Os dilemas do Brasil descritos por Carlos Lessa numa tarde chuvosa

A morte de Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-reitor Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), representa uma dolorosa perda para o pensamento patriótico, democrático e progressista.

Em 2006, fiz uma longa entrevista com Carlos Lessa, publicada em duas partes – uma no Portal Vermelho e outra na revista Debate Sindical. Lessa me recebeu em seu belo casarão do Cosme Velho, num dia de chuva no Rio de Janeiro, quando passamos longas horas conversando. Sempre gentil, não deixou de tecer críticas ácidas à orientação econômica do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, um dos responsáveis pela pressão do sistema financeiro pela sua demissão no BNDES.

Recordo de Lessa dizendo que o Brasil ainda estava como naquele dia sombrio de chuva, mas logo seria radiante como o sol tradicional do Rio de Janeiro.  

Sua produção acadêmica também foi profícua. É autor do clássico “15 anos de política econômica”, sobre o Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. O texto foi produzido para o escritório da Comissão Econômica para a América Latina e ao Instituto Latino-americano de Planificação Econômica e Social (CEPAL-ILPES), e editados pela Brasiliense, em 1980 (teve sua segunda edição em 1981).

Na apresentação do livro, o economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo escreveu: “Quinze anos é um clássico sobre um período clássico. Nesses anos, foram travadas batalhas decisivas pela consolidação do processo de industrialização.” Segundo Belluzzo, “Juscelino ganhou as batalhas que (Getúlio) Vargas concebeu”. “O desenvolvimentismo como um projeto de capitalismo nacional cumpriu seu destino através do Plano de Metas: integrou definitivamente a economia brasileira ao movimento de internacionalização do capitalismo”, escreveu.

Lessa também organizou a obra “Enciclopédia da Brasilidade – a Auto Estima em Verde e Amarelo”, em 2005, produzido pelo BNDES, com 608 páginas. O livro, colorido e bem ilustrado, contém textos sobre vários aspectos da vida e dos costumes brasileiros de 59 autores.

“Carlos Lessa foi de uma geração que testemunhou, soube reconhecer e se esforçou para entender o arranque do desenvolvimento brasileiro nos anos de 1950. Sofreu com o retrocesso da ditadura e nutria, como muitos, esperança de que com a superação do regime militar retomaríamos o rumo do desenvolvimento, com inclusão social, ou, como ele preferia dizer, com “cidadania” (com significado mais amplo). Entre seus últimos trabalhos intelectuais, um profícuo debate sobre a questão da falta de autoestima do brasileiro. Vamos precisar ler e reler Lessa para conseguirmos manter nossa autoestima depois do mergulho recente que demos no obscurantismo, nas trevas”, diz Arthur Koblitz é presidente da Associação dos Funcionários do BNDES (AFBNDES).

A seguir, a entrevista que fiz com ele em 2006:

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Carlos Lessa: o “Plano Delfim” é uma burla

Por Osvaldo Bertolino

A corajosa postura desenvolvimentista do professor Carlos Lessa resultou em sua demissão da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no final do ano passado — um episódio que foi de importante significado político na luta pela definição de rumos do governo Lula. Lessa foi demitido, basicamente, por pressão dos “ortodoxos” que infestam a área econômica do governo. Desde a sua posse, as firmes posições desenvolvimentistas do BNDES despertaram a reação daqueles que cuidam das finanças públicas como fiéis cães de guarda dos interesses do mercado financeiro. Em resumo, pode-se dizer que Lessa era um dos ícones da luta das concepções renovadoras, que buscavam afirmar e ganhar a hegemonia no governo, contra as velhas, que lutam para manter a “ortodoxia”, bem ao gosto da elite brasileira.

Raramente o país tem a oportunidade de conhecer um ponto de vista econômico que não seja o dos chamados “ortodoxos”, hegemônico nos principais meios de comunicação. Por isso, as opiniões de Carlos Lessa, que podem ser definidas como profundamente comprometidas com os interesses do país, são uma rara oportunidade para um outro olhar sobre o assunto. Esta entrevista exclusiva foi concedida originalmente para a revista Debate Sindical. O Vermelho reproduz alguns trechos em primeira mão com o intuito de contribuir com o esclarecimento da essência do chamado “Plano Delfim”, que está em análise na área econômica do governo. A entrevista completa estará na próxima edição da revista Debate Sindical.

Vermelho – Professor, como o senhor analisa essa proposta de perseguir o déficit nominal zero, que nasceu de sugestão do deputado Delfim Netto e ganhou apoio no Executivo?

