Bolsonaro desconstrói sistema científico nacional
Na teoria e na prática, no negacionismo e no contingenciamento, o “desgoverno” desmonta um sistema poderoso de produção científica construído em décadas de investimentos e governos. É o que criticam SBPC, Academia de Ciências e ex-ministros de CT&I
Publicado 09/06/2020 11:56 | Editado 09/06/2020 17:41
Na última sexta-feira (5), Observatório da Democracia promoveu mais uma webconferência do ciclo de debates Diálogos, Vida e Democracia, com participação das fundações partidárias Maurício Grabois (PCdoB), Perseu Abramo (PT), Leonel Brizola-Alberto Pasqualini (PDT), João Mangabeira (PSB), Lauro Campos-Mairelle Franco (PSOL), Ordem Social (PROS), Claudio Campos (PPL), Astrojildo Pereira (PPS).
O tema do debate foi “O valor da Ciência, da Tecnologia e da Inovação como política de Estado” com coordenação de Alexandre Navarro (vice-presidente da Fundação João Mangabeira e membro da Câmara FGV de Mediação e Arbitragem), com participação dos convidados Ildeu Moreira (presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência/SBPC), Sergio Rezende (ex-ministro de CT&I), Luiz Davidovich (presidente da Academia Brasileira de Ciências/ABC) e Marco Antônio Raupp (ex-ministro de CT&I).
Em meio a uma “contingência” da gravidade da pandemia, com um desgoverno que se diverte provocando caos em meio a dezenas de milhares de mortes, os cientistas levantaram a bandeira do descontingenciamento de 90% dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Ao eliminar quase a totalidade do orçamento do setor, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) promove o desmonte de um complexo e avançado sistema científico, inovador e tecnológico construído desde o início do século XX, que se tornou referência mundial e fator de influência soft power em parceiras bilaterais com mais de 50 países.
Luiz Davidovich: o investimento decrescente em ciência
O físico contou a história da formação do sistema científico brasileiro desde a criação das primeiras universidades brasileiras, tão tardiamente, já no século XX, mas que alavancaram instituições científicas que são referência mundial como a FioCruz e o Instituto Butantã. “Assim, o investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação é uma política de Estado desde o início do século XX, nos primórdios das universidades brasileiras, que resultou na nossa capacidade de enfrentar com consciência uma pandemia como essa”, afirmou, ressaltando a formação de pessoal qualificado como o maior legado dessas políticas.
A FioCruz foi fundada em 1900 e está capilarizada em vários países. “Ajudou na defesa e construção do SUS, um grande orgulho nacional, que em sua singularidade de atender uma população de 200 milhões de brasileiros, não tem igual no mundo. Depauperado pela falta de investimentos, mostra sua eficiência e até heroísmo de tratar a população nesse momento de pandemia”, ressalta. Ele destaca que a FioCruz formou pessoas como Celina Turchi que é considerada uma das cem pessoas mais influentes do mundo, por destrinchar o mecanismo da Zica e sua relação com a microencefalia.
A Esalq, o Instituto Agronômico de Campinas e a Universidade Federal de Viçosa também foram mencionadas como os pilares da Embrapa, “que é uma potência de soft power”, influenciando e impondo o Brasil no mundo por meio de acordos bilaterais com instituições de muitos países. Esta instituição científica ajuda nas relações do Brasil com outros países projetando o Brasil internacionalmente. “Precisamos de um ministro de relações exteriores que entenda o papel da Embrapa, da ciência brasileira na sua projeção internacional”, diz ele, criticando a atual gestão do Itamaraty. Na Embrapa, ele destacou a cientista Johanna Dobereiner, que descobriu uma técnica simples de adubagem do solo, que ajudou economizar bilhões em importação de adubos, além de aumentar em quatro vezes a produtividade da soja.
Nossa primeira universidade, a Federal do Amazonas (Ufam) é de 1909, enquanto outras escolas latino-americanas são do século XVI e XVII. “É impressionante do que essas universidades foram capaz pela ciência do Brasil em tão pouco tempo”. Davidovich citou ainda grandes empresas players de competitividade no mundo, que foram originados em parcerias com universidades e escolas científicas brasileiras, como Embraco, Weg, Natura, Proantar, Embraer, Petrobras, CTMSP, desenvolvedores de terminais bancários, energia de biomassa, carros flex, aceleradores de partículas, grandes telescópicos, tudo construído em décadas de investimento contínuo. Aqui, ele citou o jovem matemático Arthur Dávila, vencedor da Medalha Fields.
O investimento em inovação e ciência no Brasil é praticamente metade privado e metade público, enquanto outros países contam com muita indústria e investimento privado. “Temos um decaimento enorme do financiamento nos últimos anos, desde 2015, o que prejudica não apenas as universidades, como também a indústria”, analisa.
