Epidemiologista não acredita em subnotificação de óbitos em São Paulo

Em entrevista ao Vermelho, o professor Marcos Boulos considera fundamental saber o número de óbitos, já que a subnotificação de casos é um fato mundial. Ele considera natural a flexibilização do isolamento, mas defende cautela no processo.

Cidade de São Paulo se antecipa ao volume de óbitos abrindo covas no cemitério de Vila Formosa, para não haver colapso do sistema funerário e seja necessário enterrar em covas coletivas.

Em entrevista ao portal Vermelho, o professor de medicina da USP, Marcos Boulos, surpreendeu-se com a possibilidade de haver subnotificação de mortes por covid-19 na cidade de São Paulo. “Se houver, é apenas o tempo para registrar, porque pode demorar um pouco, mas não existe subnotificação real de óbitos”, ponderou.

Segundo a análise do epidemiologista Paulo Lotufo, da USP, com base em dados fornecidos ao G1 pelo Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade (PRO-AIM), da Secretaria Municipal da Saúde, as mortes provocadas pela pandemia de covid-19 no município estariam 168% acima do número atribuído oficialmente.

A conclusão preliminar do professor Lotufo se deve à observação de que, em março, teria havido 743 mortes a mais por causas naturais (excluindo homicídios e acidentes em geral) do que a média do mês nos últimos cinco anos. Como 277 dessas mortes foram atribuídas oficialmente à covid-19, 466 teriam razões suspeitas. O gráfico revela uma média de seis mil óbitos totais na cidade no mês de março dos últimos anos, enquanto neste mês de março este número teria sido de 6700.

Boulos, que é assessor especial de doenças transmissíveis da Secretaria de Estado da Saúde, e faz parte do Grupo de Contingência do Coronavírus, não acredita que estes 466 óbitos por causas naturais a mais, num universo de seis mil, sejam um caso de subnotificação relevante para alterar os cálculos que vêm sendo projetados.

“A notificação do óbito pode estar atrasada, mas não subnotificada. Tem uma pletora de casos que estão morrendo a mais, por causa da epidemia, então pode haver atraso na notificação. Para haver notificação, é preciso que o óbito cumpra os requisitos para ser notificado. Como não tem recurso humano a mais para realizar essa averiguação, pode atrasar alguns dias”, considerou. Como agente público, acompanhando todo o sistema estatístico do estado, ele acha essas conclusões “precipitadas e improvisadas”.

Boulos garante que todo óbito passa pelo teste antes do sepultamento. “Como a necrópsia não está sendo feita, para não contaminar os profissionais, pode, de fato, não conhecer as causas de todos os casos. No entanto, para o covid-19, nós temos como fazer o teste e diagnosticar”.

Estatística de óbitos é suficiente

Infectologista Marcos Boulos tem quase 50 anos de formação na área e assessora o Governo Dória no controle da epidemia de covid-19. foto Cecília Bastos/USP

Ele considera que a subnotificação é importante para sabermos o real impacto da epidemia, mas ela não ocorre em relação a óbitos, mas em relação a casos de contágio do coronavírus. Ele explica que muitas pessoas são assintomáticas e, portanto, não é possível fazer o diagnóstico.

Como não é viável, no momento, fazer o teste em larga escala, atingindo toda a população, ou uma amostragem, o registro das mortes é o melhor termômetro para medir a dimensão da epidemia. “O fato de saber a quantidade de mortes é um dado importante para saber o impacto da doença, já que a testagem em grande escala não é viável em nenhum lugar do mundo. Tanto é, que temos feito o cálculo da progressão da epidemia pelo número de mortos”, confirma ele.

“Mesmo que tivesse sorologia para todo mundo, não faríamos o teste para assintomáticos, agora”. O epidemiologista explica que tem muita gente sem sintoma algum, mas com o vírus. “Vai ter sempre subnotificação com ou sem o teste sorológico. Por isso, que os óbitos são os norteadores do nosso cálculo”.

Taxa de letalidade, só mais tarde

Como não é possível saber o número real de pessoas infectadas, não é possível medir com precisão a taxa de letalidade da covid-19. Por isso, haveria tanta variação nos números, com taxas menores em países em que a epidemia já passou do pico, enquanto em países onde a doença começa a avançar, a taxa de letalidade é aparentemente alta em relação ao número de casos diagnosticados. Na opinião do professor, pesquisadores que já começam a comparar taxa de letalidade entre localidades estariam sendo apressados.

“A taxa de letalidade só pode ser medida mais tarde”, diz Boulos. Porque não é possível ter a taxa enquanto a epidemia caminha e há subnotificação de casos. Daqui há algum tempo vai ser possível fazer inquérito sorológico na população, por amostragem, e então vamos saber quantos casos houve. Só a partir daí é possível calcular a taxa de letalidade real. “No meio da fogueira não dá pra calcular essa taxa”, ressalta.

Evolução da curva em São Paulo

Periodicamente, os epidemiologistas comparam o número de mortos. Com isso, é possível saber qual o impacto da doença no aumento desses óbitos. A partir disso, dá pra observar aumento ou diminuição de mortes a cada semana, podendo calcular o achatamento da curva, conforme diminuem os óbitos e quando vai terminar o contágio. “Agora, saber a taxa real de óbitos, só mais pra frente. Provavelmente vai ser bem menor do que estamos calculando no momento, por subnotificações que nós não temos”.

Ele salienta que, se a população não fizer nada para controlar a epidemia, o contágio aumenta dez vezes a cada 16 dias. Mas, Boulos relata que tem observado no estado de São Paulo que o aumento real tem sido, nos últimos 16 dias, em torno de 3,8%, o que significa que tivemos uma redução de cinco vezes a taxa esperada”, diz ele, otimista.

