O reinício do desmonte do Estado com o fim da pandemia, ou antes

Ao que parece, quando o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, na reunião ministerial de 22 de abril, sugeriu aproveitar a pandemia para “passar uma boiada”, não falava só por si.

Ricardo Salles (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

A atenção da grande imprensa está atualmente na política, especificamente no que se refere ao presidente da república, sua família, amigos e tudo o que se desdobra disso. Também há uma atenção, ainda que decrescente, infelizmente, na pandemia e em seus efeitos na população, principalmente clínico/sanitários, mas também econômicos.

Mas, ao que parece, quando o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, na reunião ministerial de 22 de abril, disse: “A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas…” , ele não falava só por si, ou pela sua área.

Seguindo no mesmo discurso, o ministro Salles citou outros ministros que poderiam aproveitar o momento: “… todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx (Lorenzoni) certamente cobrou dele, cobrou do Paulo (Guedes), cobrou da Teresa (Cristina), cobrou do Tarcísio (Gomes), cobrou de todo mundo.”

Pelo visto, esse pensamento era consenso na reunião. A intenção de agir dessa forma, aproveitar a ocasião para avançar em questões mais polêmicas sem chamar atenção, está clara em todas as áreas do governo federal e até de alguns estaduais e municipais.

Com a visão explicitada por Salles, o governo federal (leia-se equipe econômica) segue as tratativas para avançar nas reformas ditas “estruturantes”. E isso está sendo feito realmente sem muito alarde. Paulo Guedes se prepara e articula para que, tão logo possa, seja no pós pandemia ou até antes, já no início do segundo semestre deste ano, retomar o processo de tramitação e votação das reformas de maneira mais incisiva.

É necessário observar que essas iniciativas contam com a participação de lideranças conservadoras, que representam a maioria da Câmara e do Senado. Com os anúncios feitos pelos presidentes dessas Casas, de possível o retorno às atividades presenciais já em julho, ou agosto, o cenário estaria montado para tramitar as reformas a toque de caixa, aproveitando a ausência no Congresso Nacional das entidades representativas de servidores e de outros setores para defenderem suas posições (foi assim na votação do Marco Regulatório do Saneamento Básico há poucos dias).

A urgência do governo e dos apoiadores das reformas se baseia num possível retorno das atividades presenciais do Congresso de forma limitada e gradativa. Incialmente não seria possível a presença de “visitantes” nos espaços da Câmara e do Senado, o que facilitaria em muito as tratativas do governo, que já avançam.

Durante o webinário promovido pela Frente Parlamentar Mista do Serviço Público com parlamentares e dirigentes sindicais de Minas Gerais, no dia 13 último, ao ser questionado sobre sua opinião em relação ao retorno da tramitação das reformas no Congresso, especificamente as PECs 186/19 (Emergencial) e 188/19 (Pacto Federativo), o senador Antonio Anastasia (PSD/MG) disse que só deveriam voltar ao debate sobre esse tema “quando o Congresso voltar à sua normalidade, com a presença física dos parlamentares”.

O senador disse também que “são temas complexos, que não têm urgência em relação à pandemia, então não serão votados nesse momento. Serão discutidos, se nós voltarmos, a partir do segundo semestre. São temas de alta complexidade, que dependerão de audiências públicas, oitiva de especialistas, etc.” No entanto, não parece ser essa a posição, nem do governo, nem de lideranças parlamentares.

A nova relação governo-parlamento

O ministro Paulo Guedes, que no início do atual governo tinha dificuldades no relacionamento com parlamentares parece ter descoberto que tudo depende de quais parlamentares e do que esses parlamentares aceitam negociar. Guedes tem buscado aproximação com lideranças do bloco parlamentar independente conhecido como Centrão, grupo fisiológico que à base de cargos e algum poder, dá sustentação política ao presidente da república no Congresso. Nessa aproximação, o ministro da Economia busca evitar possíveis surpresas no Congresso e negociar apoio às reformas em tramitação, ou a serem apresentadas. Guedes já teve conversas com lideranças do PP, MDB e PL. E as conversas seguem.

