“Pacote de Guedes é fake news e só piora a situação”, diz economista
“Guedes insiste que deve resolver o problema realizando as chamadas reformas. Até os neoliberais mais convencidos já estão dizendo que para enfrentar a crise são necessárias medidas de outro tipo”, afirma o economista Nilson Araújo.
Publicado 18/03/2020 17:18
O economista e professor Nilson Araújo de Souza, autor de diversos livros, entre eles, Economia Brasileira Contemporânea e Ascensão e queda do Império Americano, afirmou na terça-feira (17), em entrevista ao HP, que as medidas anunciadas nesse mesmo dia pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para supostamente enfrentar o agravamento da crise na economia e o surgimento da pandemia do coronavírus, são “fake news”, ou seja, não resolvem os problemas. “Por um lado ele insiste nas chamadas reformas, que agravam a situação e, por outro, não injeta dinheiro novo na economia”.
Nilson Araújo defende um programa de emergência verdadeiro, que ponha dinheiro novo na economia e enfrente o colapso momentâneo provocado pelas circunstâncias atuais e pelas medidas necessárias ao combate do impacto da pandemia, apontando para a retomada dos investimentos públicos e a ampliação do mercado interno.
Como você está vendo a situação econômica do país depois da chegada do coronavírus?
Quando chegou aqui o coronavírus, a situação do país já não estava muito bem, conforme demonstrei em duas entrevistas anteriores à Hora do Povo. Estava havendo forte desvalorização do real, o dólar se valorizando cada vez mais e uma fuga muito grande da moeda estadunidense. Já tinha havido uma fuga muito grande no ano passado. Nos dois primeiros meses deste ano, a fuga de dólares acelerou mais ainda. E essa fuga se devia a várias razões. Uma delas é o fato de que estavam se deteriorando as contas externas. Estava reduzindo o superávit comercial e aumentando o déficit em transações correntes, que é a soma do saldo comercial com o saldo na área financeira, remessa de lucros, remessa de juros, etc. Estavam em deterioração as contas externas. Isso leva os capitais especulativos a ir embora. Quando eles vão embora, vendem os títulos aqui, as ações na bolsa, compram dólar e levam esse dólar para fora. É exatamente por isso que o dólar se valoriza. Essa era uma das causas.
Uma segunda foi a atitude adotada pelo Banco Central, que tinha como objetivo valorizar o dólar e desvalorizar o real para baratear as empresas brasileiras para quem viesse de fora comprá-las, o capital estrangeiro. Por isso, promoveu a forte redução da taxa de juros, por orientação de Guedes. Era uma maneira de torrar na bacia das almas as empresas brasileiras, tanto estatais como privadas. Mas há uma questão política que é muito forte e que é exatamente a desconfiança dos especuladores de todo o mundo em relação ao governo Bolsonaro. Como se diz, quando não há crise, Bolsonaro cria uma. E isso é a cada dia. Então, são essas três causas da fuga de dólares e, consequentemente, da disparada dessa moeda em relação ao real, mas a questão política passou a ter um peso importante, porque ela já vinha afugentando os capitais, já vinha levando à desvalorização do real e levando à queda das bolsas.
Então a crise não está no coronavírus?
A chegada do coronavírus veio agravar, e muito, essa situação que já existia antes. Inclusive o PIB no ano passado só cresceu 1,1%. No último trimestre do ano, já começaram a aparecer sinais de recessão ou de desaceleração da economia. Tudo indicava que este ano a economia iria crescer no máximo no mesmo patamar dos três anos anteriores. No máximo no patamar de 1%. Então, além do colapso da bolsa de valores, da desvalorização do real, havia também a desaceleração da economia. Tudo isso já estava colocado na situação anterior.
