Assédio Institucional como prática de governo

Intimamente relacionado à desdemocratização é fenômeno sociológico e jurídico que apresenta duas vertentes, uma organizacional e outra moral

(Imagem: ciranda.net)

Para que os leitores não percam a conta: este é o terceiro artigo de uma série de sete que abordam o processo, em curso célere no governo Bolsonaro, de desmonte do Estado brasileiro. Já falamos aqui da subalternidade externa– ou como o Brasil se tornou o perigo e a piada do mundo – e da desdemocratização, fenômeno este por meio do qual a soberania popular, isto é, o povo como ator político legítimo, é alijado dos processos decisórios fundamentais da república.

Pois intimamente relacionada à desdemocratização está o fenômeno que aqui chamaremos de assédio institucional no setor público brasileiro, um fenômeno sociológico e jurídico novo e perturbador, até o momento negligenciado no debate público, mas com consequências desastrosas para o ente estatal e para a própria sociedade brasileira. O assédio institucional está para o setor público brasileiro, assim como a desdemocratização está para as relações entre Estado e Sociedade no Brasil de Bolsonaro.

O assédio institucional possui uma vertente organizacional e outra moral, mas em ambos os casos, trata-se da forma dominante de relacionamento entre distintas instâncias ou organizações hierárquicas em cada poder da União e nível da federação. E dentro de cada poder e nível federativo ou organizacional, entre chefias e subordinados, caracterizando, neste caso, o fenômeno típico do assédio moral, que obviamente não é exclusividade do setor público.

Para ser justo, é preciso dizer que o assédio institucional sempre existiu dentro do setor público, mas é apenas com o advento do atual governo que ele ganhou escala, método e funcionalidade. Em outras palavras: o assédio institucional é parte integrante das práticas cotidianas do governo Bolsonaro para desmontar o Estado nacional. Neste sentido, ele pode ser considerado um método de governo, cuja escala ampliada de situações (vide gráfico abaixo) demonstra que o fenômeno deixou de ser algo esporádico ou acidental, como no passado, para se tornar algo patológico, uma prática intencional com objetivos claramente definidos, a saber:

i) desorganizar – para reorientar pelo e para o mercado – a atuação estatal;

ii) deslegitimar as políticas públicas sob a égide da CF-1988; e

iii) por fim, mas não menos importante, desqualificar e negativar os próprios servidores públicos, mormente os estatutários, sob guarida do RJU criado também na CF-1988.

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É preciso ter claro que, diferentemente do assédio moral tradicional, o assédio institucional de natureza organizacional caracteriza-se por um conjunto de discursos,
falas e posicionamentos públicos, bem como imposições normativas e práticas administrativas, realizado ou emanado (direta ou indiretamente) por dirigentes e gestores públicos localizados em posições hierárquicas superiores, e que implica em recorrentes ameaças, cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e deslegitimações acerca de determinadas organizações públicas e suas missões institucionais e funções precípuas.

Enquadram-se nessa nova categoria sociológica e jurídica as reiteradas, infelizes e preconceituosas declarações do próprio Presidente da República e alguns dos seus ainda ministros Paulo Guedes (Economia), Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), Ricardo Salles (Meio Ambiente), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), dentre outros, e vários de seus subordinados, acerca, por exemplo, dos supostos parasitismo e esquerdismo inerentes aos servidores públicos, que são funcionários sob comando do Estado, mas a serviço da sociedade brasileira, incluindo os próprios detratores. Esses ataques repetem-se de forma sistemática desde o início do governo Bolsonaro, e visam claramente criar um clima de animosidade da população e dos financiadores e avalistas do atual governo contra os servidores, de modo a facilitar a imposição, obviamente não negociada, de uma reforma administrativa de caráter reducionista, persecutória e criminalizadora da própria ação estatal.

Ocorre que todas as propostas em curso de reforma administrativa que visam, quase que exclusivamente, reduzir gastos correntes forjando para baixo as contratações e remunerações dos servidores públicos, possuem teor altamente questionável. Não apenas porque são medidas sem fundamentação técnica razoável e bastante ineficazes para se obter ajuste fiscal estrutural nas contas públicas, como porque mal escondem o viés ideológico que está na verdade por detrás da aparente tecnicidade fiscal, passando longe de qualquer proposta crível de melhoria do desempenho estatal.

