Bolsonaro corta verbas e põe em risco a assistência social nas cidades

Impacto de portaria do Ministério da Cidadania, lançada no fim de 2019, variou em cada município, mas oscilou de 30 a 40%

Uma portaria do Ministério da Cidadania, lançada no fim de 2019, cortou verbas federais repassadas para os serviços de assistência social no País. Segundo gestores dos municípios, a decisão do governo Jair Bolsonaro põe em risco a continuidade do atendimento, especialmente em localidades menores e com menos recursos. As remessas foram até 40% menores que as anteriores.

A Portaria Nº 2362 foi publicada no Diário Oficial em 23 de dezembro do ano passado, um dia antes da véspera de Natal. Mas os efeitos da medida só foram sentidos no começo deste mês. O impacto variou em cada município, mas oscilou de 30 a 40%.

O corte ocorre num momento de enxugamento do principal programa social do país, o Bolsa Família. Em 2019, cerca de 500 mil famílias estavam na fila de espera do programa, segundo dados obtidos pelo jornal O Globo por meio da Lei de Acesso à Informação. O Ministério da Cidadania, no entanto, não informa o número mês a mês.

Um dos serviços atingidos pela portaria nº 2362 são os Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Estes são responsáveis justamente por encaminhar as pessoas que têm direito a benefícios como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC). No Brasil, o financiamento da assistência social é dividido entre a União, os Estados e os municípios — e o dinheiro do governo federal chega aos gestores dos municípios por meio do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).

Os recursos são usados pelos municípios para manter os vários tipos de serviços que compõem o Sistema Único de Assistência Social (Suas), e que vão desde albergues para a população de rua até equipes de assistentes sociais que acompanham famílias vulneráveis, passando pelos CRAS e Centros de Referência Especializados (Creas).

O Ministério da Cidadania dispunha de R$ 1,8 bilhão para transferir a estados e municípios por meio do FNAS no Orçamento deste ano – valor cerca de 35% menor que os R$ 2,8 bilhões empenhados com essa finalidade ao longo de 2019. À BBC, o ministério não contradisse os dados nem apresentou números diferentes – a reportagem perguntou especificamente sobre o valor disponível para este tipo de transferência.

Segundo a pasta, as parcelas estão sendo pagas aos municípios e estados “de acordo com a disponibilidade orçamentária e financeira destinada” no Orçamento de 2020. A portaria, diz o ministério, visa adequar os repasses da União para a assistência social ao que determinam a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). A portaria buscaria garantir que a contribuição da União “ocorra em conformidade com as legislações de responsabilidade fiscal e orçamentária vigentes, respeitando também as orientações dos órgãos de controle”, diz a nota.

O corte compromete funcionamento de centros e ocorre em momento de enxugamento do Bolsa Família. José Arimatéia de Oliveira é o secretário municipal de Assistência Social do município de Aratuba (CE), uma pequena cidade de 13 mil habitantes localizada a duas horas de viagem de Fortaleza. Dentro do Suas, o município é considerado de pequeno porte. A União ajuda a cidade a bancar serviços básicos, com aportes de cerca de R$ 19 mil por parcela, segundo o gestor.

Mas, neste ano, o novo pagamento foi de apenas R$ 11 mil, diz ele. “Principalmente nós, dos municípios de pequeno porte, vamos ser impactados diretamente. Esse era um recurso que ajudava a pagar as equipes do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif); o material de expediente e os gêneros alimentícios que eram dados às famílias que participam (do programa)”, diz o secretário.

No município de Nhamundá (AM), a parcela paga no começo de março veio com um valor 35% menor, segundo a secretária municipal da pasta, Eldilene Alves da Silva. O município costumava receber cerca de R$ 80 mil por parcela, diz ela, mas o último pagamento foi de apenas R$ 56 mil. Localizado ao longo da fronteira do Amazonas com o Pará, Nhamundá tem uma área de mais de 14 mil quilômetros quadrados. É quase dez vezes a área do município de São Paulo, embora a população seja de apenas 21 mil habitantes.

Os números obrigam os assistentes sociais a se deslocarem por longas distâncias. “No Norte, a gente tem uma logística muito custosa, muito específica da região, onde o acesso às comunidades muitas vezes é fluvial. A gente acaba tendo um gasto com combustível muito alto. Para acompanhar os beneficiários do Bolsa Família, por exemplo, é preciso deslocar equipes, e isso encarece a nossa atividade”, diz Eldilene.

