agora, vamos relembrar o que está acontecendo com o Bolsa Família nos últimos cinco anos, o que fez com que a extrema pobreza crescesse 67%. Vem ocorrendo congelamento de benefícios em termos nominais – há uma fila de beneficiários agora [desde 2019]. O Bolsa Família não só é importante em si como dá uma palavra de alerta para outros setores de política pública.
Nexo: Ainda no assunto de política pública, como o senhor avalia as políticas do governo Bolsonaro em relação à desigualdade?
Neri: A desigualdade, até agora, não foi colocada na ordem do dia [do governo]. A fonte de inspiração do Jair Bolsonaro foi o período do milagre econômico e fechamento político [1967-1973], que é um período em que a desigualdade aumentou muito no Brasil. É um histórico um pouco preocupante nesse sentido. Para não ficar nesse exemplo de 50, 55 anos atrás, trago o primeiro ano do governo Lula [2003], quando se começou com uma política social equivocada, que foi o Fome Zero. Um ano após o discurso da vitória foi o tempo que se demorou para se criar o Bolsa Família, a partir das bases deixadas pelo Fernando Henrique Cardoso. Algo assim pode acontecer [no governo Bolsonaro] – lançar um novo programa ou o mesmo programa com um novo nome e alguns ajustes.
Nexo: O que podemos esperar para a desigualdade em 2020?
Neri: Pelo componente cíclico, parece que a desigualdade está entrando no azul, no sentido de que está caindo. Ela está deixando de subir e talvez comece a cair. Não consigo ser otimista – o máximo que posso ser é um otimista condicionado. O Brasil pode dar o salto se atacar estes problemas: a rede de proteção social, o ponto de vista macroeconômico, e não deixar perder o ritmo de crescimento inclusivo da educação.
São os três componentes fundamentais – e são bons porque não encerram qualquer conflito entre crescimento e distribuição. Eles jogam na mesma direção. Você pode crescer e distribuir renda: esse é o verdadeiro milagre social que o Brasil pode obter. Não é só um milagre econômico – precisamos pensar em um milagre que chegue à renda das pessoas. Na verdade, não é um milagre – é uma coisa que depende só de planejar e implementar as ações certas.
Nexo: Em termos sociais e olhando para a economia como um todo, qual o tamanho do ônus causado pela desigualdade de renda no Brasil?
Neri: O ônus é ela [a desigualdade] em si. Quando falamos de desigualdade e coisas como índice de Gini, pode parecer uma abstração. Mas basta dizer que a renda da metade mais pobre caiu 19% enquanto a renda do 1% mais rico aumentou 10%. Isso dá uma dimensão mais palpável do que foram as perdas e os ganhos nesse período. Por outro lado, ela pode ter um impacto importante na economia. Nesta lenta retomada, a dificuldade está ligada a esse aumento da desigualdade e ao próprio desajuste do Bolsa Família nos últimos anos.
Os pobres tendem a consumir uma parcela maior da renda. O multiplicador de cada real que é gasto no Bolsa Família é três vezes maior no PIB do que cada real que é gasto em Previdência. Houve a retração no Bolsa Família – e o próprio aumento da desigualdade, principalmente na base da distribuição, acaba acarretando maior desaceleração da economia. Mas também gera problemas de criminalidade. As taxas de homicídio têm caído, mas a desigualdade em si joga contra esse objetivo e gera certa instabilidade política que também afeta o crescimento da economia. A desigualdade [é um ônus] em si que gera consequências nessas várias dimensões.
Nexo: O sr. tem mencionado bastante o Bolsa Família, programa que vive momento de crise no início de 2020. Como definiria a importância desse programa para a economia brasileira?
Neri: O Bolsa Família atinge muita gente a um custo muito baixo. Atinge quase um quarto da população e custa 0,4% do PIB. É uma rede de proteção social que, em época de crise, deve ser alargada. Quando você sai da crise, ela pode ser diminuída. Nesse período de recessão, retiramos a rede de proteção social quando ela era mais necessária. Fizemos uma espécie de ajuste fiscal em cima dos pobres. Mas também chama a atenção que, em 2008, na época da crise dos alimentos, foi estendida a rede de proteção social. O problema naquela época é que, depois que o Brasil saiu desse problema de alimentos, que era internacional, a rede de proteção social não se retraiu.
Tanto na expansão quanto na retração, precisamos ter um mecanismo sensível às condições da economia e da sociedade. E temos esse instrumento ao nosso dispor. Nos últimos anos, a pobreza subiu, em parte no mesmo caminho em que tinha descido. Isso é totalmente evitável, dependendo apenas de um pouco de bom senso – não precisa nem de muito recurso. Não podemos economizar bom senso.