O aumento do BPC e os limites de gastos no governo federal

O Congresso não apenas rejeitou a pretensão inserida na PEC 6, que também pretendia impedir que o Judiciário e o Legislativo concedessem o “abono anual” (13º) para os beneficiários do BPC, como aprovou projeto de lei aumentando o limite para meio salário mínimo, objeto do veto ora derrubado pelo Congresso, e aprovou, na comissão mista da MP 898/19, a extensão do 13º do Bolsa Família para o BPC.

(Foto: Vinicius Loures/Agência Câmara)

O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou em 12 de março, que governo vai questionar no TCU e STF o aumento da despesa decorrente da derrubada do veto pelo Congresso, no dia 11 de março, que permitirá que pessoas com deficiência e idosos carentes, com renda de mais de 1/4 e até meio salário mínimo, façam jus ao BPC (Benefício de Prestação Continuada) da Loas (Lei Orgânica da Assistência Social).

Contudo, o ministro deveria saber que foi o próprio STF que reconheceu a necessidade de elevar esse limite. A resposta do Poder Legislativo, embora debatida há mais de 20 anos, veio com atraso de, pelo menos, 6 anos em relação à decisão do STF.

Mas, ao contrário disso, o ministro Guedes pretendia na PEC 6/19, por ele formulada, retirar o direito de milhões de carentes ao BPC e reduzir o seu valor. Pretendia constitucionalizar o critério de renda de 1/4 do salário mínimo, incluir no cálculo da renda per capita toda e qualquer fonte de renda, e criar o BPC “fásico”, devido em apenas R$ 400 a partir de 60 anos, e elevar para 70 anos a idade para receber o valor de 1 salário mínimo.

O BPC, além de ser benefício focado nos mais pobres e necessitados, garantido pela CF e um dos importantes mecanismos de redução da miséria absoluta, tem importante efeito multiplicador, só abaixo do Bolsa Família: segundo cálculos do Ipea, elaborados pelo professor Marcelo Neri, cada R$ 1 do BF injeta R$ 1,2 na economia.

Inconstitucional

Em 2013, no julgamento dos RE (recursos extraordinários) 567985 e 580963, o STF entendeu que é inconstitucional o critério de renda familiar per capital para concessão de benefício assistencial a idoso ou pessoa com deficiência fixado na Loas (1/4 do salário mínimo de renda per capita), e que o governo pretendia colocar na Constituição (PEC 6/19).

O Congresso não apenas rejeitou a pretensão inserida na PEC 6, que também pretendia impedir que o Judiciário e o Legislativo concedessem o “abono anual” (13º) para os beneficiários do BPC, como aprovou projeto de lei aumentando o limite para meio salário mínimo, objeto do veto ora derrubado pelo Congresso, na comissão mista da MP 898/19, a extensão do 13º do Bolsa Família para o BPC.

Quando apreciou os RE 567.985 e 580.963, o plenário do STF reconheceu, com repercussão geral, a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Loas (Lei 8.742/93), por considerar que esse critério está defasado para caracterizar a situação de miserabilidade das famílias.

STF ratifica

Em 2003, quando da aprovação do Estatuto do Idoso, foi adotada solução legal que, igualmente, ampliou o direito, ao excluir do cálculo da renda familiar o BPC já recebido por outro membro do casal. O INSS, então, alegou a mesma situação: contrariedade à regra do artigo 195, que exige fonte de custeio total para novos benefícios ou direitos da Seguridade Social. Ao apreciar os RE 567985 e 580963, o STF declarou ser inconstitucional que o BPC continue a ser devido a pessoas com deficiência, ou mesmo aposentados, com base no critério de 1/4 do salário mínimo, e computando-se na renda familiar outras parcelas de BPC ou mesmo aposentadoria de até 1 salário mínimo.

Foi declarada naquela ocasião a inconstitucionalidade por omissão do parágrafo único do artigo 34 da Lei 10.471/03 (Estatuto do Idoso), dada a existência de critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, como a Lei 10.836/04, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/03, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; e a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola, o que aponta para a necessidade de adoção de critério de renda per capita mais elevado (meio salário mínimo) para fins dessa aferição de necessidade e para a defasagem e inadequação do critério de 1/4 do salário mínimo como referencial econômico para a concessão dos respectivos benefícios.