Alguns outros exemplos de assédio organizacional são eloquentes contra Universidades e Institutos Federais, ANVISA, ANCINE, BNDES, CNPQ, CAPES, FINEP, FIOCRUZ, FUNAI, IBGE, IBAMA, ICMBIO, INPE, INEP, IPEA e até mesmo contra organizações e carreiras do chamado núcleo administrativo ou estratégico de Estado, representado pelo FONACATE (Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado), tais como: Fiscalização Agropecuária, Tributária e das Relações de Trabalho; Arrecadação, Finanças e Controle; Gestão Pública; Comércio Exterior; Segurança Pública; Diplomacia; Advocacia Pública; Defensoria Pública; Regulação; Política Monetária; Inteligência de Estado; Pesquisa Aplicada, Planejamento e Orçamento Federal; Magistratura e o Ministério Público. Tais evidências reforçam a tese de que o que está em jogo é também o apagar de memórias e a recontagem da história oficial segundo a visão de mundo ora instalada no poder.

Por sua vez, o assédio institucional de expressão moral caracteriza-se por ameaças (físicas e psicológicas), cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e perseguições, geralmente observadas entre chefes e subordinados (mas não só!) nas estruturas hierárquicas de determinadas organizações públicas (e privadas), redundando em diversas formas de adoecimento pessoal, perda de capacidade laboral e, portanto, mau desempenho profissional no âmbito das respectivas funções públicas. No interior do setor público, geralmente, assédio organizacional e assédio moral estão correlacionados, caracterizando o que aqui chamamos, de modo mais amplo, de assédio institucional no setor público.

Sendo este, portanto, fenômeno novo e perturbador no interior do setor público brasileiro, com formas de manifestação diversas e consequências deletérias ao bom funcionamento de organizações estatais e ao desempenho profissional adequado de seus servidores, é que a Afipea-Sindical considerou necessário um destaque especial ao tema, carregando em seu site um conjunto (representativo, mas não exaustivo) de casos recentes, até mesmo para que se possa ter registros documentais, relatos fáticos de situações dessa natureza, interpretações e proposições condizentes com a gravidade do fenômeno e suas nefastas consequências para o Estado brasileiro, seu corpo funcional e a administração pública cotidiana.

Reconhecemos as ambiguidades e sabemos que tudo é feito em nome da democracia, do desenvolvimento e da proteção social. Os valores se misturam e se confundem, de modo típico nas guerras culturais e híbridas em curso na contemporaneidade líquida. Mas também, reconhecemos três movimentos discursivos, simultâneos e articulados, com origens múltiplas e convergentes, vale dizer:

i) liberalismo econômico radical: preconiza a desconstrução das instituições públicas e acusa a ineficiência e o corporativismo da administração pública em nome do discurso da austeridade fiscal;

ii) desconstrução deliberada das institucionalidades e das organizações públicas por embaralhamento, por meio de duas características:
ii.a) redistribuição, fragmentação e ressignificação de competências institucionais, e ii.b) administração das instituições por atores que lhes são oponentes ou que têm valores antagônicos a elas; e

iii) gramática da política como guerra híbrida contra o inimigo: lógica baseada na ideia de que a política se caracteriza pela presença de amigos e inimigos, sendo que os últimos devem ser isolados, derrotados e a reputação (ou seja, sua legitimidade) atacada. Em muitas situações, esse tipo de procedimento se vale de elementos dos dois modos operacionais anteriores.

Exemplificamos as três formas de ação por meio do quadro abaixo (clique na imagem para ampliar).

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Que o governo Bolsonaro/Guedes não tenha quadros adequados e nem competência técnica ou sensibilidade social para governar o Brasil, já é algo público e notório. A novidade ruim é que agora, alastrando a prática do assédio institucional (organizacional e moral) por todo o setor público, eles pretendam tentar esconder o fracasso de seu projeto de país.

Dessa forma, somos forçados a concluir que o atual governo caminha rapidamente para uma estratégia de acirramento de contradições relativamente aos segmentos da sociedade não alinhados a seu projeto de poder. Mas sendo tais segmentos mais numerosos e representativos da diversidade e pujança brasileira que os seus seguidores, deverá haver uma inclinação autoritária crescente por parte das frações de classe no poder, com vistas a impor – até mesmo pela força bruta – os seus anseios e projetos.

Oxalá a comunidade internacional democrática e a sociedade brasileira consciente do perigo autoritário/totalitário em curso possam rapidamente perceber a abrangência, a profundidade e a velocidade dessa agenda retrógrada para então se reorganizarem coletivamente e se reposicionarem politicamente com vistas à recuperação das tendências de construção da República, da Democracia e do Desenvolvimento no espaço nacional.

O autor agradece a colaboração de Frederico Barbosa, colega do Ipea, no aperfeiçoamento dos argumentos e na construção do quadro 1 presente neste texto, isentando-o pelos possíveis erros e equívocos remanescentes.

José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo.

Fonte: Ciranda.net

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