A pandemia cobra a autocrítica dos liberais
Precisamos de Estado como em poucas vezes na nossa história. Nossos liberais precisam admitir que não apenas os resultados das políticas implementadas não surtiram efeito, como nos colocaram num quadro mais dramático, com vidas perdidas
Publicado 11/04/2020 16:26 | Editado 11/04/2020 22:26
Desde 2015, a economia brasileira está em recessão ou em estagnação. A narrativa hegemônica para tal desempenho é a de que o governo havia excedido gastos nos períodos anteriores e que seria necessário reequilibrar as despesas públicas.
A concepção convencional da economia sugeria que o ajuste fiscal do então Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, seria capaz de aumentar a confiança empresarial, trazendo crescimento econômico no segundo semestre de 2015. O fracasso dos resultados foi justificado com a suposta insuficiência do corte de gastos, mesmo sendo esse o maior registrado no presente século.
Frente ao insucesso, uma nova alternativa surgiu: a confiança dos empresários voltaria a crescer em um novo governo. Com Michel Temer, a glória vindoura seria obtida através da aprovação de uma emenda constitucional com um teto de gastos públicos, a qual devolveria a credibilidade e, assim, traria confiança. O efeito “crowding out” geraria uma competição de crédito entre o setor público e o privado. Dessa maneira, com menor déficit público, haveria mais crédito ao setor privado. Entretanto, os gastos públicos persistiram a contribuir negativamente para a atividade econômica, não recuperando suficientemente a arrecadação e aumentando o nível de endividamento devido à retração do PIB.
Mais tarde, a reforma trabalhista seria a solução para a geração de empregos e da retomada da atividade econômica. Contudo, passados dois anos de sua aprovação, não se observou retomada de crescimento e tampouco de empregos. Em 2019, a salvação de todos os males seria a reforma da previdência, que também foi aprovada, mas foi incapaz de gerar crescimento econômico, como prometido.
A despeito de todas as medidas convencionais sugeridas para dinamizar a economia, não houve recuperação. O nível de renda per capita de 2014 deve demorar alguns anos para ser reatingido. A conjuntura brasileira já era de uma insuficiência de demanda, por conta do alto desemprego e do aumento das desigualdades, que impediam a retomada vigorosa do consumo.
Eis que no meio do caminho havia uma pandemia. Mundo afora, as políticas fiscais e monetárias foram contundentes: o Estado precisava agir fortemente. A primeira reação do Ministro Paulo Guedes foi afirmar que a reforma administrativa e a PEC emergencial seriam capazes de fazer a economia retomar. Uma cabal demonstração de desconexão da realidade.
Ministro esse que afirmava que o “Brasil está quebrado”, “o dinheiro acabou” e outras declarações que deseducam a população e desrespeitam o conhecimento dos economistas, os quais sabem que o Brasil não está quebrado, pois possui reservas internacionais e que o dinheiro não “acabou”. Prova disso é que ele reapareceu após a pressão política para uma ação mais intensa do governo federal.
Em situações como a que nos encontramos, o Estado tem que intervir fortemente: para manter a renda, os empregos, a produção, as empresas e a vida. Sem uma ação ativa do Estado, teremos uma depressão econômica, desemprego em massa, quebradeira generalizada, miséria crescente, fuga de capitais e mortes em série.
Após anos sucessivos de redução de investimentos em saúde, em pesquisa, na ciência, nas universidades e retração dos bancos públicos, essas são as únicas alternativas para restringir o impacto do que vem pela frente. Precisamos de Estado como em poucas vezes na nossa história. Eis o momento de nossos ilustres liberais admitirem que não apenas os resultados das políticas implementadas no passado não surtiram o efeito na atividade econômica, como nos colocaram num quadro muito mais dramático: os cortes efetuados nos cobrarão em vidas perdidas.
Do ponto de vista do fluxo de capitais, a compreensão liberal nos argumenta que a liberalização é capaz de atrair investimentos externos, já que os agentes passariam a confiar mais no País. Pois nos últimos dez meses, mesmo antes da pandemia, nossas reservas internacionais perderam mais de US$ 40 bilhões. Eis uma cifra que é capaz de quebrar, agora verdadeiramente, um país, não fosse o acúmulo pregresso.
Não é a primeira vez na nossa história que a ilusão liberal viabiliza a fuga em massa. Durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil conseguiu acumular algum volume de reservas. Em 1947, a liberalização cambial do Governo Dutra prometia atrair fluxo de capitais. Apenas dois anos depois as reservas desapareceram e o País teve que apelar à dívida externa.
A ilusão liberal traz o dogma de que o mercado é sempre o melhor arranjo produtivo. Por que produzir tudo, se podemos importar de quem é mais eficiente? Podemos importar respiradores e máscaras, não é verdade? Eis que a pandemia nos prova que não. Que os países ditos liberais são capazes de sequestrar importações e impedir exportações. O Estado alheio atua e cobra mais vidas brasileiras.
Após alguns anos de domínio dos liberais nas narrativas no Brasil, seu fracasso se impõe. Nunca precisamos de tanto de Estado: saúde, pesquisa, ciência, bancos públicos, crédito subsidiado, renda mínima, controle de capitais, aquisição de equipamentos médicos, coordenação de cadeias produtivas para evitar escassez de produtos básicos etc. A realidade explicita que o Estado é fundamental para a sociedade e que o mercado falha nos momentos em que mais precisamos. O alento é que em breve chegará a autocrítica liberal.
Fonte: Brasil Debate