Israel: “Gantz escolheu legitimar a anexação, o racismo e a corrupção”

“Lideraremos a oposição a este governo de anexação da Palestina”, diz parlamentar árabe.

Foto: Tomer Appelbaum

O acordo anunciado por Benjamin Netnyahu e Benny Gantz na segunda-feira (20) para a formação do governo de Israel traz a incógnita da “instabilidade” dessa coalizão entre rivais —embora não estejam em espectros opostos— e a certeza da continuidade do estado de coisas, na emergência declarada em tempos de pandemia. E o estado de coisas é o ritmo constante de agravamento do quadro político e social em Israel e a consolidação da anexação da Palestina.

Um dos principais jornais israelenses, o Haaretz noticia com frustração e cautela o acordo para a formação de uma coalizão entre o partido de extrema-direita de Netanyahu, Likud, e o de centro-direita de Gantz, Kahol Lavan (“Azul e Branco”). Deverão ser incluídos na coalizão de governo ainda outros partidos de extrema-direita e ultra-ortodoxos que, apesar da ligação com Netnayahu em pontos essenciais, não são propriamente os aliados mais fieis. Por isso, uma das principais notas de cautela no noticiário nacional é a possível instabilidade do governo a ser formado, que vem tentar colmatar um impasse de um ano e três eleições infrutíferas neste sentido.

Na quarta tentativa, em março deste ano, o partido de Gantz conquistou 33 assentos do Parlamento e o de Netanyahu, 36. Mantendo a tendência ascendente, a Lista Conjunta —composta por partidos de maioria árabe e judeus democratas, inclusive a Frente Democrática de Paz e Igualdade (Hadash) em que está o Partido Comunista de Israel (PCI)— consolidou-se como a terceira força no Parlamento (Knesset), com 15 assentos. A maioria necessária para formar um governo é de 61, o que só seria possível com uma coalizão.

O presidente Reuven Rivlin havia então conferido a Gantz o mandato para a formação de um governo, mas a tarefa não foi cumprida no prazo. Na semana passada, Rivlin a transferiu ao Parlamento. Num período de 21 dias, qualquer parlamentar que conseguisse o apoio de 61 membros do Parlamento poderia formar uma coalizão e, caso ninguém conseguisse, o Knesset seria dissolvido para que outra, a quinta eleição, fosse realizada em três meses. Mas o compromisso foi anunciado.

Ao acordo Gantz-Netanyahu será anexada nova legislação para permitir a rotação do cargo de primeiro-ministro entre os dois líderes. Netanyahu seguirá no posto que ocupa desde 2009 por mais um ano e meio e, a seguir, Gantz, que começa como seu vice e ministro da Defesa, assumirá o cargo. A legislação que permitirá o arranjo deve ser aprovada no Knesset.

“PC de Israel vê vitória de Netanyahu: ‘o primeiro-ministro por mais tempo no cargo mais uma vez evadiu os obituários políticos escritos sobre ele depois de seu partido e seus aliados terem fracassado na reconquista da sua maioria em três eleições nacionais seguidas enquanto, neste tempo, ele foi indiciado em três casos de corrupção’.”

O governo começará com 32 e depois terá 36 ministros, além de 16 adjuntos. O Kahol Lavan ficará com o Ministério das Relações Exteriores e o da Justiça, enquanto o Likud ficará com o Ministério das Finanças e da Segurança Pública e com a presidência do Parlamento. Orli Levy-Abekasis, que concorreu nas eleições junto aos partidos da esquerda e centro-esquerda sionista Meretz e Partido Trabalhista, atuará como ministro pelo Likud; o líder do Trabalhista Amir Peretz será o ministro da Economia e outro membro do partido assume a pasta do Bem-Estar e Serviços Sociais. Outros ministérios seguirão chefiados pelos mesmos ministros e o da Educação deve ir para o partido de extrema-direita Yamina, caso este se some à coalizão.

O Likud presidirá a Comissão de Constituição, Direito e Justiça, a Comissão de Assuntos Econômicos e a comissão temporária sobre o coronavírus, enquanto o Kahol Lavan seguirá liderando as comissões de Assuntos Exteriores e a de Defesa. A comissão para a indicação de juízes, talvez o principal contencioso entre Gantz e Netanyahu, será composta pelo Ministro da Justiça e outro ministro do Likud, assim como dois outros parlamentares, um do bloco do Likud e outro do Kahol Lavan. Netanyahu, cujo julgamento pelos três casos de corrupção em que foi indiciado deve começar em 24 de maio, poderá vetar nomeações do próximo advogado geral e promotor, mas não haverá novidades neste âmbito enquanto durar o estado de emergência por conta da pandemia de coronavírus. O acordo também permite que um vice-premiê —neste caso, o posto de Netanyahu em 18 meses— poderá seguir no cargo enquanto indiciado e terá uma residência oficial.