Com a chegada do vírus, essa situação, que já era débil, que já estava fragilizada, entra em colapso. A China que é uma economia planificada teve uma queda violenta da produção industrial no primeiro bimestre deste ano em função do coronavírus. Caiu em torno de 13% a produção industrial. Imaginem aqui no Brasil com um governo que não planeja nada, ao contrário, desplaneja, desplanifica, faz exatamente o contrário da planificação. Exemplificando, uma das primeiras colocações de Bolsonaro acerca do vírus foi de que era uma fantasia. Então, ele estava tratando como se fosse uma fantasia. O que ele fez no domingo, dia 15 de março, depois de ter ficado em isolamento, porque muitos membros da comitiva dele que foram aos EUA estavam infectados? Desceu a rampa do Palácio para se encontrar com seus apoiadores. Ou seja, uma atitude de total irresponsabilidade, inclusive passando por cima da recomendação de seu próprio ministro da Saúde.
As medidas anunciadas pelo ministro Paulo Guedes são adequadas e suficientes?
Então, o governo estava tratando como uma fantasia. Isso explica a meu ver o caráter das medidas anunciadas na segunda-feira (16), pelo ministro da Economia. Acho que não passa de uma fake news. É mais uma fake news desse governo. Por duas razões. Primeiro, Guedes insiste que deve resolver o problema realizando as chamadas reformas. Isso até os neoliberais mais convencidos já estão dizendo que para enfrentar a crise são necessárias medidas de outro tipo. Não são as reformas. Já foram feitas duas “reformas” importantes, na verdade contra-reformas, que foi a da Previdência e a trabalhista, e eles prometeram que a economia voltaria a crescer. A economia voltou a crescer? Ao contrário, desacelerou e segue em crise. Ele agora vem novamente com a cantilena das reformas. Ameaçou inclusive que, se o Congresso não aprovar, vai contingenciar o orçamento em R$ 16 bilhões. Pressionou para o Congresso aprovar, por exemplo, a privatização da Eletrobrás. Ele está querendo aproveitar essa situação para privatizar a Eletrobrás. Em que medida a privatização da Eletrobrás vai ajudar a tirar o país da crise?. Em nenhum sentido. Ao contrário. Privatização significa desnacionalizar. Com isso, a elevação da remessa de lucro leva recursos para fora e tende a piorar a situação no médio e longo prazo.
Ele disse também que tem que aprovar o pacto federativo. O que é o pacto federativo? É a desvinculação do orçamento dos gastos com saúde e educação. Ou seja, ele quer espremer mais ainda a saúde e a educação, acabando com sua vinculação constitucional e legal, que é o que sustenta de alguma maneira os gastos com saúde e educação. Além disso, há também o que ele chamou de projeto do Mansueto, atual Secretário da Receita Federal, que apresentou um projeto de ajuste fiscal nos estados. Ou seja, apertar a situação dos estados. Então, de um lado, ele fala isso, que tem que fazer essas reformas, que é uma verdadeira fake news porque mudanças desse tipo não levam à retomada do crescimento. De outro, o pacote que ele anuncia de R$ 147,3 bilhões é outra fake news. Não entra nenhum dinheiro novo. Tem a antecipação de pagamentos para os setores mais vulneráveis em função do vírus, que é basicamente a antecipação do 13º para os aposentados do INSS para abril e maio e antecipação do abono salarial (R$ 58,8 bilhões). Somando isso com os valores não sacados do PIS/Pasep e mais algumas coisas menores, daria um valor de R$ 83,4 bilhões. Isso aí não é dinheiro novo. É apenas antecipação de pagamentos que iam ser feitos depois. Pode até aliviar a situação momentânea, mas um alivio muito superficial. Não resolve nada. Além de não ser dinheiro novo, é uma quantia irrisória. Se for somar o conjunto do pacote de R$ 147,3 bilhões, representa pouco mais de 2% do PIB. Se fosse dinheiro novo até que ajudaria alguma coisa, mas não é dinheiro novo. É apenas antecipação. E tem outra parte, de R$ 59,4 bilhões, que é a postergação do pagamento de impostos. Adiamento por 3 meses do pagamento do FGTS e do Simples Nacional da União, e tem outras coisa menores. O ministro anunciou outra fake News: que iria incorporar um milhão de famílias no bolsa-família, aplicando R$ 3,1 bilhões. Ora, em seu primeiro ano de governo, Bolsonaro desligou um milhão de famílias desse programa. Está apenas repondo.
