Israel e a última etapa de uma longa história de roubo de terras

O governo de Benjamin Netanyahu perdeu o primeiro prazo para anexar parte da Cisjordânia, mas o esquema apoiado por Trump para roubo de terras continua na mesa. O objetivo de Netanyahu e de seus aliados nos EUA é simples: querem liquidar as aspirações nacionais palestinas.

Muro que separa a Cisjordânia de Israel - Foto: Justin McIntosh / Wikimedia Commons

O plano aprovado por Israel, com apoio dos EUA, de anexar grande parte da Cisjordânia, uma completa violação do direito internacional e ato de roubo racista, visa impedir as aspirações nacionais palestinas. A medida, baseada no chamado “acordo do século”,de Trump, é menos um roteiro para a paz do que uma tentativa de liquidar o direito palestino à autodeterminação.

O acordo diz que procura resolver a questão palestina. Espera-se que eles se desmilitarizem, sem que Israel faça o mesmo, e aceitem um Bantustão [como eram chamados os enclaves do apartheid na África do Sul] inviável, em lugar de um Estado próprio, em troca do cumprimento de uma longa lista de condições absurdas estabelecidas por seus opressores, incluindo a renúncia ao direito dos refugiados voltarem para seus lares, deixando Israel e os EUA escolherem quem governa Gaza, ou manter o território inabitável.

Com a anexação, Israel reivindicará soberania em cerca de 30% do território da Cisjordânia, incluindo a maior parte do vale do Jordão e mais de 230 assentamentos ilegais de Israel – um padrão de roubo colonial, dadas as anexações anteriores de Israel em Jerusalém e nas Colinas de Golã, na Síria – 77% do território da Palestina histórica que atualmente forma Israel.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, disse inicialmente que declararia a nova rodada de anexações em 1º de julho, mas seu governo adiou a mudança por período não especificado, enquanto Netanyahu tenta navegar em sua posição tênue na política doméstica ao lidar com a Covid-19. Ele também quer indicações precisas das formas de furto de terras que serão permitidas por seus chefes em Washington. No entanto, todas as indicações são de que a liderança israelense quer aproveitar a oportunidade para consolidar logo esta fase da colonização, para que as condições não mudem.

Para compreender a jogada da anexação, é preciso reconhecer que um impulso duplo em direção ao expansionismo e à superioridade demográfica está no centro da ação sionista de Israel. O desafio, para os estrategistas israelenses, tem sido aumentar a quantidade de terra que controlam na histórica Palestina, garantindo uma maioria judaica – “terra máxima com um número mínimo de árabes”, nas palavras do historiador Nur Masalha. Por exemplo, o projeto Trump envolve a transformação de mais de 260 mil palestinos de cidadãos de Israel em sujeitos de um futuro enclave palestino.

As anexações que provavelmente ocorrerão este ano são o capítulo mais recente da engenharia demográfica que sempre foi central no sionismo. Seu fundador, Theodor Herzl, escreveu em 1895 : “Tentaremos expelir a população pobre [palestina] para o outro lado da fronteira, buscando emprego para essa população nos países de trânsito, mas negando-lhe qualquer emprego”. O estado sionista colonial na Palestina é o que ele imaginou.

Embora o sionismo tenha tido várias correntes, as duas que eram hegemônicas desde antes da criação do estado de Israel – o sionismo trabalhista e o sionismo revisionista – procuraram, como destaca Avi Shlaim, “criar um estado judeu em uma terra já habitada por outro povo”, mesmo que diferissem sobre exatamente quanto da Palestina histórica os sionistas deveriam controlar, ou as táticas a serem usadas na busca de seus objetivos.

Tem sido uma empresa colonial desde o início, baseada no desenraizamento da população palestina original e na sua substituição por pessoas de outros lugares. Como Joseph Massad diz, ao longo de sua história, o sionismo “permaneceu descarado (…) seu compromisso de construir um estado judeu demograficamente exclusivo, inspirado na Europa cristã, uma noção permeou (…) por uma epistemologia religioso-racial de supremacia sobre os árabes palestinos, não muito diferente da usada pelo colonialismo europeu com sua ideologia de supremacia branca sobre os nativos.”

Nos anos que antecederam e imediatamente após a criação de Israel, os sionistas foram claros sobre suas intenções e até sobre a legitimidade das reivindicações quanto à Palestina. Vladimir Jabotinsky, o fundador do sionismo revisionista, argumentou que os sionistas que procuravam se comprometer com os palestinos estavam iludidos na opinião “de que os árabes são algum tipo de tolos que podem ser enganados (…) e abandonarão seu direito de primogenitura na Palestina.”