Carlos Lessa – Eu estou muito preocupado. Primeiro eu quero dizer que respeito muito a inteligência da direita brasileira. Eu acho que ela, de um modo geral, sempre se dá bem. Ela tem grande competência em se dar bem. Ela teve uma situação muito confortável ao longo desses anos de estagnação da economia, porque ela ganhou durante o processo inflacionário, muito, e ganha com o processo de estagnação. Na verdade, o que cresce no Brasil é a massa de juros pagos e de lucros pagos. E a massa de salários não cresce. Pelo contrário. A massa de salários vem perdendo posição na renda nacional. O salário médio vem caindo. Fora o desemprego violentíssimo.

Mas a massa de juros pagos cresce. Os bancos são as empresas mais vencedoras do Brasil em termos de lucros, crescem sem parar, e quem vive de renda financeira, vive melhor. E quanto maior volume de capital tiver no sistema financeiro mais rica a pessoa é. Então, a direita se deu muito bem ao longo dos oito anos de Fernando Henrique Cardoso e infelizmente está se dando muito bem ao longo dos anos Lula. Até porque o Lula, surpreendentemente, está pagando mais juro real do que o próprio Fernando Henrique Cardoso. É inacreditável.

O Brasil é o campeão mundial de juros. O segundo lugar, que é a Turquia, não chega a ser metade da nossa taxa de juro real. Quem é que pega essa massa de juro real no Brasil? Basicamente, é uma coisa chamada de “capital cigano”. Usando uma expressão inglesa, que eu não gosto, hot money (dinheiro quente). É um dinheiro que corre para onde está o melhor negócio de curto prazo. Como o Brasil paga esse juro brutal, o país é um bom negócio.

Por baixo, se calcula que o hot money tem uns US$ 23 bilhões no Brasil, que podem ir embora em vinte e quatro horas. Como o doutor Meirelles retirou todos os controles de saída de capital, eles têm essa segurança que podem ir embora mas ficam no Brasil porque o juro é uma maravilha. Hoje o Banco Central (BC) só exige o registro na entrada e na saída. Mais nada. Pode-se trazer dinheiro, ganhar em vinte e quatro horas e ir embora.

Vermelho – Então, se tudo está dando certo para eles, para que mudar para o “Plano Delfim”?

Lessa – Espera um pouco. Já vou mostrar onde está a perfídia. Esse cenário é maravilhoso para os bancos brasileiros, para os donos de títulos de dívida pública no Brasil, para os especuladores do mercado financeiro e para todos esses que são donos desse “capital cigano”. Um detalhe: grande parte do “capital cigano” é de brasileiros, que têm US$ 95 bilhões no exterior e mandam para cá para faturar os juros. Esse é o jogo. Só que eles acham que esse jogo vai acabar. Por quê? Por uma porção de razões.

Primeiro, razões mundiais. Os Estados Unidos não praticam a política neoliberal. O país tem um déficit fiscal de US$ 400 milhões. Por isso gera emprego e a economia cresce. A Europa estava fazendo a política neoliberal, mas os franceses e os holandeses votaram contra a Constituição neoliberal européia. O povo alemão já se colocou contra o euro, quer voltar para o marco; o ministro do Trabalho da Itália diz que quer voltar para a Lira. Por quê? Porque todos eles estão dizendo o seguinte: a Europa está sendo destruída pela política neoliberal.

A China não é economia de mercado — e é a economia que mais cresce no mundo. A esfera asiática, toda ela, tem Estados intervencionistas, Estados nacional-desenvolvimentistas. A Índia é nacional-desenvolvimentista. O Japão é potência e se defende como pode. Então veja bem: no mundo, quem são os bobos? São os países da América Latina, que obedecem direitinho a tudo o que o Consenso de Washington manda fazer.

Só que na Venezuela tem o Chávez, que causa pesadelos neles porque está fazendo uma política popular — ou populista — em grande escala. E a Argentina tem “el Pingüino” (o Pingüim, o presidente Néstor Kirchner), que está simplesmente desvalorizando a dívida e proibindo a entrada de “capital cigano” no país. Só pode entrar para ficar um ano na Argentina. Então, os conservadores e os vampiros brasileiros estão preocupadíssimos. Por quê? Porque o mundo vai acabar.

