Lacunas e inconsistência marcam dados de leitos de UTI para covid-19

Disparidade entre informações do governo federal e dos Estados prejudica a população e a avaliação das medidas de combate à pandemia. Falta de transparência sobre leitos de UTI impede uma avaliação precisa da capacidade de atendimento da população e da oportunidade de medidas de flexibilização

(Foto: Reprodução)

A Rede de Pesquisa Solidária da USP realizou minucioso levantamento dos dados de UTI registrados nas plataformas públicas do Ministério da Saúde (MS) e de 26 secretarias estaduais de saúde, além do Distrito Federal. As informações colhidas sobre o número de leitos de UTI para covid-19 disponíveis e ocupados apresentam lacunas e disparidades enormes, cuja falta de transparência impede uma avaliação precisa da capacidade de atendimento da população e da oportunidade de medidas de flexibilização que estão atualmente em curso.

De acordo com o levantamento da rede, leitos de UTI são essenciais para salvar vidas durante a pandemia. O conhecimento preciso de seu número e de ocupação real é fundamental para a definição de políticas públicas de combate ao coronavírus, a exemplo da ampliação de unidades hospitalares, das medidas de distanciamento social e de sua eventual flexibilização. As taxas de ocupação de leitos de UTI para covid-19 representam o elo final da possibilidade de colapso do sistema de saúde no atendimento aos pacientes em quadro clínico severo, o que significa, em última instância, a identificação da capacidade da rede de atendimento preservar vidas que atingiram estado crítico de saúde.

Desencontro de dados

Não há informação clara sobre o número de leitos de UTI Covid-19 disponíveis no território nacional. As diferenças entre os dados apresentados nas plataformas oficiais são enormes e chegam, por exemplo, a 200%, quando se compara os registros da Plataforma Covid-19 e os do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, referentes a maio de 2020.

Dois estados brasileiros, Rio de Janeiro e Tocantins, não apresentaram nenhuma informação sobre o número de leitos de UTI Covid-19 em suas plataformas, sendo que o Rio de Janeiro está entre os cinco estados brasileiros que exibem a maior taxa de mortes causadas pelo novo coronavírus até o momento. Somente cinco estados apresentam o número de leitos de UTI para covid-19 do SUS e também do sistema privado: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo e Sergipe. Apenas sete Estados apresentam a taxa de ocupação em tempo real dos leitos de UTI Covid-19 do Sistema Único de Saúde em todas as unidades gerenciadas pelas Secretarias Estaduais: Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Santa Catarina e Sergipe.

A ausência de informações sobre leitos de UTI para covid-19 se verifica em Estados considerados epicentros da pandemia no Brasil, como Amazonas e São Paulo. A plataforma do Amazonas apresenta somente o número de leitos ocupados, o que não permite estimar a taxa de ocupação. São Paulo apresenta somente a taxa de ocupação sem distinção entre os leitos de UTI para covid-19 do SUS e os leitos da rede privada.

Casos e óbitos de Covid-19, nº de leitos de UTI Covid-19 e total de leitos de UTI – Imagem: Painel de Leitos e Insumos Covid-193 de acordo com as diferentes fontes de dados do MS. Consulta realizada em 02.06.2020
Critérios e classificação da qualidade da informação sobre leitos UTI Covid-19 – Fonte: Secretarias Estaduais de Saúde. Maio 2020

Diversos arranjos têm sido adotados por gestores públicos para o aumento do número de leitos de UTI durante a pandemia, como o aumento no número de leitos contratados de hospitais e redes privadas e a criação de hospitais de campanha, com aquisição de novos equipamentos e materiais. Considerando os poucos dados disponíveis atualmente nas plataformas de acesso público, não é possível identificar quais ações foram tomadas pelos Estados e tampouco o custo e a efetividade das aquisições realizadas.

A inconsistência generalizada dos dados de UTI sugere que as sinergias entre o sistema público e o privado não estão sendo plenamente exploradas. E levantam também dúvidas relevantes quanto à eficiência das políticas em execução.

Distribuição do índice de qualidade da informação sobre leitos de UTI Covid-19 nas UF – Imagem: Plataformas das SES, 26/05/2020. Critérios cf. Tabela 1

Se os governos têm nas informações divulgadas ao público uma referência séria, é preciso observar o enorme descompasso entre esses dados, as estimativas de capacidade de atendimento aos doentes em estado agudo e os planos de flexibilização em curso atualmente. Quando os dados apresentados não têm o rigor necessário para fundamentar as políticas de contenção da crise, a população está sendo orientada para respeitar decisões que se baseiam em fontes desconhecidas de informação ou conhecidas apenas pelos governos.

Nas duas alternativas, a compreensão, o julgamento e a adesão da população estão prejudicados. O prejuízo da falta de informação para o público é grande, com implicações para o atendimento tanto dos contaminados pela covid-19 quanto para a continuidade do tratamento contínuo das demais doenças.