Por isso, se fala em achatamento da curva. Com isso, está morrendo 3% a 4% a mais, quando poderia ser 16%. Daqui a 16 dias, esta taxa ainda vai estar dobrando, então, até chegar no pico da curva, mesmo havendo um aumento importante, não será mais em progressão geométrica como ocorria no começo.

“Vai aumentar o número absoluto, porque tem muita gente infectada, mas o número relativo vai diminuindo gradualmente, e, provavelmente, pelos cálculos que estou fazendo, em meados do fim de maio, você atinge a curva de Gauss e não aumenta mais a progressão. Vão ser só números absolutos e vai começar a cair a mortalidade”, garante.

Flexibilização do isolamento

Já pode haver flexibilidade do isolamento? “Já está existindo. Mesmo que a gente não queira, vemos que muitas coisas voltaram a funcionar”, afirma. Boulos encara com alguma naturalidade este movimento da sociedade, considerando o nível de controle que se alcançou e o controle que é possível manter, mesmo com a flexibilização.

Ele defende que tem que tornar obrigatório alguns procedimentos de proteção, como o uso de máscaras e outros cuidados especiais, e não abrir lugares onde possa haver aglomeração. A flexibilizaçãoo tem que ser com muito cuidado, na opinão dele, sem abrir shoppings, espetáculos, shows, congressos, jogos etc.

“Dá pra abrir lojas pequenas onde as pessoas são poucas. Aumentar as entregas a domicílio. Insistir que as pessoas saiam o mínimo possível de casa. Foi isso que fez com que a gente tivesse um achatamento importante. Tanto é que temos quatro vezes menos óbitos agora, do que teríamos se não tivesse isolamento social”, acrescenta ele.

O ideal seria manter o isolamento? Para acabar com a curva mais rápido, sim. “Mas aí tem o par efeito de manter todo mundo sem fazer nada, muita gente vai ficar sem comer e vai morrer por outra causa. Vai ter que organizar isso de uma maneira para que as pessoas não sofram posteriormente por falta de recursos e insumos, etc”, avaliou ele, considerando que o remédio não pode matar mais que a doença.

Ele ainda afirmou que o que pode-se fazer “diante de uma progressão menor da doença”, é flexibilizar “com muito cuidado”, distinguindo regiões onde o impacto da doença é menor, podendo diminuir o rigor da quarentena, enquanto outras cidades com maior incidência do contágio mantém o isolamento.

A suposta subnotificação de óbitos

De acordo com a divulgação do G1, a pesquisa do professor Lotufo mostra que, não apenas as 277 mortes comprovadamente resultantes de infecções ou as demais 258 suspeitas, casos de síndromes respiratórias, mas o total – as 743 – é o que ele chama de “excesso de mortalidade por todas as causas”, número que traduziria não apenas a subnotificação nos casos oficiais, mas o impacto verdadeiro da Covid-19 na cidade.

“Quando você tem uma pandemia, há uma alteração total dos relacionamentos de saúde e doença”, defende Lotufo. “Uma característica especial deste vírus é um quadro mais grave para quem já tem, por exemplo, doença cardíaca. Essas pessoas iam viver por mais quatro, cinco, dez anos e acabam morrendo. Começa a haver competição pela atenção médica com outras doenças.”

Pouco importa se alguém morre de Covid-19 oficialmente, se seu caso é registrado apenas como pneumonia ou se bate o carro, sofre traumatismo craniano e não encontra vaga na UTI. “Mesmo que a razão imediata da morte seja outra, a causa de tudo não deixa de ser a Covid-19”, afirma Lotufo. Enquanto a atenção se volta para o combate ao vírus, cirurgias deixam de ser feitas, tumores deixam de ser extraídos, há queda na vacinação infantil, em programas de combate a tuberculose ou hanseníase e vários outros.

Em São Paulo, nenhum lugar está tão próximo da realidade de óbitos pela epidemia quanto o PRO-AIM, que recebe todos os atestados de óbitos na cidade das funerárias, hospitais, casas de repouso ou cartórios. Até domingo passado, o abril paulistano já somava 5.612 mortes, 867 oficialmente atribuídas ao coronavírus e outras 1.277 a síndromes respiratórias. Só o número confirmado já faz da Covid-19, de longe, a principal causa de mortalidade na cidade, respondendo por 39% das declarações de óbito registradas ou 15% do total.

As mortes estão pouco acima da média dos últimos cinco anos (5.575). Trata-se, contudo, de um número ainda provisório, ainda bem abaixo do que deverá ser o valor oficial. Só no início do mês seguinte o total passa a refletir a realidade. “As declarações de abril vêm impreterivelmente até 10 de maio”, afirma Cássia Malteze, gerente do PRO-AIM, confirmando a asserção do professor Boulos. “Até lá, o número fica bem abaixo do real.”

Será preciso também fazer ainda o ajuste relativo aos residentes de outras cidades que morrem em São Paulo – e vice-versa. Várias causas, como mortalidades infantil e materna, homicídios, suicídios ou acidentes, exigem investigação minuciosa. Certos casos podem se estender por meses. Só agora o PRO-AIM está prestes a concluir a classificação final das mortes por causas externas ocorridas em 2018.

Para a Covid-19, foi montado um esquema de emergência, em que hospitais e outras fontes enviam as informações digitalmente por e-mail. “Por determinação do Ministério da Saúde, esse dado precisa estar disponível em 24 horas, no máximo 48 horas”, afirma Cássia. Tolosa defende a adoção de um sistema digital mais sofisticado, para que haja agilidade nas estatísticas. Noutras cidades brasileiras, contudo, os sistemas são ainda mais deficientes. Daí a dificuldade de medir com rapidez a mortalidade por todas as causas, para poder entender melhor – e combater com eficácia – a pandemia.

Com informações do G1

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