Mas, ao mesmo tempo, o Palocci, o doutor Meirelles e os homens do BC estão muito preocupados também porque eles só seguram a inflação com esse “capital cigano”. Esse “capital cigano” vem para o Brasil por causa da alta taxa de juros. Entrando aqui, ele joga a taxa de câmbio para baixo. Com a taxa de câmbio mais baixa eles seguram a inflação. A política antiinflacionária de Palocci é só essa. Porque o superávit primário não controla a inflação. Ele é para pagar juros. Tanto que o governo federal tem déficit porque paga muito mais juros do que o superávit primário.

Vermelho – Daí a necessidade de blindar ainda mais a economia…

Lessa – O que eu estou querendo dizer é o seguinte: eles sabem que essa situação ultra-confortável, de desfrutar da mais alta taxa de juro do planeta, em total respeito aos contratos, tem tendência a acabar. E estão olhando os sinais no mundo, que não estão mais a favor do neoliberalismo. O mundo está todo se virando contra essa orientação. Mas eles querem agarrar mais isso. Então qual é a maneira de agarrar? É blindar essa política. Qual é a blindagem que eles querem fazer?

Fernando Henrique Cardoso fez vinte e uma emendas constitucionais. O Lula não fez ainda nenhuma. Eles estão propondo uma. Qual é a que eles estão propondo? Acabar com as vinculações sociais. Acabar com a regra pela qual pelo menos 18% do orçamento federal têm de ser gastos com educação, com as vinculações ligadas à assistência social — Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) — e com as vinculações ligadas à Previdência. Eles estão querendo acabar com a última coisa que sobrou importante na área social da Constituição de 1988.

Como eles querem fazer isso? Dizendo o seguinte: vamos para o déficit nominal zero. Na verdade, o que eles estão propondo é o seguinte: como não dá mais para cortar investimento produtivo, que chegou praticamente a zero — as nossas estradas hoje são um buraco só, os hospitais estão com má manutenção, tem goteira nas bibliotecas e por aí vai; se a economia crescer vai faltar energia elétrica; enfim, um quadro de horror — só tem uma coisa para cortar agora: é cortar na própria carne do social. É cortar na proteção dos velhinhos, na pensão-família para os portadores de deficiência, é reduzir os gastos em saúde, é reduzir gastos em educação…

Então, eles querem cortar gastos sociais para pagar mais juros. E ao mesmo tempo dizer que estão acabando com o déficit. Essa proposta é de uma malignidade total porque se cortar gastos de saúde e educação vai gerar mais desemprego. Quando você não emprega professores, médicos, enfermeiras, assistentes socias; quando você não compra remédios, livros escolares, uniformes para as crianças, não faz novas escolas, as pessoas que produzem essas coisas tem menos oportunidades de produzi-las, são demitidas. Cortar gastos não faz a economia crescer. Cortar gastos faz a economia cair.

Eles estão querendo manter a mesma política de Malan e a mesma política de Palocci. Só que eles estão querendo vestir de uma forma diferente. Eu acho que é necessário mostrar que isso é uma fraude. Você sabe qual é a dificuldade? O povo acha que déficit é ruim e que o governo gasta muito e gasta mal. Quando na verdade o governo está gastando pouco em estradas, em portos, em energia elétrica, em educação, em saúde e habitação popular. Está gastando uma fábula com juros. Que é o que eles querem continuar.

Eu acho que essa é a questão mais relevante no momento. Porque em cima dessa confusão política, de mensalão, corrupção, eles estão se articulando para passar esta proposta de emenda constitucional. Felizmente eu vi que a boa bancada do PT já percebeu que tem gato com o rabo de fora. Não é essa a expressão? Eles já estão ficando espertinhos. Já percebi que um ou outro dirigente sindical olha isso com muita preocupação. Mas é preciso mostrar para o povo que isso é uma burla. O governo gasta mal sim. Gasta muito mal pagando juros colossais.

Vermelho – O Palocci disse, no jantar do dia 5 passado, que lá estavam os que pensam o Brasil a longo prazo. A sociedade brasileira estava representada naquele jantar?

Lessa – O jantar foi um horror — exatamente a cara da elite brasileira. Havia lá banqueiros e grandes industriais. A sociedade não estava representada e não está discutindo isso. A sociedade está discutindo o mensalão, o Delúbio, o Valério… Ou então está querendo saber como vai pagar a conta no final do mês, como emprega o filho ou se vai manter ou não o emprego.

