Pandemia deve influenciar debate do Fórum Social Mundial no México

Temas como a importância do estado, o direito à saúde, a segurança alimentar e a violência doméstica foram postos a nu com a epidemia de Covid-19. O evento mundial que ocorrerá em janeiro de 2021 no México sempre foi um contraponto à ordem neoliberal.

Fórum Social Mundial de Salvador ocorreu em 2018, em meio ao golpismo e ao assassinato de Marielle Franco. Foto Midia Ninja

O processo de construção do Fórum Social Mundial de 2021, que ocorrerá no México, já vem sofrendo a interferência da pandemia de corona vírus. Reuniões entre conselheiros e representantes dos movimentos sociais de todo o mundo que teriam que ser presenciais estão ocorrendo virtualmente. A reunião com os movimentos sociais mexicanos, prevista para ocorrer naquele país, em junho, já é considerada inviável pela dificuldade de programação dos voos europeus, que se encontram inoperantes.

Mas a influência da pandemia não fica somente na logística do evento. Segundo Liége Rocha, representante da Fedim (Federação Democrática Internacional de Mulheres) no Conselho Internacional do FSM, os impactos econômicos, sociais e políticos da doença em todo o mundo terão efeito direto sobre o clima das mesas de debates. “Embora ainda não haja definição formal na programação, a epidemia está diretamente ligada à questão da vida das pessoas, portanto, o tema da saúde, da defesa da vida e dos direitos humanos certamente fará parte dos debates”, disse Liége, em entrevista ao Portal Vermelho. Ela antecipa que o debate do impacto do corona vírus, particularmente, na vida das mulheres, já vem sendo manifestado em organizações feministas de países como Argentina, Peru, Venezuela, Cuba, Portugal etc.

Por outro lado, ela lembra que o FSM nasceu contestando o Fórum dos países ricos em Davos e sua política neoliberal. Por isso, o fato da epidemia estar se comportando como um divisor de águas no debate sobre o modelo de privatizações dos serviços públicos, de redução do papel do estado e de ajuste fiscal às custas das vidas do povo, deve ganhar força nas organizações da sociedade civil de todo o mundo, quando se reunirem no final de janeiro.

“Temos sempre insistido para que o Fórum defina datas de manifestação mundial, o que me leva a pensar numa proposta ao Conselho Internacional de definir uma manifestação em relação a esta epidemia, assim que isto seja possível fazer”, sugere Liége. Ela enfatizou os números chocantes de violência doméstica que emergiram da quarentena obrigatória devido à epidemia. Outro impacto na vida mulheres, que ela lembra neste momento, é a questão do desemprego, que atinge as mulheres de forma brutal. “Temos visto como mulheres grávidas estão sofrendo para fazer seu pré-natal, diante do cancelamento das consultas na quarentena”, acrescentou.

A epidemia também expôs a importância de um sistema público de saúde estruturado para enfrentar crises violentas como esta. “O Sistema Único de Saúde brasileiro não tem sido valorizado como deveria e isso ficou evidente para a população e para quem não queria ver. Sem ele, sequer haveria enfrentamento da epidemia. Veja que a maioria dos atendimentos tem sido em hospitais do SUS. Os EUA, que são uma potência econômica, não dispõe de um sistema público de saúde e está sofrendo as consequências disso. É hora de mostrar que a saúde é um direito do cidadão e um dever do estado.”

Os pés de barro do neoliberalismo

“A questão da epidemia mexe exatamente com os pés de barro do sistema neoliberal”, é o que diz Rita Freire, da Ciranda Internacional da Comunicação Compartilhada e, também, membro do Conselho Internacional do Fórum. Ela conta ao Portal Vermelho que o FSM surgiu como um grito da sociedade civil contra o sistema neoliberal que vinha num processo de apropriação e privatização do mundo.

Sentia-se, naquele momento (início do século XXI), que o mundo seria governado por instâncias das grandes potências como a OMC, FMI, OTAN, etc. Rita considera que a mentalidade social, naquele contexto, conseguiu criar barreiras a esse processo. No entanto, mudanças no paradigma tecnológico, que pareciam democratizantes, acabaram por ser apropriados pelos setores mais conservadores da sociedade para impor regimes autoritários e ultraliberais. “Agora, começa a haver uma percepção humana de que o sistema é falho. Mas o funcionamento do sistema não é necessariamente humano e vai tentar sobreviver à custa de vidas. A sociedade civil tem a necessidade, neste momento, de fazer uma agenda para que a vida não seja secundarizada por interesses que não são nem econômicos, mas financeiros, de apropriação, mesmo, de recursos”, analisou Rita.

Ela avalia que o tema da desigualdade deve ganhar força com a epidemia, já que as pessoas que não estão protegidas vão morrer mais que aquelas privilegiadas pelo direito de fazer a quarentena. “Não é possível mais aceitar situações como aquela em que Israel destruiu hospitais palestinos e ainda jogou mísseis sobre os médicos que foram socorrer os feridos”, citou ela, os eventos ocorridos em 2014.

Governos de ultradireita, como Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, estão sendo contestados pela postura inadequada diante da crise epidêmica. Rita lembrou uma máxima econômica heterodoxa de que se a família entrar em crise, ela precisa economizar, enquanto, se o estado entra em crise, ele precisa investir mais para evitar a recessão. “Mesmo economistas ortodoxos sabem que se você não fizer isso, vai quebrar como um projeto de economia e de nação. Então, o papel do estado, hoje, está no centro das atenções, e a população está percebendo que esses governantes de extrema-direita não têm preparo nem para aplicar instrumentos de economia clássica liberal, por isso, utilizam-se do autoritarismo para que a sociedade também não reaja”, acrescentou.

Em sua opinião, tanto o neoliberalismo, quanto esses governos, têm pés de barro, mas também têm os instrumentos para se impor. “Portanto, a sociedade tem que decidir que é preciso mudar o sistema, ou se tentar remendar o que não tem conserto, quem vai ser sacrificado é quem tem menos recurso pra se defender. Vamos ter um problema sério de quem é que terá direito a sobreviver, não apenas na enfermaria do hospital, mas depois, também”, afirmou.

Rita considera que o tema da saúde já é a chave para todo tipo de debate, desde já. Para ela, a saúde pública precisa não apenas atender as demandas da sociedade, mas regular o funcionamento do sistema privado de saúde, que também depende muito do estado. Dentro desta perspectiva, ela também considera importante que o tema da segurança alimentar garanta políticas estruturais para a manutenção da agricultura familiar.

O que estes governos estão percebendo, de acordo com ela, é que o cidadão espoliado e explorado é o centro das atenções, neste momento. Ela considera importante acentuar que o presidente Bolsonaro, sequer tem respeito por sua base eleitoral e de apoio, quando a chama para ir às ruas em meio a uma epidemia letal. “Ele sabe que quem tem alguma crítica a ele vai ficar protegido em casa. Mas ele manda as pessoas que acreditam nele de boa fé a ir pra rua. O raciocínio dele é que se essas pessoas sairem pra trabalhar vai morrer um monte de gente, mas vai morrer logo, interromper a epidemia, e os negócios vão voltar a funcionar mais rápido”, analisa ela.

O Fórum Social Mundial de 2021 foi definido para acontecer no México durante a edição de 2018, ocorrida em Salvador (BA). O FSM 2018 ocorreu em meio ao assassinato de Marielle Franco, que causou comoção no evento e espalhou a indignação para todo o mundo.