Os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico tiveram um aumento de 13% no orçamento, mas um contingenciamento de 24%, o que restringe a R$ 600 milhões os recursos que devem ser urgentemente liberados em meio a esta pandemia, “pois não faz sentido uma reserva de contingência em meio a maior contingência científica do século”.
Entre os desafios propostos pelo dirigente da ABC, está a necessidade de aumentar a capacidade pública e privada de pesquisa; um plano estratégico de encomendas do estado em áreas de biofármacos, tecnologia da informação e energias renováveis; educação em ciência desde o ensino fundamental e recuperação das universidades e Institutos com formação de profissionais. Ele deu um destaque especial e emergencial à Amazônia, cujo desmatamento não “apenas” afeta o clima e a vida dos moradores, mas afeta a riqueza de biodiversidade. A título de exemplo, ele citou a bergenina, uma substância extraída de uma planta que custa 4300 vezes mais que o ouro.
“Vivemos tempos que exigem respostas da comunidade científica, mas da sociedade como um todo. Estamos com sérias ameaças pairando no horizonte. Precisamos fazer entrar em cena o coro dos lúcidos e a inteligência política”, alertou. Ele mencionou ainda outros riscos para o país, como a temporada de queimadas, enquanto o país está focado apenas na pandemia, e que a ciência alerta e pode contribuir no combate dessas contingências previsíveis.
Sérgio Rezende: o comitê científico do Nordeste
Outro físico, Rezende lembrou que, desde “aquela reunião” em que o presidente se referiu aos nove governadores nordestinos como “paraíbas”, eles resolveram montar o Consórcio Nordeste para cooperação de interesses comuns, pois, “desde aquele momento, já se manifestava o desgoverno que viria”.
Os membros do Consórcio foram à Europa discutir parcerias e fazer compras conjuntas, assim como iriam à China em janeiro. A pandemia chegou com muita força e o Consórcio Nordeste resolveu montar um comitê científico. Rezende é um dos coordenadores, com Miguel Nicolelis e Carlos Gabas, de um conjunto de 15 membros, quase todos médicos. Emitem boletins de recomendações, sempre começando pela necessidade do isolamento social, seguido de uso de máscaras, proteção aos profissionais de saúde e agora, detalhando uma matriz de orientação sobre flexibilização e lockdown adaptado a cada realidade.
“Tivemos uma situação dramática com o presidente dizendo uma coisa e o ministro da saúde outra. O país como um todo não adotou o confinamento como deveria desde o começo, por isto caminhamos para os primeiros lugares do mundo em casos e óbitos”, lamentou.
Rezende mostrou levantamento do comitê científico revelando que se o Brasil tivesse feito confinamento de 60%, uma taxa modesta, teria seis mil óbitos e, assim, “economizado” 28 mil vidas que já se foram desnecessariamente. “Não é a toa que o presidente é acusado de ser responsável pelo genocídio de 28 mil brasileiros”, mencionou.
Ele contou que não vinha assistindo televisão nos últimos anos, devido à flagrante parcialidade. Recentemente, com o avanço da pandemia, ele voltou a ver telejornais que promovem uma revalorização da ciência, que ele espera que seja contínua. “Esperamos que a ciência entre definitivamente na agenda da política e da sociedade, com a continuidade de projetos importantes já estabelecidos e que sofrem com falta de atenção política e orçamentária”, destacou.
Ildeu de Castro: a bandeira da SBPC é o descontingenciamento do FNDCT
A SBPC é apartidária, mas não apolítica, pelo contrário. Foi como o dirigente da entidade mostrou o posicionamento forte e claro contra a política do governo Bolsonaro para o setor. “Defendemos o isolamento social, a ampliação de testes, o fortalecimento do SUS e dos profissionais de saúde, mas temos uma liderança que descontrói as políticas mais adequadas ao combate à pandemia”, criticou.
Em sua opinião, o Brasil conta com instituições muito importantes que poderiam ter mais recursos. “Tivemos momentos importantes de investimento, mas também temos muita descontinuidade nas políticas de estado. A continuidade dos projetos é fundamental em ciência de longo prazo”, defendeu.
Castro exibiu gráficos que demonstram os decréscimos acentuados dos investimentos em ciência e tecnologia, que impactam fortemente o sistema. Ele ressaltou que os picos de investimento foram dez anos atrás, na época em que Rezende e Raupp foram ministros. “No CNPq conseguimos manter bolsas, mas perdemos em fomento. No FNDCT o contingenciamento trágico é de R$ 25 bilhões, que impacta na pesquisa e desenvolvimento e nos programas de parques tecnológicos em pequenas e médias empresas. Impacta também no enfrentamento da epidemia com muitos laboratórios em dificuldade, com uma indústria muito fragilizada, como a indústria de respiradores que nos torna muito dependentes de importações. O descontingenciamento desses 90% dos recursos é nossa bandeira no momento”, discursou.