Vermelho – Mas há no campo governista figuras importantes, tidas como desenvolvimentistas,  que discordam da proposta, como o senador Aloizio Mercadante…

Lessa – O Mercadante pensa de uma maneira muito boa. O problema é que uma andorinha só não faz verão. E ele está com uma batata quente na mão. Como ele é líder do PT no Senado, tem de viabilizar um governo que está vivendo uma crise política enorme. Ele não trabalha como economista. Ele trabalha como articulador político do governo no Senado. Mas o Mercadante é desenvolvimentista sim. A Dilma Roussef também é. O Celso Amorim é desenvolvimentista. O vice-presidente da República, José Alencar, é desenvolvimentista roxo. Aliás, uma das coisas que eles estão preocupados é, nessa crise, não valorizar o Alencar.

Vermelho – O economista Márcio Pochmann também produziu uma importante análise sobre o “Plano Delfim”.

Lessa – O Márcio Pochmann eu adoro. Foi meu aluno. Gosto muito dele. O negócio é o seguinte: se você me perguntar se o Brasil pode crescer eu diria que com relativa facilidade. Por quê? Nós somos uma economia que tem uma base produtiva razoavelmente boa, apesar de ela ter perdido posição nos anos de Fernando Henrique. Nós já fomos a 8ª economia industrial do mundo, mas ainda somos uma economia industrial poderosa. Nós temos uma agricultura que é capaz de produzir todos os alimentos de que o povo brasileiro precisa. Só há fome aqui por incompetência. Não temos motivos para ter fome.

Somos um país que tem um razoável domínio de ciência e tecnologia. Temos um sistema científico e tecnológico razoável. Temos uma força de trabalho inteligente e treinada. Tanto que somos exportadores de avião a jato, de ônibus, de motocicleta, de compressores… Temos um povo maravilhoso, que sabe sobreviver, que cria milhões de estratégias de sobrevivência. Um povo admirável. Então, nós temos tudo para crescer. E temos recursos para crescer? É claro que temos. Nós temos um Produto Interno Bruto da ordem de mais ou menos R$ 1,4 trilhão.

Este ano vamos pagar R$ 150 bilhões de juros da dívida pública. E somos os campeões da taxa de juro real. Suponha que colocássemos a nossa taxa de juro igual à da Turquia. Que é a segunda colocada no mundo. Só com isso economizaríamos R$ 60 a R$ 70 bilhões por ano. Com esse valor, a gente faz deste pais uma máquina de crescimento. Por exemplo: redenção do Nordeste. Para mim isso é muito importante porque acho que o Nordeste pode vir a ser a grande Califórnia do Atlântico Sul.

Acho que o Nordeste, ao contrário de ser região-problema, pode ser a região-solução para o Brasil. Precisa da transposição de água do Rio São Francisco, da ferrovia Transnordestina e da ferrovia Norte-Sul. Os três projetos exigem R$ 14 bilhões em três anos. Eu tenho R$ 70 bilhões por ano equalizando a taxa de juro brasileira com a taxa turca. Eu não estou dizendo para botar a nossa taxa igual à européia ou à norte-americana. Porque aí seria muito mais recurso que a gente teria. Eu estou dizendo para reduzir a taxa de juro para o nível da taxa turca, e ainda continuaríamos sendo a maior taxa de juro do mundo.

Agora, o que eu posso fazer com esses R$ 60 ou R$ 70 bilhões? É óbvio que eu vou ter de fazer o que o povo quer. A inclusão social. A inclusão social para o povo brasileiro é o quê? É programa de habitação, de educação, de saúde, de segurança, de justiça, de defesa… Muito bem: a pergunta é a seguinte: o que eu preciso para fazer, por exemplo, educação? Cimento, tijolo, telha, material hidráulico, para fazer a escola. Preciso de papel e gráfica para fazer o livro. Preciso de tecido para fazer a roupa da criança. Preciso de comida para fornecer o alimento. E preciso de muito professor.

Tudo isso é produzido dentro do país. Se eu ampliar o programa de educação, eu vou gerar muito emprego para professor, para servente, para pedreiro, para pintor, para gráficos, para escritor. Se eu tiver que fazer um programa de habitação popular, eu preciso de areia, cimento, tijolo, telha, madeira, ferro… e muita mão-de-obra. Se eu fizer um grande programa social, eu dou ao povo melhor educação, melhor saúde, melhor casa, e ao mesmo tempo gero emprego em massa para os brasileiros. Esse pode ser um grande pais. Um imenso país. Mas nós precisamos empurrar esses juros obscenos, indecentes, para baixo. Precisamos fazer uma política voltada para o interesse social do povo brasileiro.

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