Nas negociações com lideranças parlamentares e com o objetivo de acelerar a tramitação das alterações constitucionais que pretende, o governo articula uma revisão nos projetos em andamento no Congresso. Uma das alterações seria esquecer a PEC 186/19, conhecida como “PEC Emergencial”, centralizando na PEC 188/19, a PEC do Pacto Federativo, a ser revisada.

Isso porque esta última contém basicamente os mesmos pontos que tratam de redução de jornada e de remuneração de servidores em tempos de crise, ente outros pontos. Lembrando que essa mesma PEC tem o objetivo de tratar das questões de forma permanente, diferente da PEC 186/19, de tratamento emergencial, temporário. Para facilitar as discussões com parlamentares, devem ser revistos pontos controversos, como a extinção de municípios menores e com arrecadação própria inferior a 10% do orçamento.

Esse foi um dos assuntos tratados em reunião da equipe do Ministério da Economia há alguns dias com a presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, senadora Simone Tebet (MDB/MS), que também tratou desse assunto com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM/AP). Inclusive já foi acertado que o atual relator da PEC 188/19 será o relator do novo texto unificado. Entre outros projetos, está também na pauta de encaminhamentos negociada a votação na Câmara da autonomia do Banco Central, também sem muito alarde para aproveitar a ocasião.

A reforma administrativa

Sobre a pauta da reforma administrativa (a PEC 188/19 já trata de pontos dessa reforma), deve ser encaminhada ao Congresso uma proposta mais específica de reforma administrativa dentro da chamada agenda de ajuste fiscal do governo.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ) declarou que defende uma proposta “mais dura do que a que o governo tinha preparado, porque se a dívida é maior, a necessidade de economia será maior. Então, qual reforma o governo vai encaminhar e quando?” Esta declaração foi dada em um evento sobre o retorno da atividade econômica após o isolamento social. Já na quinta-feira, 25, o deputado Rodrigo Maia disse que acha difícil o encaminhamento pelo governo da reforma administrativa ainda este ano (a conferir).

No entanto, ele nada disse sobre isso não impedir o avanço das negociações e a tramitação de questões correlatas, deixando as votações mais importantes para depois das eleições municipais, ou até para o próximo ano. Vale observar que o tema também está sendo discutido por parlamentares que compõem a Frente Parlamentar da Reforma Administrativa, coordenada pelo deputado Tiago Mitraud (Novo/MG). As conversas acontecem internamente no Congresso, mas também com representantes do governo federal, de estados e municípios, visando acertar pontos e facilitar a tramitação quando for encaminhada a proposta.

Alguns pontos já anunciados são confirmados nas tratativas em andamento na construção da reforma administrativa: progressão só por avaliação de desempenho, com o fim da progressão automática; redução do piso das carreiras, com valor menor para remuneração de entrada; mais tempo entre progressões e avaliações, possibilitando que o servidor leve até trinta anos para atingir o topo da tabela remuneratória e da carreira e o fim da estabilidade para alguma carreiras, mantendo para outras, consideradas com típicas de Estado. Lembro que, diferente do discurso do presidente da república, o presidente da Câmara defende que a reforma atinja igualmente a todos os servidores. Rodrigo Maia também informou que a parte da reforma administrativa da Câmara está pronta, aguardando o mesmo do Judiciário, para discutir os três Poderes em conjunto.

Encaminhamentos das pautas no Congresso

Considerando as eleições municipais deste ano, já está acertado que este ano deverão ser evitada a votação de pontos mais sensíveis para os parlamentares do Centrão e em que o governo não quer correr riscos. Inclusive a reforma tributária anunciada deve ser simplificada, mais enxuta e, como já era esperado, sem alterações de conteúdo, mais profundas, buscando apenas simplificar e desonerar ainda mais o empresariado, retirando mais direitos dos trabalhadores. O próprio Paulo Guedes considera deixar os pontos mais polêmicos para depois das eleições municipais.