Produto Interno Bruto (PIB, pelo IBGE em R$ 1.000.000, de 2017) e a taxa de óbitos por Covid-19 (por 100.000 hab.) em 28/05/2020 nos estados brasileiros segundo as plataformas e boletins epidemiológicos mantidos pelas SES

O caso de São Paulo
Os dados de São Paulo referentes aos leitos de UTI para covid-19 são consolidados pela Fundação Seade, que atualiza diariamente a taxa de ocupação desses leitos para todas as 18 regiões de saúde do Estado. Embora seja positivo apresentar a taxa de ocupação de leitos de UTI para todas as regiões, além da taxa geral de ocupação do Estado, as informações não estão desagregadas de acordo com o sistema de saúde gestor, ou seja, não é informado se esses leitos são do SUS ou de redes e hospitais privados. Isso significa que não é possível afirmar se a população de São Paulo não usuária da rede privada de saúde possui acesso garantido aos leitos da rede pública, ou se esses hospitais já se encontram saturados.

As informações sobre a origem e a gestão de leitos de UTI para covid-19 são especialmente importantes. De acordo com o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) do MS, o Estado de São Paulo possuía em abril de 2020, 3.382 leitos de UTI para covid-19, sendo que apenas 32% são gerenciados pelo SUS. Na cidade há uma maior proporção de leitos de UTI para covid-19 do SUS do que o encontrado no Estado (41%). Assim, é possível verificar que há uma parcela maior da população do Estado de São Paulo dependente do serviço público de saúde, em comparação com a cidade de São Paulo. Porém, a população do estado, proporcionalmente, possui menor disponibilidade de leitos SUS de UTI (CNES, 2020).

Leitos de UTI Covid-19 SUS e não-SUS. Proporção da população dependente do SUS no estado e na cidade de São Paulo – Fonte: CNES/MS, 2020

A comparação entre os leitos de UTI para covid-19 no Estado de São Paulo e na cidade de São Paulo expõe a diferença de informações apresentadas pelas secretarias de saúde do Estado e do município. Ao contrário do Estado, a Secretaria de Saúde do município de São Paulo apresenta as informações referentes ao número de leitos de UTI ocupados e vagos, além da taxa de ocupação. Enquanto o Estado disponibiliza somente a taxa de ocupação de leitos de UTI, sem diferenciar os leitos sob gestão do governo do Estado e o número de leitos existentes e ocupados.

A falta de informação rigorosa sobre as taxas de ocupação dos leitos de UTI de covid-19 pode também ser encontrada nas elevadas taxas de morte por covid-19 no Estado e no município de São Paulo no mês de maio. A taxa aumentou significativamente durante o mês de maio, embora este crescimento tenha apresentado menor intensidade do que o registrado na cidade de São Paulo, que apresentou uma taxa de crescimento médio diário de 0,7, enquanto que no Estado foi de 0,4 no mesmo período (maio de 2020).

Taxa de mortes por Covid-19 (por 100.000 habitantes) durante o mês de maio de 2020 no município de SP (em vermelho) e no estado (em azul) – Fonte: SMS-SP e SES-SP

Embora a taxa de mortes na cidade de São Paulo tenha sido superior no mês de maio, em comparação com o Estado, o mesmo não ocorreu com a taxa de ocupação de leitos de UTI Covid-19 e para a taxa de pacientes com a doença internados em UTI, uma vez que as maiores taxas de ocupação e internação foram encontradas no Estado, como ilustrado na Figura 4.

Taxa de mortes, taxa de ocupação de leitos e taxa de internação por Covid-19 na cidade de São Paulo, em vermelho, e no estado de São Paulo, em azul – Fonte: SMS-SP e SES-SP

Confiança e transparência
De acordo com a Nota Técnica, o desencontro e a inconsistência de dados dificultam a elaboração, a execução e a avaliação das políticas públicas pela sociedade. Essa situação é ainda mais grave quando o mundo e o Brasil enfrentam um dos vírus mais letais dos últimos 100 anos, um vírus que desafia os imensos avanços que a ciência e a tecnologia viabilizaram em favor da saúde humana. Pelas plataformas oficiais, a sociedade brasileira não tem condições de compreender plenamente as medidas que as autoridades e gestores públicos tomam e que respondem por profundos impactos na vida da população, a começar pelo distanciamento social e as distintas fases de sua flexibilização.

Mais ainda, o desacerto e a presença de dados discrepantes impedem que a população compreenda a importância e o benefício das políticas públicas. Somados à falta de coordenação entre o governo federal, estados e municípios, é possível identificar algumas das razões que explicam a lentidão e a oscilação dos processos decisórios, assim como a baixa adesão da população a muitas das determinações oficiais. Sem dados confiáveis e sistemas transparentes dificilmente haverá políticas públicas de qualidade, concluem os autores da nota.

A Rede de Pesquisa Solidária é uma iniciativa de pesquisadores para calibrar o foco e aperfeiçoar a qualidade das políticas públicas dos governos federal, estaduais e municipais que procuram atuar em meio à crise da covid-19 para salvar vidas.

As outras notas da Rede estão disponíveis neste link.

Publicado no Jornal da USP

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