Ex-chefe do FMI acusa Bolsonaro: País perderá muito mais vidas e renda
Para Maurice Obstfeld, PIB brasileiro pode encolher mais que os 5,3% projetados pelo FMI
Publicado 11/05/2020 14:50
A “resposta desdenhosa” do presidente Jair Bolsonaro à pandemia da Covid-19 custará caro ao Brasil – tanto em termos de vidas como de renda. É o que avalia Maurice Obstfeld, que foi economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) entre 2015 e 2018. “Com uma liderança apropriada, o Brasil claramente teria a capacidade de salvaguardar a saúde das pessoas”, diz ele, em entrevista ao Valor Econômico. “Mas agora (o País) é uma área de alta incidência na América Latina. Isso não protege a economia – pelo contrário.”
Professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Obstfeld afirma que a atitude de Bolsonaro pode levar a uma segunda onda de infecção ou a um confinamento mais severo à frente, por exemplo. “E as pessoas podem não ser capazes ou não ter vontade de participar integralmente da economia, se elas estiverem doentes ou temerem a infecção.” Na visão do economista norte-americano, o PIB brasileiro pode encolher mais do que os 5,3% projetados neste ano pelo FMI – justamente por causa da resposta bolsonarista à crise do coronavírus.
A seguir, os principais trechos da entrevista, realizada por e-mail.
Valor: Quais as principais implicações desta crise incomum para a economia global?
Maurice Obstfeld: Veremos contrações fortes do PIB em 2020 – possivelmente uma queda de 6% na América Latina – e um salto nas taxas de desemprego, com um ritmo de recuperação que tende a ser lento e dependente do avanço do controle e tratamento da Covid-19. Países mais pobres vão ser duramente atingidos e, dentro dos países, a desigualdade entre ricos e pobres vai se acentuar.
Valor: O sr. acredita numa recuperação em “V” da economia global ou a atividade econômica mundial vai levar mais tempo para ganhar fôlego? Por quê?
Obstfeld: Não vamos ver uma recuperação em “V”. Não se pode consertar o desemprego e as falências tão rápido, mesmo se a resposta à doença for encontrada muito rapidamente. Vejo um caminho longo para os níveis de atividade voltarem ao patamar do começo de 2020.
Valor: A China teve uma contração significativa do PIB no primeiro trimestre. O sr. acha que a China terá uma recuperação mais forte a partir do segundo trimestre ou a recessão nos EUA e na Europa vão contribuir para minar a retomada da economia chinesa?
Obstfeld: Há alguma reação na China, mas não suficiente para compensar totalmente o dano no curto prazo. E a doença terá efeitos negativos prolongados, devido à necessidade de medidas contínuas de prevenção e vigilância, até que tratamentos médicos efetivos sejam descobertos.
Valor: A crise atual terá principalmente efeitos transitórios ou o impacto será mais estrutural, afetando as cadeias globais de suprimentos e acelerando o processo de “desglobalização”?
Obstfeld: Pode haver alguns esforços para repatriar partes das cadeias de oferta. Um ímpeto mas significativo em direção à “desglobalização” será o conflito de política econômica entre países, em parte o resultado do rancor de ações não cooperativas durante o confronto, em parte o resultado do jogo de culpados entre EUA e China, com os EUA pressionando terceiros países a escolher um lado. Talvez tenhamos perdido a chance de uma abordagem global verdadeiramente cooperativa para um problema mundial. Em vez disso, enveredamos por um caminho que leva à fragmentação e ao conflito muito depois da covid-19 ter passado.
Valor: Como a crise atual se compara com a crise financeira global de 2008 e 2009? Qual é pior?
Obstfeld: Esta crise é claramente pior nos efeitos econômicos e advém de uma causa diferente: a necessidade de retrair a atividade econômica para conter a disseminação do vírus. No entanto, esta crise tem efeitos potenciais de repercussão financeira similares aos que começaram a crise de 2008 e 2009, devido aos temores de calotes.
Valor: Confinamentos rigorosos são a melhor estratégia para enfrentar a crise do coronavírus, tanto do ponto de vista de saúde pública quanto do econômico?
Obstfeld: Um confinamento temporário pode ser efetivo do ponto de vista médico se o tempo é usado com inteligência para implantar testagem e monitoramento amplo, para que uma reabertura segura mais cedo seja possível. Como os pobres obviamente sofrem mais nesse cenário e podem também viver em condições que tornam o distanciamento social mais difícil, eles precisam especialmente de recursos médicos e financeiros. Esses problemas se tornam extremos em países mais pobres, onde o “lockdown” talvez não seja nem factível. Nesse caso, é fundamental investir pesadamente em saneamento e em ampla disponibilidade de tratamento médico.
Valor: O presidente Jair Bolsonaro é contra medidas de isolamento social, minimizando o risco da doença e afirmando que está preocupado com o impacto do confinamento sobre a e economia. Como o sr. avalia essa abordagem?
Obstfeld: A resposta desdenhosa do presidente Bolsonaro à doença custará caro ao Brasil, tanto em termos de vidas como de renda. Com uma liderança apropriada, o Brasil claramente teria a capacidade de salvaguardar a saúde das pessoas. Mas, agora, é uma área de alta incidência na América Latina. Isso não protege a economia – pelo contrário.
Valor: Por quê?
Obstfeld: Porque pode levar a uma segunda onda de infecção ou a um confinamento mais severo, por exemplo. E as pessoas podem não ser capazes ou não ter vontade de participar integralmente da economia, se elas estiverem doentes ou temerem a infecção.
Valor: A economia brasileira pode sofrer mais que a de outros países por causa da atitude de Bolsonaro em relação às medidas de confinamento? E o FMI estima uma queda do PIB de 5% neste ano. O número pode ser pior por causa da resposta de Bolsonaro?
Obstfeld: Sim, para as duas questões.
Valor: O que o Brasil deve fazer para enfrentar a crise?
Obstfeld: A estabilidade social requer que o governo proteja os menos favorecidos, custe o que custar. Enfrentando condições financeiras globais, o resultado tende a ser um período de inflação mais alta. Para navegar nesse período, o governo vai ter que ser transparente sobre a sua estratégia e os “trade offs”, e comunicar de modo crível um plano para retornar à estabilidade de preços em não muito tempo.