Hábitos culturais podem explicar o mistério da pandemia no Japão

A baixa mortalidade por covid-19 no Japão, sem seguir as orientações da OMC, tornou-se polêmica entre cientistas e motivo até de racismo.

Com poucos casos e óbitos, Tóquio começa a voltar da quarentena voluntária

O Japão não tem a taxa mais baixa de mortalidade para covid-19. Na região, Coreia do Sul, Taiwan e Vietnã têm taxas menores que o Japão. Ainda assim, os números do arquipélago surpreendem pela timidez com que a pandemia avançou sobre o país, mesmo sem tomar medidas mais rígidas de isolamento social.

Em termos comparativos, o Japão tem 4,5% do território brasileiro, mas 60% da nossa população, portanto, com maior dificuldade de isolamento social devido à alta concentração demográfica. O país está entre os que menos testaram: 4 mil testes por milhão de habitantes contra 20 mil testes brasileiros. No entanto, enquanto o Brasil teve, até agora, 314 mortes por milhão de habitantes, o Japão teve apenas 8. Enquanto o Brasil teve quase 8 mil casos por milhão, o Japão teve 158 contágios a cada um milhão de japoneses.

Com menos de mil mortes confirmadas, é possível que a quantidade geral de mortes venha a ser menor do que foi em 2019. Tudo isso com quase nada de rigidez no combate à pandemia, ao contrário daqueles vizinhos.

O Japão manteve suas fronteiras abertas, quando muitos já tinham fechado. É o país com a população mais idosa do mundo e, como já devidamente enumerado, as ilhas são densamente “apinhadas” de gente em grandes cidades. A Grande Tóquio tem quase o dobro de habitantes (37 milhões) da Grande São Paulo (21 milhões), multidão que se expressa internacionalmente pelos trens absurdamente lotados.

O governo japonês não se dignou a testar a população, uma medida considerada fundamental para definir estratégias de controle epidêmico. Ainda agora, o total de testes PCR está em apenas 510 mil, ou 0,40% da população, contra 2% do Brasil, que também está entre os países que menos testam (105o. contra 157o. do Japão, num lista de 215 países).

Ao declarar estado de emergência, no início de abril, o governo apenas pediu para a população ficar em casa. Serviços não essenciais foram convidados a fechar, mas não havia nenhuma punição prevista para quem recusasse o convite. Ou seja, até aqui, o Japão não seguiu nada da receita aplicada por seus vizinhos que reduziram drasticamente o avanço da pandemia. O estado de emergência foi revogado e a vida está rapidamente voltando ao normal.

E, ainda assim, cinco meses após o registro do primeiro caso de covid-19, o Japão tem menos de 20 mil casos confirmados e menos de mil mortes. Lembre-se que o Brasil tem quase 1,7 milhão de casos e mais de 66 mil mortos.

A empresa de telecomunicações Softbank realizou testes de anticorpos em 40 mil funcionários, que mostraram que apenas 0,24% havia sido exposto ao vírus. Testagem randômica de 8 mil pessoas em Tóquio e duas outras cidades mostraram níveis ainda mais baixos de exposição. Em Tóquio, só 0,1% testaram positivo. Isso serviria de evidência do controle da pandemia.

Recentemente, o primeiro-ministro, Shinzo Abe, afirmou que outros países deveriam aprender com o Japão. Mas aprender o que?

Superioridade nipônica

Para o vice-primeiro-ministro, Taro Aso, a explicação tem a ver com a “qualidade superior” do povo japonês. Pelo menos é o que disse em um notório — e bastante criticado — comentário, ao ser perguntado por lideranças de outros países sobre o sucesso do Japão.

“Eu disse a essas pessoas: entre o seu e o nosso país, o mindo (nível das pessoas) é diferente. E isso os deixou quietos e sem palavras”. Mindo é um conceito dos tempos do período imperial do Japão, que denota um senso de superioridade racial e chauvinismo cultural.

