Ataques à liberdade de expressão são ameaça à democracia

Relatores e comissários da Comissão Interamericana de Direitos Humanos manifestaram de maneira unânime suas preocupações com o quadro de violações à liberdade de expressão no Brasil

Delegação brasileira denunciou na OEA ataques de Bolsonaro

No último dia 6 de março, 17 entidades da sociedade civil denunciaram as violações à liberdade de expressão cometidas pelo governo brasileiro durante a 175a sessão de audiências da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), vinculada à OEA (Organização dos Estados Americanos), que ocorreu em Porto Príncipe, no Haiti. No mesmo momento em que o governo era denunciado e seus representantes negavam a existência de violações à liberdade de expressão ou formas de censura no Brasil, o presidente da República, Jair Bolsonaro, usava mais uma vez as suas redes sociais para atacar a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo.

A coincidência mostra que as afirmações do governo não correspondem à situação observada no país. Não à toa, os relatores e comissários foram unânimes em manifestar preocupação com o quadro de violações no Brasil, a começar pelo novo presidente da CIDH, o diplomata mexicano Joel Hernandez, que, ao explicar por que a comissão aceitou o pedido de audiência sobre liberdade de expressão, afirmou que “infelizmente, a dinâmica da comunicação com novas ferramentas tecnológicas tem sido usada para estigmatizar grupos sociais e atacar o direito à comunicação e à informação. Não é algo que só acontece no Brasil, mas trata-se de uma política de estigmatizar, sobretudo, comunicadores”.

O relator especial para a liberdade de expressão da OEA, Edison Lanza, cobrou respostas efetivas do governo e revelou que ele mesmo foi alvo de ataques em seu Twitter ao manifestar preocupação com as agressões realizadas contra jornalistas. Lanza também rebateu o argumento do governo de que a existência de um programa de proteção aos defensores de direitos humanos — categoria que desde 2018 contempla a categoria de jornalistas — seria uma resposta às denúncias. “Nenhuma política de proteção à liberdade de expressão pode ser consolidada sem haver política de prevenção. E prevenir ataques à liberdade de expressão inclui promover e valorizar o trabalho jornalístico. O que o governo Bolsonaro tem feito é apostar numa retórica anti-imprensa”, afirmou.

Já a comissária da CIDH Margarette May Macaulay, relatora sobre os direitos das mulheres, afrodescendentes e contra a discriminação racial, apontou a responsabilidade de quem ocupa o poder público e chamou a atenção para a situação das mulheres: “Fico muito preocupada com o fato de o presidente da República cometer ataques e fazer colocações agressivas e ofensivas a jornalistas mulheres. Isso é uma contradição gritante aos direitos constitucionais, ainda mais vindo de um líder do Estado. Quando o presidente diz coisas como as que diz, é como se desse uma licença para que todos tratem as mulheres de forma desrespeitosa”.

A fala da relatora chama a atenção para o caráter discriminatório dos ataques do presidente Jair Bolsonaro a jornalistas e comunicadores. Ao insultar repórteres, o atual presidente reforça o sexismo contra as mulheres, incita a violência de gênero e a misoginia e mobiliza seus partidários para tentar silenciar a imprensa sempre que a cobertura jornalística desagrada ao grupo político que está no poder. Com as altas autoridades do país sendo agentes diretos de restrições e violações, multiplicam-se os grupos que promovem ações coordenadas, ameaças e insultos misóginos contra comunicadoras.

Esse é o caráter de alguns dos casos denunciados à CIDH, como o de Patrícia Campos Mello e o de Vera Magalhães. Em ambos, os ataques e insultos do presidente e correligionários geraram uma série de ameaças e foram motivados por reportagens que desagradaram ao governo. Outro caso a ser considerado é o da revista AzMina, que está sendo investigada pela polícia depois de denúncia enviada ao Ministério Público pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A denúncia foi motivada pela moralidade da ministra, que questionou matéria sobre aborto que citava dados da Organização Mundial de Saúde. O site da revista chegou a ser derrubado por uma ação de robôs.

Os ataques à liberdade de expressão no país vão além. O sufocamento de vozes plurais acontece por meio do desmonte e da censura à TV pública, restrições à liberdade artística e cultural, incluindo o cancelamento de edital público que continha a temática LGBTI, restrições a espaços de manifestação, participação social e acesso à informação pública, além de medidas restritivas e de criminalização de movimentos sociais.

Os dados e documentos apresentados pelas organizações diante da CIDH são mais fortes do que a retórica utilizada pelos representantes do governo para justificar o injustificável. Representantes do Estado afirmaram na audiência que “divergências com setores da imprensa” fariam “parte do jogo democrático” e ainda que a postura do presidente com a imprensa se justifica porque “no Brasil, não existe censura”. Ao contrário do que declaram os representantes, ao ameaçar a liberdade de expressão e informação de forma sistemática e institucionalizada, o governo ameaça a própria democracia e mobiliza equipamentos públicos e as prerrogativas do seu cargo para tentar impor o pensamento único e estimular a polarização.

A institucionalização e o crescimento das violações colocam o Brasil em situação de alerta. Os padrões internacionais e as normas nacionais embasaram um conjunto de recomendações feitas pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos a representantes públicos em junho de 2019, que seguem atuais e mais necessárias do que nunca. Elas orientam que representantes do Estado “reconheçam constante, explícita e publicamente a legitimidade e o valor do jornalismo e da comunicação, mesmo em situações em que a informação divulgada possa ser crítica ou inconveniente aos interesses dos governo” e que “jamais sejam agentes diretos ou promovam violações ao direito à liberdade de expressão, incitem discriminações ou criem ambientes que conduzam à violência contra comunicadores, seja física, verbal ou na esfera digital”.

Denise Dora é advogada e diretora executiva da ARTIGO 19.

Émerson Maranhão é realizador audiovisual, repórter especial e coordenador de transmídia d’O POVO.

Emmanuel Colombié é diretor do escritório para a América Latina da Repórteres Sem Fronteiras.

Helena Bertho é jornalista e editora chefe da Revista AzMina.

Juliana Fonteles é assistente jurídica da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).

Olívia Bandeira é jornalista, antropóloga e coordenadora executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Renata Mielli é jornalista, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, integrante da Coalizão Direitos na Rede e secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Todos fizeram parte da comitiva que representou a sociedade civil na 175a audiência temática da CIDH.

Fonte: Nexo Jornal

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