Outro gráfico mostra o baixo número de cientistas por milhão de habitantes. Mostra também que, em 1995, a China tinha o mesmo PIB que o Brasil e hoje cresceu e disputa a liderança com os EUA. “Porque tiveram política continuada, apostaram em ciência e tecnologia, políticas públicas de indústria articulada com inovação cientifica, formação e qualificação profissional”, explicou.
Ele concluiu com otimismo destacando a capacidade de reação da sociedade e das instituições, inclusive científicas, para superar essa fase de obscurantismo e impor um projeto nacional mais generoso para o país. “Estamos seriamente preocupados com as ameaças à democracia e às instituições e a saída é o povo estar unido e não aceitar essa ruptura”, afirmou.
Marco Antônio Raupp: Desgoverno desarticula sistema de produção científica
Raupp, também físico, mencionou os colegas ao destacar em suas falas o valor da ciência, o bom planejamento da gestão da sociedade e plano de política pública. Ressaltou também que foi na metade do século XX que se organizou um sistema para produção científica “que está em perigo, hoje”.
Em sua opinião, a política para ciência não pode estar desconectada da política geral para o povo brasileiro. “Não estamos tendo dificuldade apenas de investimento, mas estamos num momento em que os mandatários do governo ignoram e desprezam a ciência e os cientistas. Esta é a dimensão do nosso problema”, lamentou.
A partir dos anos 1950, a ciência avançou no Brasil com a criação do CNPq e da Capes, e a reforma das universidades, que se tornaram ambientes de pesquisa. “Foram 30 a 40 anos de governos que contribuíram para isso, inclusive a ditadura militar, que esse presidente tanto incensa. Estimulamos o investimento privado no setor e tivemos indicadores respeitáveis de produção”, destacou. No entanto, o próprio investimento privado também tem erodido diante da falta de estímulos.
Ele afirmou que merecem destaque as políticas de ciência e tecnologia do governo Lula e Dilma com investimentos crescentes, conforme revelaram os gráficos.
“Vivemos uma crise sanitária e uma crise política governamental”, definiu. Se a pandemia demanda muita ciência, o enfrentamento da grande depressão econômica também demandará conhecimento científico pra ser superada. “Por outro lado, temos instalado um governo que não governa, que promove instabilidade e divisões, que desarticula a sociedade e desgoverna, e mais, não acredita e desconfia da ciência e tem um olhar saudoso para o pior do nosso passado”, atacou.
O ex-ministro também critica o modo como o governo federal desarticula-se com estados e municípios, promove a eugenia (escolha de perfil de pessoas que podem morrer) como abordagem para enfrentar a disseminação do vírus, desenfatiza o SUS, promove militarização do Ministério da Saúde. “E se comporta como um charlatão que receita remédios, nomeia para o Ministério da Educação alguém que diz que as universidades privadas é que produzem pesquisa, e as públicas nada produzem, e um ministro do Meio Ambiente que penaliza a fiscalização”, cita ele, entre outras figuras do governo que atuam contra as pastas que deveriam gerir.
De acordo com Raupp, na retomada econômica pós-pandemia, os sistemas de CT&I têm grande contribuição a dar, assim como o estímulo as pequenas empresas. “Não encontramos soluções fora de Keynes, ao contrário do que propõe Paulo Guedes”, disse, referindo-se ao economista que incentiva o desenvolvimentismo por meio de investimento estatal, enquanto o ministro da Fazenda de Bolsonaro é contra qualquer investimento estatal, contingenciando os recursos da União unicamente para pagamento de serviços da dívida para grandes investidores internacionais.
Nesta terça-feira (09/06), acontecerá a mesa O Mundo do Trabalho e a Pandemia, que faz parte do Ciclo Diálogos, Vida e Democracia, uma série de videoconferências promovidas pelo Observatório da Democracia, que chega a sua 12ª edição. A mesa será coordenada por Francisvaldo Souza, que é Presidente da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco (FLC-MF), estarão participando o ex-diretor do Dieese Clemente Ganz Lucio, a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à fome Tereza Campello, o pesquisador do IPEA, especialista em microempresas e economia informal Mauro Oddo Nogueira e o sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes.
Onde: Acompanhe as webconferências do Ciclo Diálogos, Vida e Democracia, no Facebook, pelas páginas das Fundações Astrojildo Pereira, Claudio Campos, Leonel Brizola-Alberto Pasqualini, Perseu Abramo, Lauro Campos e Marielle Franco, Mauricio Grabois, da Ordem Social e João Mangabeira.
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