A aposta de Gantz

Até Gantz decidir por tentar a coalizão com Netanyahu, Kahol Lavan era uma coligação entre o Partido da Resiliência Israel, liderado por Gantz, o Telem, do ex-ministro da Defesa Moshe Ya’alon e o Yesh Atid, do ex-ministro das Finanças Yair Lapid, que por algum tempo foi o principal rival de Netanyahu. A coligação foi dissolvida em 29 de março devido à decisão de Gantz, que havia sido eleito o presidente do Parlamento dias antes; seu partido manteve o nome Kahol Lavan.

Como presidente do Parlamento, Gantz evitou aprovar propostas de lei apresentadas por vários parlamentares, inclusive aquela que impediria Netanyahu de assumir o cargo de primeiro-ministro por estar indiciado em três casos de suborno, fraude e quebra de confiança. Gantz havia prometido aos eleitores que aprovaria tal proposta, mas buscou proteger a possibilidade de acordo com Netanyahu, alegando que os tempos de emergência demandam um governo de unidade nacional.

Devido à rendição de Gantz à formação de uma coalizão com Netanyahu, sua aliança centrista dissolveu-se. Em 16 de abril terminou seu prazo para a formação de um governo. Segundo fontes do partido de Gantz citadas pelo Haaretz, a composição do governo é feita de contrapesos para evitar o predomínio de um ou outro partido em diversas áreas. “Este governo não pode realizar a visão fundadora do Kahol Lavan, mas pode impedir o Likud de executar as mudanças que buscava realizar no sistema judicial.”

Entretanto, no editorial de 19 de abril, o Haaretz afirmava que Gantz se recusava a enxergar a realidade. O texto recorda que Netanyahu praticamente convocara uma revolta civil caso a Suprema Corte ou uma legislação aprovada o impedissem de assumir o cargo por conta do seu indiciamento. O editorial argumenta que Gantz “recusa-se a compreender o fato de que não é o coronavírus, mas o iminente julgamento de Netanyahu a única ameaça na cabeça do primeiro-ministro, e é apenas sua tentativa de evadir um julgamento que o leva a buscar uma parceria com Gantz.” E complementa que só na semana anterior é que Gantz e seus aliados entenderam que Netanyahu estava insistindo em controlar a nomeação de juizes que julgariam seu caso.

Gantz acredita que a pandemia de coronavírus mudou as regras. Entretanto, torna-se claro que a pandemia é uma cortina de fumaça usada por Netanyahu para atrair [Gantz] para a armadilha de um governo de unidade,” afirma o texto, que, listando os erros de Gantz, argumenta: “Depois de desmantelar o partido do seu rival, Netanyahu usará Gantz para desmantelar o estado de direito. Se isso acontecer, Gantz não poderá se declarar inocente.”

Gantz também busca eliminar a questão palestina de cena através da consolidação da anexação já em curso. Importa lembrar, ainda, que Gantz foi o comandante do exército e da força aérea israelense durante uma das mais brutais ofensivas contra a Faixa de Gaza, a de 2014, que matou mais de dois mil palestinos, majoritariamente civis, e deixou o território, novamente, em escombros, com ações que rendem inúmeras acusações de crimes de guerra ao governo Netanyahu. Aquela ofensiva, aliás, fez parte da campanha eleitoral de Gantz, com imagens da destruição de Gaza e das mortes provocadas transmitidas como um dos grandes feitos do então comandante, que foi levado ao tribunal da Holanda pelo refugiado palestino Ismail Ziadah pela morte de seis dos seus familiares.

Fortalecer a resistência na emergência e depois dela

“É assim que as democracias morrem no século 21. Não são eliminadas por tanques que adentram o Parlamento. Morrem desde dentro”

No Maki, portal de notícias do PCI, a matéria sobre o acordo para a formação da coalizão de governo prenuncia o reforço das medidas econômicas neoliberais e o avanço e fortalecimento da ocupação da Palestina por Israel, além de ressaltar a ausência de propostas sobre a grave crise social, econômica e sanitária no quadro da pandemia de Covid-19.

