Entregadores de aplicativo pedem pouco sem perder liberdade na jornada

Cientista social explica o heroísmo dos trabalhadores por aplicativo em realizar uma greve, considerando o nível de vigilância que sofrem e as retaliações imediatas. Segundo ele, o diálogo com a esquerda precisa levar em consideração, num primeiro momento, as reivindicações mínimas que estão fazendo, sem impor a formalização.

Roberto Parizotti/FotosPublicas

O cientista social Felipe Moda alertou, em entrevista ao portal Vermelho, para a necessidade do sindicalismo tradicional observar com atenção a dinâmica dos trabalhadores de aplicativo, para não sofrerem repulsa imediata. Ele estuda a lógica de funcionamento desses aplicativos e garantiu que a formalização, via carteira de trabalho, está longe de ser unanimidade entre os entregadores que entram em greve, nesta quarta-feira (1o. de julho).

Para barrar a sanha dos aplicativos que se alimentam da exploração, entregadores prometem parar as atividades nas principais cidades do Brasil nesta quarta-feira (1º). A greve deve alcançar outros países da América Latina, como Argentina, Chile e México, já que as mesmas empresas estão presentes em diversos locais.

As demandas do movimento são por condições mínimas de trabalho. Embora haja controvérsias, a maioria não tem reivindicações ambiciosas, por isso mesmo, podem ser capazes de sensibilizar a maioria. Pedem proteção na pandemia, melhoria no valor recebido por corrida e protestam contra os bloqueios misteriosos que sofrem, não podendo receber corridas.

Os bloqueios carecem de transparência, mas os entregadores acreditam que o excesso de oferta de mão-de-obra pode estar gerando esse mecanismo para garantir corridas para os novatos. As empresas não divulgam quantos trabalhadores estão circulando, quantos novos estão se cadastrando, nem quantos são bloqueados. “Tudo que se sabe vem do relato dos próprios entregadores”, diz ele, que depende dessa rede para realizar sua pesquisa.

O rendimento recebido por cada corrida também é um mistério, por não atender a nenhum padrão. Corridas mais longas podem render menos que uma corrida menor. Acredita-se que o excesso de oferta de mão-de-obra numa determinada área barateie as corridas. Portanto, a empresa alega que o algoritmo do aplicativo define o valor da corrida, sem interferência da empresa, embora o algoritmo seja uma programação prevista pela empresa.

Pesquisa on-line realizada pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra que 68,9% dos entregadores tiveram queda nos ganhos durante a pandemia. Antes, 17% diziam ganhar em torno de um salário mínimo (R$ 1.045). Agora, são 34%, um terço do total. Por outro lado, caiu para 26,7% a proporção dos que afirmavam ganhar acima de dois salários mínimos. Antes da pandemia, eram mais da metade (51%).

Carregando comida com fome

O cientista social Felipe Moda. Foto: Acervo Pessoal

Embora fosse absolutamente plausível no acordo com os restaurantes garantir o “marmitex” dos entregadores, eles reclamam de carregar comida passando fome. Segundo Moda, se o entregador não receber o suficiente para poder comprar seu alimento durante o expediente, ficará com fome. Segundo ele, os novatos que se multiplicaram com a pandemia, recebem pouquíssimas corridas nos primeiros dias, não recebendo sequer para comer.

Pandemia de precarização

Sua atividade sempre foi invisibilizada, desvalorizada e ignorada pela sociedade, ganhando um novo status durante a pandemia. No entanto, eles reclamam muito da falta de respeito por eles no trânsito, por exemplo.

A percepção de seu valor como trabalho essencial durante a quarentena, não foi acompanhada de melhorias nas condições de trabalho. Especialmente, considerando que estão mais expostos à contaminação, é lamentável perceber que não houve qualquer preocupação de empregadores em equipá-los com protetores individuais, como máscaras ou álcool gel, por exemplo.

Quando essa ajuda vem, é demorada e insuficiente, de acordo com o sociólogo, assim como direcionada apenas aos motoristas. No caso dos profissionais da Uber, por exemplo, passaram muito tardiamente a receber um vale álcool gel, que mal garante uma semana de proteção.

Com o tempo, os aplicativos passaram a constituir um fundo para ajudar trabalhadores contaminados, cujo acesso é difícil. Seria um rendimento médio por 14 dias, mesmo que os sintomas durem mais que isso. Devido à subnotificação e falta de testes, é difícil provar com laudo médico que se está contaminado. O laudo demora dias pra sair, em que você sai pra trabalhar contaminado. A partir do laudo, a empresa bloqueia o aplicativo desse trabalhador para analisar a suficiência da documentação. São três dias de trabalho que se perde caso a empresa não aceite a documentação. Exigências que dificultam enormemente o acesso ao fundo, mas que ninguém pode dizer que não existe.

Ainda sobre a situação dos motoristas de aplicativo, Moda relata que a pandemia afetou muito a demanda por seu trabalho, tanto reduzindo as corridas, quanto causando temor pela contaminação entre os motoristas. Com isso, eles estão muito desarticulados nos últimos meses. A mobilização mais premente entre eles é por rendimento maior, mas também por segurança no trabalho, devido aos assaltos e violência de que são vítimas.

Dificuldade de mobilização

Existe um senso comum que ignora o quanto esses trabalhadores são articulados, observa Moda. São uma categoria nova que foge aos padrões do sindicalismo tradicional, por sua informalidade, mas também por sua capacidade de se organizar horizontalmente via redes sociais.