Antecipação do 13º. dos aposentados e abono salarial e a postergação de alguns impostos. Nem um dos dois grupos significa entrada de recurso novo na economia. Ao contrário, de um lado, antecipação de recursos que entrariam na economia posteriormente e, por outro lado, a prorrogação de pagamentos de impostos que deveriam entrar agora no caixa da União e só vão entrar depois. É uma mitigação do grave problema que vivem nossos idosos, agravado pela pandemia do vírus. É justo fazer isso, mas tem um efeito irrisório. Não vai resolver o problema do impacto da crise provocado na economia pela chegada do vírus e nem resolver o problema dos idosos. Isso não dá conta da gravidade do problema. O problema, como falei, já existia antes, e se agravou com o coronavírus. Entrou em colapso. O ministro falou que a cada 48 horas irá anunciar medidas novas. Quero saber o que são essas medidas porque o que foi anunciado até agora não ajuda em nada, ou em praticamente nada, dada a gravidade do problema.
Em que sentido você acha que as medidas deveriam apontar?
Eu defendo que, num país como o nosso, da periferia, subdesenvolvido, se façam duas coisas que são decisivas para desenvolver o país. Numa crise como esta, que ninguém sabe direito até onde ela vai, porque tem uma natureza diferente, são duas as principais deisões de política econômica a se adotar. Sempre há outras medidas, mas essas duas devem ser priorizadas. Por um lado, o investimento público, por outro lado fortalecer o mercado interno. Eles dizem que não têm os recursos para isso. Daí porque o ministro Guedes apenas antecipou esses recursos, do 13º e tal. Dinheiro há. O problema é que tem que ir buscá-lo. Por exemplo, quantos bilhões estão sendo destinados à chamada desoneração fiscal? Que basicamente são recursos que beneficiam as grandes empresas, principalmente empresa estrangeiras, que obtêm o lucro maior e mandam lá para fora.
Como, num momento como esse, de crise, você vai suspender a desoneração fiscal? Ela gera emprego.
Quando foram feitas as desonerações, no governo Dilma, não gerou emprego algum. As transnacionais aproveitaram-se da desoneração para aumentar seus lucros e enviar para suas matrizes. Essa é uma situação que tem que ser enfrentada. Por outro lado, o imposto sobre o lucro extraordinário das grandes empresas, o imposto sobre a distribuição de dividendos que não se paga. Imposto sobre remessas de lucros e juros. Tem uma série de fontes. A renda do petróleo que, se trabalhar direito o pré-sal, tem uma renda substancial, mesmo com a queda dos preços do petróleo no momento atual, mas que tem uma renda substancial, que pode ser canalizada.
Então, tem muitas fontes para se obter os recursos. Obtêm-se os recursos e retomam-se os investimentos públicos. Tem que fortalecer o mercado interno com o fortalecimento do poder de compra do trabalhador. Então, de um lado a retomada do investimento público e de outro fortalecer o mercado interno.
E no curto prazo?
Essas medidas que citei têm que começar agora, aliás ontem. Mas devem ser complementadas com um programa de emergência. Guedes disse que estava apresentando um plano de emergência, respondendo ao presidente da Câmara, que está propondo o investimento público e um programa de emergência. Só que o programa de emergência que Guedes está propondo é apenas antecipar o 13º, o abono salarial e postergar impostos. Sem nada de dinheiro novo.
Um programa de emergência tem que levar em conta os trabalhadores desempregados e subempregados. Quantos são eles? No último trimestre de 2019 (pelo levantamento do IBGE), havia 11,6 milhões de trabalhadores abertamente desempregados. Mas atinge 30,7 milhões se somarmos com o subemprego (quem trabalha menos de 40 horas por semana e gostaria de trabalhar mais), o desemprego por desalento (desistiu de procurar emprego) e a força de trabalho potencial (pessoas que realizaram busca efetiva por trabalho, mas não se encontravam disponíveis para trabalhar na semana de referência da pesquisa e pessoas que não realizaram busca efetiva por trabalho, mas gostariam de ter um trabalho e estavam disponíveis para trabalhar na semana de referência).