Israel registra uma taxa de desemprego de 26,1%, com um aumento de quase mil novos requerentes de apoio por dia. Assim, o total de desempregados em Israel na semana passada, de acordo com o Maki, era de 1,085 milhão de pessoas. No início de março, com as ordens de distanciamento social emitidas, a taxa de desemprego estava abaixo dos 4%; desde então, mais de 935 mil pessoas inscreveram-se na segurança social para receber salário desemprego —a maioria havia sido posta sob licença não remunerada. A expectativa é que mais de 400 mil trabalhadores demitidos ou postos sob licença não remunerada durante a crise epidêmica continuarão desempregados após o fim das restrições. A parlamentar Aida Touma-Sliman contestava na Suprema Corte uma norma emergencial que permitia aos empregadores colocar mulheres grávidas sob licença não remunerada durante a crise.

No domingo (19), milhares de pessoas protestaram em Tel Aviv contra as medidas impostas no quadro da emergência e ao governo de extrema-direita, respondendo à convocatória do movimento “Bandeira Negra”, que inclui a Hadash e o PCI, no que foi considerado o mais político dos protestos realizados por movimentos sociais no último mês desde que entraram em vigor as restrições a propósito da epidemia. Outros milhares participaram de protestos virtuais pelo Facebook e teleconferência. No protesto em Tel Aviv, até mesmo Yair Lapid, cujo partido conformava a coligação Kahol Lavan, fez um discurso em que acusava Netanyahu de destruir a democracia israelense e o seu antigo aliado Benny Gantz de permitir que isso aconteça, referindo-se às acusações de corrupção contra Netanyahu e às demandas que Gantz atendeu. “É assim que as democracias morrem no século 21. Não são eliminadas por tanques que adentram o Parlamento. Morrem desde dentro”, disse Lapid na manifestação, citado pelo Maki.

O PCI considera o acordo pela coalizão de governo uma vitória de Netanyahu: “o primeiro-ministro por mais tempo no cargo mais uma vez evadiu os obituários políticos escritos sobre ele depois de seu partido e seus aliados terem fracassado na reconquista da sua maioria em três eleições nacionais seguidas enquanto, neste tempo, ele foi indiciado em três casos de corrupção.” Além disso, continua o Maki, Netanyahu impõe seus planos para a anexação da Cisjordânia ocupada, já endossada pelo governo de Donald Trump em seu chamado “plano de paz”. O premiê poderá, como reconhece o acordo com Gantz, “colocar para a aprovação pelo gabinente e ou o Knesset” o plano de imposição da soberania israelense sobre a Cisjordânia a partir de 1º de julho, com o objetivo, segundo o texto do acordo, de “promover interesses estratégicos e securitários”.

Os parlamentares da Lista Conjunta condenaram o acordo veementemente. “Gantz agora demonstra que ele é um clone de Netanyahu”, disse Youssef Jabareen, parlamentar pela Hadash. É claro para ele que Netanyahu segue no controle do governo de unidade, com a intenção de aprofundar o controle militar de Israel sobre os palestinos nos territórios ocupados e iniciar o processo de anexação das colônias ilegais de Israel construídas sobre terras roubadas palestinas.

O líder da Lista Conjunta Ayman Odeh é citado pelo Maki classificando o acordo de governo como um insulto à maioria dos cidadãos israelenses. “O governo de rendição de Gantz e Netanyahu é uma bofetada para a maioria dos cidadãos que se dirigiram às urnas uma e outra vez para enxotar Netanyahu”, disse Odeh, considerando que Gantz “escolheu legitimar a anexação, o racismo e a corrupção”. A parlamentar pela Hadash Aida Touma-Sliman disse que o governo será perigoso e que “Gantz entrou em campo esperando substituir Netanyahu, mas acabou fortalecendo as políticas racistas e anti-democráticas dele. Nós lideraremos a oposição a este governo de anexação — durante e depois da crise de coronavírus.”

Em declaração citada no Maki, o PCI afirmou que “a formação do novo governo de extrema-direita de anexação significa um fim à solução de dois estados e o desmantelamento dos direitos do povo palestino como estabelecidos pelo direito internacional e por resoluções, assim como mais políticas capitalistas neoliberais econômicas e sociais. Continuaremos lutando contra o governo Netanyahu-Gantz nas ruas e no Knesset.”

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