Mais tarde, David Ben-Gurion, sionista trabalhista e o primeiro primeiro-ministro de Israel, admitiu: “Se eu fosse um líder árabe, nunca faria acordos com Israel. Isso é natural, nós tomamos o país deles”. Para ele, transformar os palestinos em minoria em sua terra natal não foi suficiente: “Não pode haver um estado judeu estável e forte enquanto houver uma maioria judaica de apenas 60%”. Encolher a população palestina e ampliar a de Israel tem sido uma característica fundamental do sionismo, não apenas na teoria, mas também na prática. A criação de Israel envolveu forças sionistas expulsando 750 mil palestinos na Nakba (“catástrofe”, em árabe) de 1947-1948. Cinco milhões de palestinos e seus descendentes ainda são refugiados apoiados pela ONU.

Segundo a BADIL, uma ONG que tem status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, outros 2,25 milhões de palestinos se tornaram refugiados desde 1948 – mais de um milhão deles foi expulso de suas casas durante a conquista da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental por Israel em 1967 e mais 718 mil foram deslocados internamente.

Israel impede que os refugiados exerçam seu direito de volta a suas casas, enquanto, por outro lado, a Lei do Retorno de Israel permite que qualquer pessoa na Terra que seja considerada judia pelo Estado possa migrar para Israel e se tornar automaticamente um cidadão. Se a justiça para os refugiados palestinos fosse realizada, provavelmente haveria uma maioria palestina em ambos os lados da Linha Verde, o que seria uma derrota histórica para o movimento sionista.

Israel foi além de garantir que os refugiados permaneçam refugiados para construir seu Estado Nacional. Seu terrível muro de separação é funcionalmente uma barreira de anexação, já que 85% dele separam terras palestinas. Israel encolhe Gaza ao tomar posse da terra palestina na Faixa e chamá-la de “zona tampão”, privando os palestinos que vivem lá de suas casas e agricultura.

De acordo com o grupo israelense de direitos humanos B´Tselem, a política israelense em Jerusalém Oriental é projetada para pressionar os palestinos a sair da cidade, para moldar “uma realidade geográfica e demográfica que frustraria qualquer tentativa futura de desafiar a soberania israelense”. Desde 1967, como a ONG ressalta, Israel revogou a residência permanente em Jerusalém Oriental de aproximadamente 14,5 mil palestinos. É quase impossível para os palestinos obter licenças de construção ou reforma na cidade e, em 1973, a lei de Israel determinou uma proporção demográfica de 73/26 para o povo judeu em Jerusalém.

Netanyahu deixou claro que pretende continuar cultivando a colônia, deixando Israel legalmente responsável pelo menor número possível de palestinos – os corolários lógicos da “terra máxima com um número mínimo de árabes”, são “árabes máximos na terra mínima” e “controle máximo e responsabilidade mínima”. Netanyahu disse a um jornal de direita que Israel anexará o vale do Jordão sem que os 50 mil a 65 mil palestinos que vivem lá se tornem cidadãos de Israel, para que eles não tenham voz sobre quem os governa e como.

No entanto, insiste que o “controle de segurança” israelense ainda se aplicará a Jericó, por exemplo, uma cidade palestina no vale do Jordão. O primeiro-ministro acrescentou que nem permitirá a paródia descontínua e não-soberana de um hipotético “Estado” palestino que Trump prometeu. Em outras palavras, o plano EUA-Israel é continuar a dominar os palestinos, negando-lhes direitos democráticos e nacionais elementares.

Embora Israel tenha anexado terras roubadas aos palestinos, e matado-os regularmente em grande número, aumentou sua própria população e o território a seu alcance, estabelecendo ilegalmente 620 mil pessoas na Cisjordânia e Jerusalém Oriental.

A história da espoliação da Palestina não foi meramente dirigida pela supremacia racial-religiosa por si. Significa também aumentar a riqueza da classe dominante de Israel e de seus parceiros capitalistas internacionais. Após a Nakba, Israel aprovou a Lei de Propriedade dos Ausentes, que define os palestinos etnicamente como “ausentes”, criando um pretexto para Israel roubar suas terras, casas e contas bancárias.

A lei criou a categoria absurda do “presente-ausente”, para que Israel pudesse confiscar a propriedade dos palestinos que ainda estavam na Palestina, mas haviam sido deslocados internamente. Esses passos criaram simultaneamente uma barreira adicional à volta dos palestinos e enriqueceram os israelenses.