Apesar do termo infeliz, muitos japoneses, e alguns cientistas, pensam que há mesmo algum fator inexplicável protegendo a população contra a covid-19.

O Japão tem as taxas mais baixas de doenças do coração e obesidade no mundo desenvolvido. Ainda assim, os cientistas insistem que esses sinais vitais não explicam tudo, pois a covid-19 em se mostrado um desafio para todos os sensos comuns estabelecidos.

Os japoneses começaram a usar máscaras há mais de 100 anos, durante a pandemia de gripe em 1919, e jamais pararam desde então. Se você tiver tosse ou um resfriado é esperado que você use máscara para proteger os outros ao seu redor.

Alguns aspectos dos códigos sociais japoneses — com poucos beijos e abraços nos cumprimentos — que permitem que o distanciamento social seja praticado naturalmente poderiam fazer parte da explicação. Mas ninguém parece achar que essa é a resposta.

Um professor da Universidade de Tóquio, Tatsuhiko Kodama, que estuda como pacientes japoneses reagiram ao vírus, acredita que o Japão já pode ter enfrentado uma doença como a covid-19 antes. Não exatamente a covid-19, mas algum tipo similar que pode ter deixado uma “imunidade histórica”.

O pesquisador considera ser possível que um vírus da família Sars já tenha circulado pela região antes, o que poderia explicar a taxa de mortalidade baixa, não apenas no Japão, mas também na China, Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e sudeste da Ásia.

Essa tese, no entanto, tem sido vista com certo ceticismo, pois seria difícil manter um vírus como esse restrito à Ásia.

Três lições rapidamente aprendidas

O Japão também descobriu dois padrões significativos bem no começo da pandemia. Mais de um terço das infecções se originaram de lugares muito similares: casas noturnas e karaokês.

A equipe identificou que “respiração forte e proximidade”, incluindo “cantar em salões de karaokê, festas, celebrar em clubes, conversar em bar e frequentar academias” como as atividades de maior risco.

Além disso, a equipe descobriu que a transmissão da infecção se restringiu a um percentual pequeno de pessoas que carregavam o vírus. Um estudo preliminar apontou que cerca de 80% das pessoas com Sars-Cov-2 não infectaram outras pessoas. Já os outros 20% eram altamente infecciosos.

Em vez de dizer “fiquem em casa”, o governo lançou uma campanha nacional avisando a população para evitar:

  • lugares fechados com pouca ventilação
  • lugares lotados com muita gente
  • contato próximo em conversas

Por um tempo, isso funcionou. Mas, em meados de março, as infecções aumentaram em Tóquio e a cidade parecia caminhar para o crescimento exponencial. Nesse momento, o Japão ou teve sorte ou fez algo muito esperto — ainda não sabemos ao certo.

Disciplina oriental

Acredita-se que as medidas foram tomadas no momento certo. No Brasil, por exemplo, há vários problemas de timing nas medidas governamentais. A quarentena começou antes do tempo, desgastando a população, especialmente aquela do interior do país que não via nenhum caso de covid-19, e agora, com a pandemia perto do pico de casos, os governos relaxam o isolamento social por pressão econômica e da própria população que não suporta mais ficar em quarentena.

O primeiro-ministro, Shinzo Abe, decretou um estado de emergência não obrigatório em 7 de abril, pedindo às pessoas que ficassem em casa “se possível”. Isto não podia ser adiado ou teria levado a uma explosão de casos, avaliam os cientistas.

Sobre as lições a serem aprendidas pelo modelo japonês, um elemento claramente definidor dos resultados é a disciplina e colaboração da população em relação aos pedidos do governo. Mesmo sem medidas draconianas, as pessoas ficaram numa quarentena mais rigorosa do que aquelas que se observam no Brasil.

O governo pediu para as pessoas se cuidarem, evitarem lugares lotados, usar máscaras e lavar as mãos, e, de maneira geral e ampla, foi exatamente isso que a maioria das pessoas fez.

Publicado em BBC News

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