Crônica da primeira pandemia: os 66 dias em que São Paulo parou

Epidemia de gripe espanhola matou mais de 4 mil pessoas, infectou dois terços da população paulistana e confinou a cidade de 15 de outubro e 19 de dezembro de 1918

Salão de festas do clube Paulistano, em São Paulo, foi transformado em enfermaria improvisada para receber pacientes com gripe espanhola

Varíola, cólera, febre amarela, poliomielite, tuberculose e meningite são algumas das doenças que provocaram grandes estragos ao longo dos quase 500 anos de história de São Paulo. Porém, a única que se aproximou do coronavírus a ponto de botar a maior parte da população trancada em casa, em quarentena, foi a gripe espanhola, em 1918.

“Desde sempre, a capital teve que lidar com epidemias. Talvez a primeira tenha sido em 1564, uma epidemia de varíola que começou três anos antes em Salvador. Elas são muito frequentes e, principalmente, a partir do século 18, quase anuais”, afirma Henrique Trindade, pesquisador do Museu da Imigração.

Mas foi a gripe espanhola – que matou mais de 4 mil pessoas e infectou cerca de dois terços da população de 400 mil habitantes – que fez a capital parar de pulsar. Foram 66 dias de confinamento, entre 15 de outubro e 19 de dezembro de 1918. “Há diversos relatos de jornais com fotos de ruas vazias. O Correio Paulistano cita, particularmente, a ausência de mulheres nas ruas, Theatro Municipal fechado e a falta de jogos de futebol. Tem uma relação próxima com o que estamos vivendo”, diz Trindade.

A Hospedaria dos Imigrantes (hoje Museu da Imigração) virou o maior hospital de São Paulo, com mil leitos para atender à população do Brás e da Mooca. “O governo procurou médicos entre os imigrantes, porque faltava”, afirma Trindade. O blog do museu traz mais informações sobre o período.

Doutor em História pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), Elton Ferreira cita a falta de uma legislação trabalhista à época da gripe espanhola como algo que afetou diretamente os mais pobres da cidade. “Operários se viam obrigados a trabalhar até 16 horas por dia. Passavam a ser, portanto, pessoas com possibilidade de infecção muito maior do que aqueles que podiam ficar em casa”, afirma o historiador.

Segundo Ferreira, a falta de um sistema público de saúde levou quem não tinha grana a depender das instituições de caridade. O resultado foi nefasto. “Tivemos até a proibição de visita aos cemitérios no Dia de Finados, para que as pessoas não tivessem contato com um cenário macabro de vários corpos empilhados”, comenta.

Mas a morte também já estava nas ruas. Bondes foram usados como carros fúnebres, faltou caixão e até coveiros, que morreram contaminados pelo vírus influenza.

Mais pobres

O professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP Gonzalo Vecina Neto afirma que reduzir a desigualdade social é importante para livrar a capital dos danos provocados pelas pandemias, que serão cada vez mais frequentes. “Acredito que essa pandemia vai nos mostrar a grande desvantagem de morar numa cidade cercada de tanta pobreza, como é São Paulo”, diz.

“Enquanto você se sente seguro, a periferia está efervescendo com a doença. Os pobres não são descartáveis. Temos que incorporá-los como cidadãos com direito de viver de forma civilizada”, afirma o professor, que defende a distribuição de uma renda mínima.

Vecina Neto afirma também que uma boa lição poderá vir do uso da tecnologia para aproximar as pessoas do acesso à saúde. “Vi uso de celular na Espanha, Inglaterra, França. Leva o médico onde deve estar, com menos risco para o profissional de saúde”, conta Vecina Neto.

Sistema de saúde

Uma epidemia pode arrasar com o sistema de saúde e provocar mudanças profundas na forma como se enfrentam as doenças. E o silêncio não é a melhor maneira de lidar com isso. Professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, Eliseu Alves Waldman viu de perto, no início da carreira, o estrago que a meningite fez na capital em 1974.

“O sistema de saúde era bem frágil na época”, afirma. “Eu era recém-formado e, na minha residência, vi muitos casos. Chegavam a 200 por dia, com letalidade de 10% a 12%. Teria levado a 30 mil casos no total, e até 3 mil ou 4 mil óbitos.”

Segundo Waldman, a doença foi um dos fatores que induziram à implantação do sistema de vigilância epidemiológica. Apesar do problema evidente, pouco se falava sobre o assunto, porque o país vivia a ditadura militar. “As ditaduras (em geral), não só como foi a nossa, elas tendem a esconder, a não ser transparentes. Isso é muito ruim, porque a população precisa estar bem informada”, afirma.

As epidemias deixaram marcas até na divisão geográfica da capital. O Bexiga, por exemplo, teria relação direta com a incidência de varíola. Entre as versões para o nome do bairro, duas se relacionam à doença. Uma diz respeito ao proprietário das terras, Antonio Bexiga, que ganhou o apelido pelas marcas deixadas pela varíola em seu corpo. Outra porque ali ficaria um local de isolamento para pessoas que contraíram a doença.

Publicado originalmente no Agora

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