Portanto, para Moda, não surpreende que sejam muito articulados, em constante contato entre si, por grupos de WhatsApp, se organizando para reivindicar melhores condições de trabalho, como já se observou no caso dos motoristas de Uber. Aliás, ele acredita que o nível de articulação entre entregadores de aplicativo seja melhor do que muitas categorias clássicas do sindicalismo, com muita expressão de solidariedade entre eles devido à enorme precariedade das condições de trabalho.

É um trabalho muito vigiado, pois os aplicativos têm condições de saber tempo de trabalho, rotas e desvios de rotas, assim como consegue perceber quando muitos entregadores estão indo para o mesmo lugar, como no caso das manifestações. “Os aplicativos conseguem monitorar exatamente quem participou da manifestação e as represálias podem vir em forma de corte imediato, ou de bloqueios de chamadas, reduzindo drasticamente o rendimento do entregador, que não consegue saber se houve queda na demando ou outro motivo”, diz Moda, segundo quem o entregador apenas recebe uma mensagem de infração das normas do aplicativo, sem sequer poder responder a mensagem ou saber mais detalhes.

Portanto, a dificuldade de fazer um protesto envolve a questão da “vigilância e punição”, mas também o fato da produtividade depender totalmente do tempo empreendido no serviço. “Parar para protestar significa cortar na própria carne o rendimento do dia-a-dia, quando você já recebe muito pouco, enquanto outras categorias tendem a manter a remuneração, mesmo em greve”.  No dia da greve, com menos entregadores na rua, a remuneração por corrida deve aumentar para estimular os “pelegos” a furarem a greve.

Os consumidores também podem ajudar a luta dos entregadores. Acima de tudo, eles solicitam que as pessoas não peçam comida pelos aplicativos neste dia. Se não puderem cozinhar, que se dirigm diretamente aos restaurantes. Além disso, pedem que os consumidores avaliem com a menor nota esses aplicativos, nas lojas virtuais. E deixando também comentários para denunciar a exploração dos trabalhadores.

Diálogo com a política tradicional

O pesquisador diz que a articulação desses trabalhadores com os instrumentos de luta da esquerda são muito embrionários. Ele acredita, inclusive, numa resistência ao sindicalismo e a políticos de esquerda, por acreditarem que sua situação precária, em parte, se deve à atuação da esquerda como governo, no último período. “Mas eu acredito que, com o tempo, é possível reconstruir laços de solidariedade com esses trabalhadores, mostrando capacidade de compreensão de sua situação trabalhista”.

Ele afirma que o sindicalismo e a política precisa dialogar para compreender as demandas desse grupo, sem impor pautas prontas tradicionais. A cobertura da CLT, por exemplo, está longe de ser unanimidade entre eles. As péssimas condições de trabalho no Brasil de modo geral, para quem é registrado, com salários baixos, submetido a assédio moral e horários rígidos, é um dos fatores para a rejeição à CLT.

“É muito presente no discurso deles, dizer que preferem fazer seu horário, sem estar submetido oito horas seguida a um patrão, mesmo sem contar com qualquer direito trabalhista”, diz Moda, ressaltando o “caráter despótico do patrão brasileiro”, em geral, descrito na maioria dos relatos desses trabalhadores. “Precisaria pensar em regulamentação trabalhista que incluísse a jornada flexível [que é o trunfo dos aplicativos]. Simplesmente oferecer 40 horas de trabalho registrado, como uma categoria tradicional, não atrai esses trabalhadores”, alertou.

Facilidades

Os entregadores de aplicativo não vão para essa atividade voluntariamente. A maioria vem do desemprego ou de empregos ainda mais precarizados. São jovens com mínima qualificação profissional ou que nunca tiveram um emprego, e começam a entrar no mercado de trabalho. “É muito fácil se tornar um trabalhador desses aplicativos, sem número de vagas, sem processo seletivo, com exigências muito simples. Você escolhe ser trabalhador dessas empresas, não são elas que te escolhem”, explicou.

Diferente dos entregadores, os motoristas de carro são mais maduros, estavam chegando ao curso superior ou saíram dele e não encontram emprego, ou ainda acabaram de perder o emprego. Existe estratificação de renda, também, entre motoristas e entregadores, assim como entre entregadores de motocicleta e de bicicleta. “O entregador que usa a bicicleta do Itaú, por exemplo, gasta sua renda pra comprar uma bicicleta própria ou junta tudo que ganha para comprar uma moto, por outro lado, o motorista de carro vem de uma classe média que teve condições de comprar um carro e mantê-lo”, descreve.

Informalidade

Moda ressalta o fato de que para analisar os parâmetros do trabalho por aplicativos no Brasil, é preciso considerar as diferenças para outros países. Na Europa, a precarização trabalhista é mais gritante, porque a informalidade é algo muito restrito lá. No Brasil, por outro lado, o trabalho informal é parte da normalidade, há séculos. Portanto, muitos estranham a indignação com as condições de trabalho dessas pessoas, considerando que parcela gigantesca dos brasileiros trabalha em condições ainda piores “e nem reclamam disso”.

Para o pesquisador, a novidade dos aplicativos é que os trabalhadores passaram a se sentir parte de uma categoria. Os aplicativos por sua vez, passaram a submeter o trabalho informal a uma lógica de lucro ainda mais selvagem.

“Se havia uma massa de trabalhadores autônomos atuando como entregadores na informalidade, os aplicativos conseguiram submeter esse enorme exército de mão de obra sob seu domínio, lucrando em cima dessa força de trabalho. Assim, o trabalho informal passou a ser lucrativo para grandes corporações, como não era anteriormente”, resumiu.

Assista abaixo a live em que Felipe Moda explica o trabalho dos entregadores e motoristas por aplicativo:

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