Seis meses depois, golpe continua a sangrar a Bolívia

O golpe deixou 35 mortos, 800 feridos, mais de 1,5 mil presos e centenas de exiladas. A busca por desaparecidos continua. Políticas neoliberais têm sido aplicadas e, além da pandemia, o país mergulhou em crise política, social, econômica e alimentar.

Bolivianos

No dia 10 de novembro de 2019, um golpe de estado violento na Bolívia foi digitalizado pelos Estados Unidos, que conseguiram articular a oligarquia nacional racista com as Forças Armadas, a polícia e os grupos paramilitares, para forçar Evo Morales a renunciar com a força das armas.

O objetivo era controlar novamente os recursos naturais, principalmente o lítio, e apagar o exemplo de um governo de rosto indígena que chegou ao poder pela primeira vez desde a conquista genocida da América. Em 12 de novembro, Janine Áñez se proclamou presidente, deu carta branca à repressão, e graças a isso ocorreram os massacres de Sacaba e Senkata.

O golpe deixou 35 pessoas mortas, 800 feridas, mais de 1,5 mil detidas e centenas de exiladas. A busca por líderes, ex-funcionários e jornalistas desaparecidos continua até hoje. Políticas neoliberais têm sido aplicadas desde o retorno da direita ao golpe, e o país mergulhou em uma crise política, social, econômica e alimentar.

A covid-19 e a crise da saúde reconfiguram o panorama, atando-se a outras crises que adquirem uma nova forma de crise absoluta, com características específicas. O povo clama por eleições para obter um governo legítimo que possa enfrentar a pandemia e a crise econômica.

Enquanto isso, Áñez usa a pandemia para permanecer no poder indefinidamente, e pretende dispensar as eleições – originalmente agendadas para 3 de maio –, a fim de consolidar um projeto político neoliberal e um estado militar e policial terrorista.

Do país em ascensão econômica ao que volta a conviver com a fome e os suicídios

Durante o governo de Evo Morales, a Bolívia deixou de ser o segundo país mais pobre da América Latina e ocupou o primeiro lugar de crescimento econômico da região, com uma média anual de 4,9%, segundo as Nações Unidas e o Banco Mundial. O Produto Interno Bruto do país se quadruplicou, passando de 9,5 bilhões para 45,5 bilhões de dólares. Seus indicadores macroeconômicos foram os maiores da América do Sul, dignos do país que mais reduziu a pobreza extrema: de 38% para 15%.

Após o golpe, a Bolívia se tornou um país onde as pessoas se suicidam de fome. Três casos de enforcamento foram reconhecidos em abril. Um deles, o de uma menina de 12 anos, que não suportava a dor de estômago. Também o de um pai de uma família desesperada por não poder alimentar seus 8 filhos.

Nesse contexto, em 27 de abril, foi cortado o fornecimento de gasolina na região de Cochabamba, causando a morte de mais de 11 milhões de peixes devido à falta de combustível para as máquinas que oxigenam as piscinas artificiais de 3,5 mil piscicultores, causando danos econômicos. A medida foi uma forma de punir uma região rebelde com relação ao governo golpista.

Por outro lado, o novo governo tentou impedir a campanha #TropicoSolidario realizada também na região de Cochabamba, que visava a distribuição de frutas para famílias de baixa renda. Em 27 de abril, Áñez pediu um dia de “jejum e oração” para vencer a covid-19. Em um país que volta a ser atacado pela fome, a ditadora realizou bênçãos massivas por helicópteros em várias cidades, em um país laico.

O povo clama por eleições gerais para sobreviver

No dia 3 de maio, seriam realizadas as eleições gerais, que foram adiadas devido à pandemia. Em 29 de abril, houve panelaços e um protesto com fogos de artifício, para exigir uma data para as eleições, a fim de escolher um governo legítimo para enfrentar a crise econômica e de saúde no país.

Os conspiradores atrincheirados no poder ameaçaram fechar a Assembleia Legislativa, para evitar que se estipulasse uma nova data para as eleições gerais. Em 30 de abril, foi aprovada a Lei 1.297 de Adiamento de Eleições Gerais, que concedeu um prazo de 90 dias para o Tribunal Eleitoral fixar essa data.

Porém, Áñez vetou a lei e anunciou que iria à Justiça – também dominada pelos golpistas. Vale lembrar que o mandato do “governo de transição” de Áñez terminou oficialmente em 22 de janeiro, mas foi prorrogado até 3 de maio. Neste mês, o mandato terminou pela segunda vez, e, com a pandemia como justificativa, foi imposta a renovação automática por tempo indefinido, para consolidar seu projeto político neoliberal e um estado militar e policial terrorista.

Perseguição, prisões e censura

Para impor o terror e perturbar a organização social, desencadeou-se a caçada, policial e judicial, contra líderes, ex-funcionários e jornalistas não aliados ao governo, com a supressão dos direitos e garantias constitucionais. Há vários que se encontram em asilo político na embaixada mexicana em La Paz, que são reféns da ditadura.

O terrorismo de Estado foi radicalizado pela pandemia, que é usada como estratégia para restringir a liberdade de expressão e aprisionar os oponentes. Arturo Murillo, ministro de Governo (similar à Casa Civil no Brasil), atua como juiz e promotor, se orgulha de realizar patrulhas cibernéticas e ameaça prender por até 10 anos aqueles que divulguem “desinformação” sobre a covid-19.

