Anatel e governo Bolsonaro agem contra o interesse público e nacional

Não faz sentido uma agência reguladora mergulhar o mercado audiovisual em um quadro de crise e instabilidade jurídica em plena pandemia

Em guinada radical, a Anatel se prepara para tomar uma decisão que atende aos grandes conglomerados de mídia e telecomunicações estrangeiros, liberando-os de qualquer obrigação com o País e com a cultura brasileira.

A decisão temerária é autorizar que TV paga seja distribuída via internet por quem não detém autorização de Seac (Serviço de Acesso Condicionado), sem regulação das agências, sem obedecer ao código do consumidor, sem recolher ICMS e, principalmente, sem cumprir as regras da lei do Seac. Imaginem a tragédia que seria se o Banco Central decidisse o mesmo em relação às fintechs.

A consequência será a revogação tácita da lei da TV paga. Assim, a Anatel não apenas usurpará atribuições do Congresso como confrontará acórdão do Supremo Tribunal Federal que, em 2017, decidiu consagrar a neutralidade tecnológica para a TV paga em cumprimento à Constituição Federal.

O resultado será menos filmes e séries nacionais em nossas casas, já que as programadoras estarão desobrigadas de exibir conteúdo brasileiro, e as distribuidoras, de exibirem canais nacionais. Com eles, desaparecerão empregos e empresas, mas sobretudo valores culturais.

Ao se mover nessa direção, a Anatel e o governo Bolsonaro agem contra o interesse público e nacional.

O Brasil viveu a partir da lei do Seac, apesar da crise econômica, o melhor momento do seu mercado audiovisual. Cresceu o número de assinantes em relação ao ano de aprovação da lei, cresceu o número de canais brasileiros e explodiu a produção audiovisual nacional, chegando à casa dos brasileiros em mais de 90 canais.

É muito positivo que a expansão da banda larga no Brasil traga consigo não apenas novos serviços audiovisuais como o vídeo sob demanda – mas também novas formas de oferta de TV aberta e TV paga. É desejável ainda que novos distribuidores de Seac operem, o que é facilitado por não terem que realizar vultosos investimentos em redes de distribuição. Mas não é razoável que o uso da internet para tal oferta seja utilizado para fraudar a Constituição Federal e a lei.

A ameaça pode ser contida. Os produtores independentes de TV recorreram ao STF para que este avalie a conformidade de interpretação da Lei 12.485 e da Lei Geral de Telecomunicações, segundo a Constituição. O ministro Luiz Fux, no julgamento anterior, em voto que foi acompanhado por todos os ministros do Supremo, anteviu que manobras tecnológicas poderiam ser adotadas para fugir às obrigações constitucionais e legais em relação a comunicação social.

É razoável esperar que os conselheiros da Anatel adotem uma postura de cautela e não cedam à manobra. Não faz sentido uma agência reguladora mergulhar o mercado audiovisual em um quadro de crise e instabilidade jurídica em plena pandemia. Quem tem legitimidade para alterar a lei é o Congresso, em atenção aos interesses nacionais e da sociedade.

Todos que queiram atuar na distribuição de audiovisual são bem-vindos. Mas não ao arrepio da lei, não em detrimento do direito dos brasileiros produzirem filmes e séries e de assistirem ao talento de seus criadores, artistas e técnicos. O Brasil merece continuar a se ver nas telas.

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