Zumbi x Bolsonaro: o legado de Palmares no centro da guerra cultural
Para Ynaê Lopes, “Palmares é um cancro no meio da história brasileira”
Publicado 20/05/2020 12:22 | Editado 20/05/2020 12:23
No último 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura, a Fundação Palmares, responsável pela promoção e preservação de manifestações culturais negras, publicou artigos relacionados à data. Se em anos anteriores ela foi chamada pela entidade de “Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo” – ou de “dia da falsa abolição” –, sob a gestão do bolsonarista Sérgio Camargo, porém, o tom mudou de forma acentuada.
A justificativa, escreveu Camargo numa rede social, era de que a organização não propagaria “mentiras, deturpações e relativismo histórico”. Num dos textos, o foco é a princesa Isabel, lembrada por sua “preocupação sincera e empenho ativo na libertação, indenização e assentamento dos escravos”. Noutro, o advogado e abolicionista Luís Gama é elogiado por sua luta contra a escravidão e chamado de “o merecido herói do povo brasileiro”. Ambos são assinados por diretores da Fundação Palmares.
Os artigos mais polêmicos, porém, versam sobre um personagem que batiza outro dia, celebrado daqui a seis meses – Zumbi dos Palmares. Um deles, assinado pelo jornalista e professor escolar Luiz Gustavo dos Santos Chrispino, indaga já no título se “Zumbi e a Consciência Negra – Existem de Verdade?”. A publicação ataca o que chama, equivocadamente, de endeusamento de Zumbi pelo movimento negro.
Sem mostrar evidências, ele conclui que o grupo foi usado a partir dos anos 1970 pela “luta esquerdista como massa de manobra” para “separar a população em nichos pelos partidários da transformação do Brasil num país comunista”. Questionado sobre a carência de citações, Chrispino afirma que a obra não se pretendia acadêmica e só ilustra sua opinião.
“É um direito que tenho achar que Zumbi não merece ser herói”, diz ele, que afirmou não ter certeza da existência do personagem histórico. Quando a repórter afirma, então, que uma série de documentos comprovam a vida do líder, ele respondeu que foi impedido de ir até a Biblioteca Nacional para fazer uma pesquisa mais aprofundada por causa da atual pandemia. “Eu usei os [livros] que tinha.”
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz esclarece de pronto que não há dúvida de que o personagem existiu e liderou o quilombo de Palmares – o maior do eixo afro-atlântico –, na antiga capitania de Pernambuco, na segunda metade do século 17. Schwarcz lista uma série de registros que, indo de 1679 até 1695, ano da morte de Zumbi, mencionam o personagem. São documentos produzidos pela própria Coroa, correspondências e pareceres que narram suas tentativas de acabar com o quilombo
A biografia de Zumbi também é conhecida, diz Schwarcz. Ele nasceu em 1655 no próprio quilombo de Palmares, mas foi feito prisioneiro e levado para viver na vila de Porto Calvo. Foi batizado com o nome cristão de Francisco, e educado em latim e em português pelo padre português Antonio Melo. Em 1670, então com 15 anos, fugiu para Palmares. “Sabemos localizar o percurso da pessoa com esse nome e quando ele foi morto. O que não temos é a descrição física de Zumbi”, afirma Schwarcz. “Mas isso não impediu, por exemplo, que nossa historiografia construísse a imagem de Tiradentes.”
Já a associação de Zumbi ao movimento negro data de fato dos anos 1970, com a fundação Movimento Negro Unificado, o MNU, afirma a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense, a UFF. O grupo resgata a figura de Zumbi justamente em oposição à princesa Isabel, segundo Santos. Com isso, deixam de homenagear uma mulher branca, supostamente “redentora”, para contar uma narrativa dominada por um negro.
A historiadora afirma que é inegável que “Palmares é um cancro no meio da história brasileira”. “Dentro desse contexto que era o mais antagonizante possível [da escravidão], esses homens criaram praticamente um Estado, que vira uma das maiores ameaças para a Coroa portuguesa no Brasil. Não é qualquer coisa”, ela diz sobre o quilombo que deu nome à fundação hoje presidida por Camargo.
“Só elogiar a canetada da princesa não procede”, diz Lilia Schwarcz, acrescentando que a Lei Áurea foi uma espécie de golpe malsucedido para garantir um terceiro reinado. “Sabemos que a abolição foi um processo coletivo, que envolveu escravizados, profissionais liberais negros e brancos, trabalhadores, abolicionistas”, diz a historiadora.
É na articulação entre Zumbi, o movimento negro e “grupos esquerdizantes da sociedade” que o artigo de Chrispino mais chama atenção, contudo. O professor e jornalista afirma que o movimento negro cria “cada vez mais a separação social que interessa apenas à política esquerdizante, que busca levar nossa pátria a um viés que difere completamente do verdadeiro brasileiro”, cuja índole é definida como “amistosa, pacata, alegre, festeira dentro deste amálgama que é a nossa gente miscigenada”
São noções que, segundo Santos, recuperam ao pé da letra a visão do Estado brasileiro do final da Primeira República. Então, a tensão racial foi minimizada com a introdução do mito da democracia racial, que dita que os três antepassados do povo brasileiro, portugueses, negros e indígenas, contribuíram para criar a identidade nacional. Com isso, afirma a historiadora, some o conflito. “O que eles fazem é recuperar uma ideia de Brasil que parte do pressuposto que a desigualdade é só socioeconômica.”
A visão ajuda a explicar ainda porque Luís Gama aparece como uma alternativa a Zumbi entre os artigos da Fundação Palmares. Ou porque Sérgio Camargo sugeriu, numa enquete do Twitter na semana passada, mudar o nome da Fundação Palmares para o do engenheiro André Rebouças, outro abolicionista, ou o escritor Machado de Assis – embora Camargo tenha garantido que não há nenhum projeto nesse sentido no momento.
“É óbvio que são nomes importantes. Mas eles ascenderam socialmente, circulavam entre a intelectualidade branca – e estão historicamente apartados da herança africana”, diz Ynaê. Segundo ela, há indícios de que o quilombo de Palmares reconstruía certos aspectos das sociedades daquele continente.
“Isso só reforça a necessidade de continuarmos falando de Palmares e de Zumbi – um escravizado fugido que lutou no fronte contra o sistema. O que não significa não falar desses outros homens”, agrega a historiadora. Presidenta municipal da Unegro (entidade antirracista), Fernanda de Paula diz encarar a publicação dos textos pela Fundação como um modo de desviar a atenção de questões que afligem diretamente a população negra, como o combate à pandemia.
Já o cartunista Marcelo D’Salete, autor de uma graphic novel que narra a história do quilombo de Palmares, Angola Janga, diz que os textos estão em consonância com o alinhamento da Fundação ao atual governo, que vem desconsiderando uma série de batalhas históricas, não só dos negros. “Esse grupo recusa a realidade de injustiça que impulsiona essas lutas. Eles buscam reescrever e afirmar uma narrativa própria para sua legitimação”, afirma o quadrinista.
“Penso que o chefe da Fundação Palmares está transformando em guerra ideológica o que é exercício de história”, afirma Lilia Schwarcz. “Vivemos nesse momento de grande retrocesso da democracia, quando sempre acontece essa tentativa de manipular a história. Mas a história não é uma bula de remédio. Não é cloroquina.”