O objetivo é ocultar a ineficácia do governo. A imprensa local protege midiaticamente o governo, demoniza movimentos sociais e justifica tudo de negativo que acontece com Evo Morales através do discurso da “herança maldita” que ele supostamente deixou.

Zonas liberadas para a corrupção e o tráfico de drogas

O desmantelamento de empresas estratégicas é um exemplo de corrupção. Na companhia aérea boliviana BoA, os executivos foram substituídos por parentes de Fernando Camacho, um dos líderes do golpe, que vinham da companhia aérea privada Amazonas.

O processo começou com a sabotagem da empresa nacional, para afetar sua rentabilidade. Na companhia telefônica estatal Entel, o gerente Elio Montes foi processado criminalmente por peculato, mas teve tempo de fugir para os Estados Unidos. Na petroleira YPFB, o presidente Herland Seliz renunciou após um escândalo por contratos irregulares de seguro e compra de combustível por um preço alto, sem licitação.

No governo golpista, o nepotismo é a norma, e famílias, amigos e amantes de funcionários públicos ocupam cargos no governo, além de usar indevidamente os bens do Estado. Os aviões e helicópteros da Força Aérea da Bolívia são %u20B%u20Bcomo táxis para “voos humanitários”, ou seja, para viagens de férias de particulares em quarentena.

Aliás, esses mesmos aviões não são usados %u20B%u20Bpara trazer de volta os milhares de bolivianos que estão presos há mais de um mês em diferentes países, e os testes para covid-19 são transportados por terra para os laboratórios de La Paz e Santa Cruz, o que faz com que os resultados demorem uma semana para chegar.

Os laboratórios prometidos para cada departamento nunca chegaram. Por outro lado, aluguel de hotéis de 5 estrelas foram contratados por milhões de dólares para isolamento de infectados.

O destino dos créditos entregues pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e as doações milionárias de vários países e organizações para enfrentar a covid-19 são desconhecidos. As compras de insumos anunciados pelo governo nunca chegam, e as (já não tão) novas autoridades se recusam a publicar as faturas, gerando suspeitas de superfaturamento.

O desembarque de narcojets no aeroporto oficial de Guayaramerín, em Beni, região de origem da ditadora Áñez, passou a ser uma constante. Em 28 de janeiro, um narcotraficante foi interceptado no México com uma tonelada de cocaína carregada no aeroporto de Guayaramerín, revelando os laços da família de Áñez com o narcotráfico.

Carlos Áñez, seu sobrinho, está preso no Brasil por tráfico de drogas. Gustavo Álvarez Peralta, narcotraficante do cartel de Jalisco, no México, e procurado pela agência antidrogas dos Estados Unidos, chegou a ser nomeado diretor de produção agrícola. Logo, quando o escândalo era iminente, pediu demissão… e fugiu e misteriosamente.

Políticas necróticas importadas dos Estados Unidos para enfrentar a covid-19

Em 22 de março, a quarentena foi decretada e até hoje os hospitais carecem de respiradores, medicamentos, suprimentos, equipamentos de biossegurança, além de médicos. Contágios e mortes entre pessoal de saúde, militares e policiais estão em aumento, enquanto faltam equipamentos de biossegurança.

Em 11 de maio, começou a “quarentena dinâmica”, tornando o isolamento mais flexível em algumas regiões. Em 5 de maio, a secretária de Saúde de Santa Cruz de la Sierra, que concentra 60% das infecções no país, denunciou o colapso iminente do sistema de saúde, e o prefeito da cidade descartou o fim da quarentena na capital da região.

Em 6 de abril, o então ministro da Saúde, Aníbal Cruz, anunciou suas projeções para dentro de 4 meses: 3,8 mil mortes, 48 mil pessoas infectadas e o colapso do sistema de saúde. Em 13 de abril, ele foi substituído por Marcelo Navajas, que logo ao assumir o cargo minimizou essas projeções, apresentando um “plano estratégico”, com a promessa de 500 respiradores artificiais, que nunca vieram.

O teste de covid-19 passou a ser algo restrito para aqueles com “sintomatologia ativa”. O anúncio da aquisição de 400 mil testes também ficou só no discurso, pois os kits nunca apareceram. Esses testes são importantes para detectar infecções, incluindo os casos assintomáticos, e permite isolá-los e reduzir a cadeia de infecções. A Bolívia é o país que realiza menos testes na região, o que explica os baixos números oficiais de covid-19, e também serve para justificar as medidas mínimas de contenção.

Navajas sustentou que, até 31 de maio, se espera chegar ao número de 10 mil infecções, e que a curva de infectados diminuirá quando 60% da população estiver infectada, antecipando um colapso sanitário.

O Ministro da Saúde, que é ex-médico da Embaixada dos Estados Unidos, segue a linha política para a saúde de Donald Trump, que fez do seu país o epicentro global da pandemia, deixando as pessoas expostas ao vírus, condenando à morte os idosos e aqueles com patologias crônicas.

Navajas, campeão da privatização da saúde, segue sua lógica comercial, que ele também compartilha com Trump: “a saúde é para quem pode pagar por ela”.

Verónica Zapata é jornalista e psicóloga boliviana, e colaboradora do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

*Publicado originalmente em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli
para Agência Carta Maior

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