Naquela ocasião, o ministro Gilmar Mendes propôs a fixação de prazo para que o Congresso Nacional elaborasse nova regulamentação sobre a matéria, mantendo-se a validade das regras atuais até o dia 31 de dezembro de 2015, mas a proposta não alcançou a adesão de 2/3 dos ministros (quórum para modulação). Apenas 5 ministros se posicionaram pela modulação dos efeitos da decisão — Gilmar Mendes, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello.

Em outro julgamento, na Reclamação 4374, em que não foi acatado pedido do INSS contrário à concessão de BPC para pessoa com renda maior que 1/4 do SM, o relator ministro Gilmar Mendes defendeu a elevação da linha de corte, e reiterou que diversas normas, como a Lei 10.836/04, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/03, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; e a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas, fixaram critérios distintos. Assim, segundo Gilmar Mendes, essas leis abriram portas para a concessão do benefício assistencial fora dos parâmetros objetivos fixados pelo artigo 20 da Loas, e juízes e tribunais passaram a estabelecer o valor de meio salário mínimo como referência para aferição da renda familiar per capita.

A regra do artigo 195, § 5º da CF não impede a aplicação da norma, pois se trata de direitos assegurados pela própria Constituição, com caráter assistencial, já existentes, e cujo critério de elegibilidade é ajustado para cumprir decisão do STF, afastando, ainda que parcialmente, a inconstitucionalidade por omissão já reconhecida.

É o mesmo caso do já decidido pelo STF no RE 220.742:

“Inexigibilidade (…) da observância do art. 195, § 5º, da CF, quando o benefício é criado diretamente pela Constituição. [RE 220.742, rel. min. Néri da Silveira, j. 3-3-2008, 2ª T, DJ de 4-9-1998.]

Aplica-se, também, ao caso, o mesmo entendimento do STF adotado na ADI 4.976, que considerou não ser aplicável o artigo 995, § 5º da CF ao caso de benefício assistencial:

“O auxílio especial mensal instituído pela Lei 12.663/2012, por não se tratar de benefício previdenciário, mas, sim, de benesse assistencial criada por legislação especial para atender demanda de projeção social vinculada a acontecimento extraordinário de repercussão nacional, não pressupõe, à luz do disposto no art. 195, § 5º, da Carta Magna, a existência de contribuição ou a indicação de fonte de custeio total. [ADI 4.976, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 7-5-2014, P, DJE de 30-10-2014.]”

Com efeito, os benefícios da assistência social, assim como o direito à saúde, diversamente dos benefícios previdenciários, não demandam fontes de custeio específica, podendo ser cobertos por todas as fontes da Seguridade Social, e mais ainda, pelos recursos do próprio Tesouro.

Ainda que assim não fosse, somente seria cabível, por analogia, a aplicação do princípio de que sua aplicação seria postergada para o exercício seguinte, como decidido pelo STF no caso da ADI 3.599:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Leis federais 11.169/2005 e 11.170/2005, que alteram a remuneração dos servidores públicos integrantes dos Quadros de Pessoal da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Alegações de (…) inobservância da exigência de prévia dotação orçamentária (art. 169, § 1º, da CF). (…) A ausência de dotação orçamentária prévia em legislação específica não autoriza a declaração de inconstitucionalidade da lei, impedindo tão somente a sua aplicação naquele exercício financeiro. Ação direta não conhecida pelo argumento da violação do art. 169, § 1º, da Carta Magna. [ADI 3.599, rel. min. Gilmar Mendes, j. 21-5-2007, P, DJ de 14-9-2007.] (grifo nosso).

