Como a epidemia de HIV preparou a África do Sul para a covid-19

A progressão dos casos de Covid-19 na África do Sul surpreendeu a comunidade internacional. Medidas governamentais acumuladas desde a crise do HIV, contribuíram para o baixo impacto da doença no país.

Na África do Sul, hospitais esperam pela tsunami de doentes que não chega

Nas últimas duas semanas, a África do Sul passou por uma situação excepcional que se explica pelo aprendizado que ficou do enfrentamento à epidemia de HIV: uma queda brusca e inesperada na taxa diária de novas infecções pelo novo coronavírus. A doença que começou infectando principalmente a comunidade homossexual, e, por isso mesmo, foi ignorada pelas autoridades, atrasando pesquisas por tratamentos, na África teve um impacto avassalador. Ficou a lição de que nenhuma epidemia deve ser ignorada.

Um sinal claro do baixo impacto da covid-19 está nos hospitais do país, que tinham se preparado para receber um volume alto de pacientes e continuam calmos. Diante da catástrofe que atingiu países europeus, as autoridades sul-africanas fizeram tudo que imaginavam possível e necessário, mas duvidavam se dariam conta de restringir o avanço da epidemia.

Os leitos e enfermarias foram ampliadas, cirurgias não urgentes foram remarcadas e ambulâncias foram equipadas, enquanto equipes médicas vêm ensaiando protocolos sem parar e autoridades de saúde passam longas horas em reuniões pela internet preparando e ajustando seus planos de emergência. Apesar disso, o fluxo imaginado de doentes não chegou, ainda.

À princípio, médicos epidemiologistas e infectologistas ficaram perplexos com o mistério, mas começam a aceitar que tomaram medidas que outros países ignoram. Três semanas depois de ficar repetindo que era a calmaria antes da tempestade, começaram a se conformar e se preocupar com o desestímulo da população com as medidas de quarentena e comecem a relaxar e facilitar o contágio.

O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, sugeriu que as duas semanas de isolamento no país até agora são responsáveis por estes índices e prorrogou a vigência das restrições em todo o país, que deveriam terminar em uma semana, para o final do mês. O que deveria ser o resultado da quarentena, a baixa contaminação, acaba surpreendendo, já que em outros países em quarentena, o colapso do sistema de saúde ocorreu, mesmo com medidas de isolamento social.

Agora, especialistas começam a falar que o alto da curva de contaminação deve vir em setembro, período em que o sistema de saúde talvez esteja melhor preparado para o impacto. Este seria um cenário desejado por muitos outros países que já vivem o colapso total do sistema de saúde, e até funerário, em meados de abril, enquanto países como o Brasil aguardam o pico da epidemia no mês de maio.

Estatísticas

Na África do Sul, país de 57 milhões de pessoas, até 20 de abril, foram relatados 3.158 casos e 54 mortes (3,4% de letalidade) por coronavírus, segundo a OMS. Até 13 de abril, o país seguia a curva natural mundial, ocupando o primeiro lugar no continente em infecções. Mas, naquele sábado, a curva caiu bruscamente: de 243 novos casos em um dia, para apenas 17. Desde então, a média diária ficou em cerca de 50 novos casos.

Acredita-se que o isolamento precoce e rígido da África do Sul e o trabalho agressivo de rastreamento de contatos com pessoas infectadas estão realmente funcionando. O presidente Ramaphosa disse que era “muito cedo para fazer uma análise definitiva”, mas considerou que, desde que a quarentena foi introduzida, o aumento diário de infecções diminuiu de 42% para “cerca de 4%”.

Por outro lado, fala-se também em subnotificação devido ao baixo número de testes aplicados. No entanto, os números da procura por hospitais, assim como os óbitos, são inegáveis. Médicos da África do Sul e de alguns países vizinhos notaram que os hospitais públicos ainda não viram qualquer indício de aumento nas internações por infecções respiratórias, o sinal mais provável de que, apesar das evidências limitadas, o vírus está se propagando em ritmo intenso.

Teorias não verificadas se espalharam mesmo entre especialistas. Uma diz que os sul-africanos podem ter uma certa proteção contra o vírus. Alguns alegam que isso pode ser devido a uma variedade de fatores médicos, desde a vacina obrigatória contra a tuberculose que todos recebem ao nascer até o impacto dos tratamentos antirretrovirais, ou o possível papel de diferentes enzimas em diferentes grupos populacionais.

Questionamentos e desconfianças vinham de todos os lados, inclusive de que o governo estaria perdendo alguma coisa na gestão do sistema público e privado de saúde. Todos evitam confiar que a abordagem “baseada em evidências científicas” do governo para a pandemia também pode estar dando resultado. Sim, o governo criou comitês científicos e seguiu à risca as recomendações desde cedo, com isolamento social rigoroso. Enquanto isso, em importantes países como EUA, Brasil e Grã-Bretanha, autoridades entram em constante conflito com recomendações científicas.

Medidas diferenciadas

Desde muito cedo, o presidente sul-africano disse que o Governo identificou instalações temporárias para os sem abrigo, assim como locais para quarentena e isolamento social, para pessoas sem possibilidade de o fazer em casa.

Na comunicação ao país, o Presidente informou que o Governo iniciou o abastecimento de água a áreas rurais e zonas urbanas de habitação informal, onde a falta de serviços públicos, de água e saneamento, tem sido gritante durante a gestão pública do partido no poder, o Congresso Nacional Africano (ANC).

No sentido de mitigar a evolução do surto do novo coronavírus na África do Sul, o chefe de Estado anunciou ainda o destacamento do exército para assistir as forças policiais a garantir o cumprimento das medidas anunciadas.

Além do confinamento, o presidente da República sul-africano anunciou também que os cidadãos sul-africanos oriundos de países de elevado risco de contaminação pelo novo coronavírus seriam submetidos a uma quarentena de 14 dias.

Os estrangeiros que chegaram ao país em voos provenientes de países de elevado risco foram obrigados a regressar imediatamente.

Os voos internacionais a partir do aeroporto de Lanseria [norte de Joanesburgo] foram suspensos. Os estrangeiros que entraram na África do Sul antes das medidas provenientes de países de elevado risco de contaminação do surto pandémico, ficaram confinados aos seus hotéis por um período de quarentena de 14 dias.

Para evitar o impacto econômico, Ramaphosa anunciou a criação de um Fundo de Solidariedade [www.solidarityfund.co.za], tendo o Governo contribuído com 150 milhões de rands (7,9 milhões de euros) para o arranque à iniciativa público-privada.

Como nos bairros mais pobres as dificuldades de quarentena são maiores, o governo criou equipes de abordagem porta a porta para orientar, testar e verificar as condições de cada família para o enfrentamento à epidemia. O objetivo preventivo é chegar aos doentes, antes que eles procurem os hospitais, algo que também foi desenvolvido para o enfrentamento à epidemia de HIV.