Tinha que ter um programa arrojado para enfrentar essa situação. Criar condições de vida para essa grande massa de pessoas desempregadas e subempregadas. Um programa que garantisse um salário de emergência. Aquilo que o Keynes tinha dito na década de 1930. Ele disse que tem que pagar as pessoas que estão desempregadas para cavar e tapar buracos – ou seja, para não fazer nada -, mas pagar, porque ao pagar você gera mercado. E as empresas que estão em crise e com capacidade ociosa, no momento em que se gera renda para essa parcela da população, ela vai comprar a as empresas vão produzir. E, quando elas aumentarem a produção lá na frente, vão empregar essas pessoas. Para implementar esse programa de emergência e realizar os investimentos públicos necessários, é fundamental suspender a lei do teto e a lei de responsabilidade fiscal.
Pode-se dizer: com o coronavírus, não daria para fazer isso de imediato. Tudo bem. Tem que se ter o cuidado necessário, não pode ter aglomerações, tem que ter as medidas sanitárias necessárias. De um lado, tem que se ter as medidas sanitárias que são as medidas que agora estão sendo recomendadas pela OMS, mas que já haviam sido implementadas na China, está sendo feito na Itália, e que o Ministério da Saúde do Brasil, ainda que timidamente, está recomendando, que é evitar aglomerações, etc. Mas ao mesmo tempo tem que já ir criando um programa para tirar o país da crise tão logo passe a fase mais aguda da epidemia do coronavírus. Os especialistas estão dizendo que o pico das infecções vai ser daqui a um mês e meio, final de abril. Se for feito o que deve ser feito, pode não ter o pico. Pode achatar o pico. O governo, ao invés de dar o exemplo positivo, dá o exemplo contrário.
Tem que haver as medidas na área da saúde, ao mesmo tempo já tomar medidas econômicas mais estratégicas que fortaleçam os investimentos públicos e ampliem o mercado interno. E um programa de emergência que dê conta desses 28 milhões de pessoas que estão desempregadas e subempregadas. Que se encontre uma forma de remunerar. A fonte de receitas existe, mas está sendo ou drenada para fora ou apropriada pelos especuladores ou pelas grandes empresas que não pagam imposto sobre o superlucro. Isso tem que ser enfrentado em profundidade para poder sair da crise; do contrário, vamos vivenciar, depois que passar a crise com o vírus, um período longo, prolongado, de recessão. Porque a estagnação já está aí. A economia esteve em depressão de 2014 a 2016. De 2017 a 2019, esteve estagnada, crescendo em torno de 1% ao ano. E este ano já anunciava que iria crescer em torno de 1%. Com a crise do vírus, a tendência é ter uma queda violenta da produção.
Alguém mais defende essas ideias que você está apresentando?
Essa questão do investimento público que eu venho defendendo ultrapassou as fronteiras ideológicas. Recentemente até economistas que têm tido uma posição histórica no terreno do neoliberalismo, e que vinham defendendo que o estado tinha que sair da economia, começaram a defender que, para poder sair da crise, tem que ter investimento público. A Mônica de Bolle, da Casa das Garças, o André Lara Resende, que participou do Plano Real, o Armínio Fraga, que foi o responsável pela implantação do chamado tripé macroeconômico no Brasil, também estão defendendo o investimento público. Então, ultrapassou as fronteiras ideológicas. Só o Guedes que não vê isso. E não vê, não é porque ele não saiba disso. Ele não quer ver. Ele não quer ver exatamente por causa de seus compromissos políticos, ideológicos e financeiros com setores do capital financeiro internacional, das transnacionais. Por isso que ele não se dá conta. Mesmo pessoas que conviveram com ele e com suas políticas de privatizações estão defendendo que o investimento público é o caminho para sair da crise.
Fonte: Hora do Povo