A empresa estatal israelense de água Mekorot leva água dos palestinos da Cisjordânia para abastecer os israelenses – incluindo aqueles que vivem em assentamentos ilegais – para fins domésticos, agrícolas e industriais. Muitas vezes, vende essa água de volta aos palestinos a preços exagerados que podem absorver metade da renda mensal de uma família pobre.

Os assentamentos israelenses controlam pouco mais de 85% das terras mais férteis da Cisjordânia: o vale do Jordão, em particular, é uma região agrícola rica em recursos. O norte do Mar Morto, também alvo do assalto à mão armada do “acordo do século”, contém jazidas de magnésio, potássio e bromo que podem ser avaliadas em centenas de milhões de dólares anualmente. As anexações que as sanções da trama de Trump permitem, observa a B’Tselem, deixarão que Israel continue pilhando terras e recursos palestinos valiosos.

Mesmo que a aliança EUA-Israel permita a criação de “enclaves palestinos autogovernados”, a ideia é que Israel controle as passagens de fronteira, o espaço aéreo e o mar, determinando as condições sob as quais o capital, trabalho e recursos naturais fluam dentro e fora de toda a Palestina histórica. Da mesma forma, os palestinos ainda ficariam sujeitos à permissão de Israel para qualquer construção ou desenvolvimento. Essa dinâmica permitirá que Israel mantenha os palestinos em seu campo econômico, permitido à classe dominante israelense controlar as atividades produtivas entre o rio Jordão e o mar.

Todas essas agressões devem ser vistas em um contexto global e regional que as torna possíveis. Durante décadas, os EUA deram a Israel as ferramentas políticas, econômicas e militares para praticar seus crimes contra os palestinos, porque Israel atua como um cão de ataque dos interesses imperialistas dos EUA.

Israel, agora, está em posição de anexar, não apenas porque a Casa Branca de Trump está dando permissão para fazê-lo, mas também porque Trump foi precedido por uma administração Obama que foi uma das mais pró-sionistas da história. Enquanto isso, algumas nações europeias podem preferir disciplinar Israel – de maneira relativamente leve – pela anexação, mas a União Europeia está dividida sobre o que fazer. É questionável se alguma resposta eventual equivaleria a mais do que uma repreensão moderada.

As condições no Oriente Médio também são adequadas para anexação: quase todos os governos árabe, que há muito tempo são facilitadores tácitos da pilhagem israelense, agora estão abertamente em aliança com Israel, baseada em laços econômicos e inimizade compartilhada com o Irã. Essas relações significam que Israel sabe que pode fazer o que quiser com os palestinos sem arriscar qualquer reação dos estados da região. A Jordânia fez algum barulho sobre o fim de seu tratado de paz com Israel, mas é improvável que siga essa retórica, dada a dependência da monarquia jordaniana aos EUA.

O objetivo da anexação é extinguir a causa palestina, mas não terá sucesso. Os palestinos não passaram por um século de colonização e mais de setenta anos de exílio e apatridia, apenas para serem comprados por Donald Trump. Até os membros mais interessados ​​da burguesia palestina se recusaram a morder a isca. A anexação e o documento de Trump em que se baseia prometem exacerbar, em vez de resolver, as demandas palestinas. Em vez de concordar com os termos de rendição que agora lhes são impostos, os palestinos certamente continuarão sua luta corajosa e de princípios contra os desígnios de EUA-Israel.

O principal efeito da anexação seria formalizar o que já é a realidade de fato no terreno: um Estado para controlar toda a Palestina histórica. Um governo de Joe Biden provavelmente retornaria ao status quo pré-Trump, no qual o apoio dos EUA ao roubo de terras por Israel permanece tácito.

Se Biden se tornar presidente, Israel pode ser levemente incomodado por murmúrios sobre o reinício da pantomima do processo de paz, com pouco efeito real. A Europa pode se opor a algo tão abertamente provocador quanto a anexação, mas a UE está tão profundamente envolvida com Israel que não está prestes a abandonar o projeto mais amplo do colonialismo sionista.

A reparação palestina e a descolonização da Palestina não serão presenteadas nas salas de conferência de Bruxelas e Washington. Isso só pode ser realizado através de uma combinação de resistência palestina em massa com apoio regional e solidariedade internacional dentro do núcleo do imperialismo. À medida que as manobras entre EUA e Israel tornam ainda mais a ideia de uma solução de dois estados uma piada cruel, a luta palestina se torna cada vez mais propensa a reivindicar direitos iguais em um único Estado em toda a Palestina histórica. Nesse sentido, com cada anexação e cada novo assentamento, o sionismo pode estar semeando a própria destruição.

Fonte: Jacobin/ Tradução: José Carlos Ruy

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