Além de cuidar da relação com parlamentares, o ministro da Economia também busca reorganizar sua equipe interna visando melhorar a relação com o Congresso e a defesa dos interesses da equipe econômica no Legislativo. O ministro aproveitou a saída do Secretário do Tesouro, Mansueto de Almeida, para reorganizar a equipe com esse objetivo.

Enquanto as alterações constitucionais não são aprovadas, o governo segue avançando em medidas infralegais.

Concursos públicos

Esta semana o ministério da Economia editou a Instrução Normativa 46, desdobramento do decreto 9.739, de 28/03/2019, alterando as regras para autorização de novos concursos. Segundo o Ministério da Economia, há nova exigência de mais informações, como cálculos de impacto financeiro a longo prazo, projetando todo o período de vínculo dos possíveis novos servidores. Isso, para verificar o impacto da autorização no “equilíbrio fiscal do Estado”.

Outro objetivo é avaliar a possibilidade de substituição de concurso para efetivos por contratação de trabalhadores temporários. Entre as exigências, os órgãos terão que comprovar que a carência de mão de obra não poderia ser suprida por remanejamento, digitalização de serviços, ou contratação de terceirizados, que não têm vínculo com a administração pública. O ministério também assume que pretende investir em concursos para carreiras com “maior exigência de qualificação” e de atividades consideradas típicas de Estado.

Outro objetivo é tornar os concursos para cargos efetivos cada vez mais espaçados e raros. Enquanto isso o governo corre contra o tempo para garantir a aprovação da MP 922, que escancara a contratação de trabalhadores temporários na administração pública. Essa MP perde a validade na próxima segunda-feira, 29. Vale ressaltar que atualmente, dos 600.000 servidores ativos do Executivo Federal, 11% são temporários, quase 70 mil pessoas. E a tendência é aumentar.

Mais reformas nas políticas sociais

Se sentindo montado na boiada anunciada por Ricardo Salles, Guedes diz que pretende encaminhar, além da reforma administrativa e da reforma tributária “fake”, a “reestruturação” das políticas sociais, com a criação de um novo programa, o Renda Brasil. Um programa ainda não finalizado, nem apresentado, mas já anunciado, num nítido “tomar de temperatura” para ver a aceitação.

Até o momento, o ministro da Economia diz que pretende unificar diversos dos atuais programas sociais, entre eles o abono salarial, que paga 1 salário mínimo/ano a quem recebe até 2 salários mínimos/mês (o mesmo que o governo quis reduzir o público beneficiário); o seguro-defeso, que paga 1 salário mínimo a pescadores impossibilitados de desenvolver suas atividades durante o período de reprodução das espécies; o salário-família, pago a trabalhadores de baixa renda no valor de R$ 48,62 para cada filho, enteado, ou tutelado até 14 anos, ou inválidos; o Bolsa Família, que é um programa de transferência direta de renda, direcionado às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, que tenham em sua composição gestantes, nutrizes (mães que amamentam), crianças e adolescentes de 0 a 17 anos, pago no valor de R$ 41,00 cada benefício, com cada família podendo acumular até 5 benefícios por mês, chegando a R$ 205,00.

Se considerarmos que, apenas no Bolsa Família, em 2019, o governo ignorou a fila de mais de 7 milhões de pessoas inscritas aguardando apenas a liberação do benefício, que a manipulação do governo federal deixou sem receber uma em cada três das cidades mais pobres do Nordeste, por “birra” com os governadores nordestinos (a maioria de oposição ao governo federal), que entre fevereiro e março deste ano houve redução de cerca de 158 mil beneficiários do programa, sem que essas pessoas deixassem a condição de necessitados, será que dá para acreditar na proposta de Paulo Guedes? Isso, claro, sem deixar de mencionar os R$ 83,9 milhões que o governo tentou, este ano, transferir do Bolsa Família para a publicidade do Palácio do Planalto, justamente durante a pandemia da Covid-19, o que não aconteceu graças à grita geral da sociedade e da imprensa.