Em caso recente, o TCU reconheceu que a extensão aos aposentados e pensionistas e incorporação aos proventos do Bônus de Eficiência e Produtividade dos auditores fiscais, criado pela Lei 13.464, de 2016, não tinha fonte de custeio, dada a não incidência sobre essa parcela de contribuição previdenciária de ativos e inativos e pensionistas. Contudo, nos termos do Acórdão 1921/2019 – Plenário, absteve-se de determinar o não pagamento da parcela aos aposentados e pensionistas, mas determinou ao Ministério da Economia, com fundamento no artigo 14 da Lei Complementar 101/00, que, adote providências para o estabelecimento de medidas de compensação para a instituição da renúncia de receita previdenciária veiculada pela Lei 13.464/17. Ou seja, não negou o direito ao benefício, que tem extração constitucional, a partir do princípio da paridade entre ativos e inativos, mas obrigou o governo a compensar a renúncia de receita.

A questão de maior complexidade, porém, está no fato de que a EC 95, de 2016, fixa teto de despesas total para a União, que não depende de haver ou não fonte de custeio, dado que a elevação da despesa desde 2017 e até 2036 somente poderá acompanhar a variação do IPCA. Assim, considerando o total da despesa, será necessário o corte de despesas em outras rubricas do Orçamento da União, ou a própria revisão da EC 95, para que o teto de gastos seja flexibilizado.

Segundo o Anexo IV do PLDO 2020, havia em 2018, 2,6 milhões de pessoas com deficiência e 2,05 milhões de idosos recebendo o BPC, a um custo total de R$ 55,4 bilhões. As estimativas de ampliação da despesa indicavam que a despesa alcançaria R$ 59,2 bilhões, em 2020, R$ 62,6 bilhões, em 2021 e R$ 66 bilhões, em 2022. Assim, mesmo sem a elevação da linha de corte, já estava previsto acréscimo de R$ 4 bilhões, em 2020. O crescimento da população idosa já é um fator de acréscimo nessa despesa.

No Brasil, em 2018 cerca de 24% das 69 milhões de famílias tinham renda total de até R$ 2 mil, o que correspondia a 16,6 milhões de famílias. Assim, se todas essas famílias tiverem 1 idoso, ou pessoa com deficiência, passariam a receber o BPC, o que elevaria o total de benefícios de 4,6 milhões para até 16 milhões, ou seja, mais 12 milhões de famílias fariam jus ao BPC. Dados do censo do IBGE apontavam a existência de 4,2 milhões de pessoas com deficiência com total impedimento, e outras 11 milhões com grande dificuldade de exercício de atividades na vida diária, mas distribuídas por todas as faixas de renda.

Cálculos do governo, feitos para assustar os congressistas, apontaram que haveria acréscimo imediato na despesa de R$ 20,1 bilhões/ano, sendo R$ 5,18 bilhões com idosos, e outros R$ 14,3 bilhões com PCD. Para isso, seria preciso conceder de imediato o benefício a mais 413 mil idosos (aumento de 20% no total já concedido) e a cerca de mais 2,1 milhões de PCD. Assim, em 10 anos, o impacto na despesa seria da ordem de R$ 217,1 bilhões.

Mas não é essa a realidade, pois o universo de beneficiários potenciais é inferior a essa estimativa. Num cálculo aproximado, com a elevação da linha de corte, poderá haver acréscimo de 30% no volume de benefícios concedidos, mas não de 50%, se consideramos os critérios de concessão e a classificação de PCD com base na gravidade da deficiência e na necessidade do benefício (renda familiar), o que elevaria a despesa em cerca de R$ 18 bilhões, mas não de forma imediata.

Assim, o governo Bolsonaro não terá outra opção senão rever suas políticas de “austeridade” e reconhecer a necessidade de acomodar o impacto fiscal da medida, que não será imediato, pois dependerá da própria análise de requerimentos, num momento em que o governo acha-se sem meios sequer para reduzir a fila de aposentadorias represadas do INSS.

Caso contrário, terá que cortar despesas num orçamento que já está, literalmente, no “limite”, com gastos de pessoal congelados, concursos suspensos, e investimentos em patamar mínimo, e em contexto de agravamento dos indicadores sociais, como pobreza e desemprego.

Fonte: Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap)

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