Conforme a gestora, Nhamundá e outros municípios da região enfrentam uma dificuldade adicional nos últimos anos: a chegada de imigrantes venezuelanos. O primeiro atendimento aos imigrantes, diz ela, é feito nos Cras, um dos serviços atingidos pelo corte.

O fato de o Suas iniciar o ano com um orçamento menor que o necessário não chega a ser novidade. As verbas poderiam ser complementadas mais tarde, com a liberação de novos créditos aprovados pelo Congresso. Só que, graças à portaria de 2019, o Ministério da Cidadania pode pagar parcelas menores que o acordado no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), diz a gestora Andréia Lauande, presidente do Congemas, grupo que congrega secretários municipais de Assistência Social.

No fim de 2019, o CNAS aprovou um orçamento de cerca de R$ 2,7 bilhões para 2020. Apesar disso, a Lei Orçamentária deste ano destinava apenas R$ 1,3 bilhão para estas transferências, inicialmente. “O que significa a ‘equalização de recursos’ mencionada pela portaria? Quer dizer que, se o governo só destinou R$ 1,3 bilhão (para o Fundo Nacional de Assistência Social), ele vai começar a pagar só referente ao que ele tem. Distribui os R$ 1,3 bi ao longo de um ano e começa a pagar as parcelas, 40% a menos”, explica Lauande.

“Só que aí você está descumprindo o pacto federativo; está descumprindo os termos de aceite com os quais os municípios se comprometeram ao começar a oferecer o serviço. O município concordou em oferecer aquele serviço por um valor determinado”, diz Lauande. “O que nós vamos fazer? Fechar as unidades? Demitir os servidores? O impacto está sendo enorme na assistência social do Brasil”, diz.

Lauande, secretária de Assistência Social da prefeitura de São Luís (MA), dá um exemplo do impacto em sua cidade. O município mantém o abrigo Residência Inclusiva para pessoas com deficiência. O governo federal repassava cerca de R$ 10 mil mensais para ajudar a bancar o serviço – mas a última parcela foi de pouco mais de R$ 5 mil. “Estamos falando de serviços que já estão sendo executados, que já estão em funcionamento. Isso impacta diretamente a vida das pessoas. Vou abrir os abrigos e dizer às pessoas: ‘vão para fora, aguardem lá a recomposição do orçamento’?”

Na última terça-feira, o Congemas e o Fórum Nacional de Secretários de Estado da Assistência Social (Fonseas) lançaram uma nota conjunta na qual cobram a revogação da portaria e a recomposição do orçamento do Fundo. Conforme o texto, os cortes do governo na área foram além do que exige a emenda constitucional do Teto de Gastos, aprovada em 2016.

“Os recursos estão sendo retirados dos demais entes federados e da população, em flagrante descumprimento do pacto federativo. Neste sentido, os gestores têm buscado esforços contínuos pela, ao menos, manutenção da atual rede de serviços na Assistência Social”, diz um trecho da nota.

Como funciona o sistema

Na assistência social brasileira, o atendimento começa pelos CRAS. As equipes que atuam em cada caso costumam ser formadas por um assistente social e um psicólogo, diz ela. “A porta de entrada são os CRAS, que são os Centros de Referência de Assistência Social. Então, ali é feito o atendimento de baixa complexidade. Ali você identifica qual é a demanda, se é moradia, se teve situação de violência na família”, diz.

“Se for um caso mais complexo, a pessoa vai para o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). Um caso de violência contra criança ou adolescente, por exemplo, é encaminhado para lá, que então aciona o Conselho Tutelar e toma as outras providências”, explica ela.

“Agora, nos casos de vulnerabilidade, de extrema pobreza, quando estão na iminência de entrar em situação de rua, estas pessoas têm de ser cadastradas no CADÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais, do governo federal), para poder acessar os benefícios (como o BPC e o Bolsa Família)”, diz a professora.

Embora a política do Sistema Único de Assistência Social tenha sido bem desenhada, diz Pinheiro, há relatos de pessoas que ficam sem atendimento e sem receber os benefícios a que têm direito por causa da insuficiência de trabalhadores para realizar os atendimentos.

“Tenho ex-alunas minhas que são assistentes sociais e estão hoje na gestão destes CRAS e CREAS, com fila de espera de centenas de famílias para os benefícios. São pessoas dentro dos critérios (de programas como o Bolsa Família e o BPC), em situação de risco, e que não são atendidas porque os centros não têm equipe para atender à demanda”, diz ela.

Com informações da BBC News Brasil

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