Realmente, não é nada confiável a fala do ministro que gosta de pôr granada em bolsos de quem considera inimigos. Até porque, uma proposta de renda básica minimamente aceitável necessita de muito debate, muito estudo, não é o voucher de Milton Friedman, pai do neoliberalismo da década de 1950, defendido por Guedes, comprovadamente ultrapassado em sua concepção.

O mais provável, caso essa proposta vá adiante, seria a redução dos benefícios já existentes, deixando mais gente desassistida do que temos hoje. Até porque a proposta unificaria programas com perfis diferentes. Uma coisa é certa, Guedes quer tirar a imagem do Bolsa Família do ar, ligada profundamente ao período Lula/Dilma.

Privatizações

Além de tudo já dito até aqui, Paulo Guedes pretende também convencer seus novos parceiros do Centrão da necessidade de repor o caixa “esvaziado” pela pandemia através de quatro privatizações ainda este ano: Eletrobras, Correios, Porto de Santos e a Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), além da abertura de capital através de ações no mercado financeiro, da Caixa Seguridade. A dificuldade seria a Eletrobras, que depende da aprovação do Congresso e que tem certa resistência de lideranças do Centrão. Mas a discussão está aberta.

Por fim, cabe o registro da vitória da equipe econômica e dos conservadores privatistas, representantes da elite ultrapassada no Congresso. Capitaneados pelo “Senador Coca -Cola”, Tasso Jereissati (PSDB/CE), a aprovação pelo Senado do Marco Regulatório do Saneamento Básico abre as portas para a privatização do sistema e fecha as portas para a população mais pobre ter acesso a água tratada e coleta de esgoto. Guedes comemorou muito, dizendo que essa decisão irá contribuir para a retomada da economia do país com a chegada de investidores privados.

Sabemos que, no caso do saneamento, como já aconteceu antes, boa parte do financiamento desses “investidores” do setor privado se dará através do dinheiro público do BNDES. Até porque grandes investidores internacionais estão saindo do Brasil por, entre outros motivos, não confiarem na política ambiental, negacionista e isolacionista do atual governo.

O resultado dessa votação fez o ministro da Economia se sentir mais crédulo da aprovação das privatizações e do desmonte dos serviços públicos. Serviços esses comprovadamente essenciais para a população, em especial em tempos de crise, como a atual pandemia. Essa é a ideia do ministro da Economia para o desenvolvimento pós pandemia, não mais reduzir a máquina pública, mas se desfazer dela.

Ao contrário do mundo

O governo vai, sem nenhum exagero, na direção exatamente oposta ao que se observa em outros países que estão retirando do setor privado o saneamento básico. Cidades como Paris, Berlim, Buenos Aires e Atlanta estão entre as 208 cidades de 37 países, atingindo 100 milhões de pessoas, que entre 2000 e 2015 “remunicipalizaram” os serviços. Destaca-se que em 40% dos casos a decisão do rompimento foi unilateral por parte do Estado, enquanto que em 44,7% simplesmente não houve renovação ou reabertura para novos contratos. Os dados são do instituto de pesquisa TNI (The Transnational Institute), através do estudo “Our Public Water Future”.

Cada vez fica mais claro o retrocesso e o atraso das políticas do atual governo. Também é nítida a cegueira de Guedes, causada pela neurose obsessiva em seus delírios ultraliberais. Isso é a tradução prática da frase dita por ele, em 9 de maio deste ano, durante uma videoconferência promovida pelo banco Itaú, quando o ministro disse: “Estamos mais próximos do caminho de Ronald Reagan e Margaret Thatcher”. Alguém tem que lembrar que o mundo está quase quatro décadas adiante, o que, infelizmente, não é o caso do atual governo.

Mais do que nunca, é preciso a unidade de todas as forças contra o desmonte do Estado brasileiro e a entrega do que sobrar ao mercado financeiro, antes que a barbárie se instale de vez.

E o presidente Jair Bolsonaro? Bom, ele é só o presidente, não o governante. E por enquanto.

Fonte: Notas do Vladimir

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