Ruth Ginsburg, a juíza pop que desafiou os conservadores nos EUA

Ícone da luta pelos direitos das mulheres e membro mais antigo da Suprema Corte americana, a juíza Ruth Bader Ginsburg morreu nesta sexta-feira (18) aos 87 anos, vítima de um câncer.

Segundo uma nota de pesar, Ruth Ginsburga faleceu ao lado da família em sua casa na capital dos EUA, Washington DC, após metástase em um tumor no pâncreas. Desde o início do ano, ela passava por quimioterapia para tratar da recorrência do câncer. Ela serviu por 27 anos à mais importante Corte do país e era vista como parte da ala mais liberal do tribunal. Os juízes da Suprema Corte dos EUA têm mandato vitalício ou podem decidir se aposentar.

A morte de Ginsberg vai desencadear uma batalha política sobre quem vai sucedê-la, colocando o futuro da Suprema Corte na pauta da corrida para a eleição presidencial de novembro. Desde que assumiu a presidência, Donald Trump, nomeou dois juízes para a Suprema Corte, e a atual formação parecia ter uma maioria conservadora de 5-4 em boa parte dos casos.

Com a morte, apoiadores Ginsburg se preocupam com a possibilidade uma sucessora ou sucessor com tendência conservadora. RGB, como ficou popularmente conhecida, se tornou uma referência para liberais americanos e, também, um ícone pop.Sua  história foi retratada em livros e filmes e sua imagem aparece em camisetas e xícaras de café. Em festas de Halloween, crianças, adultos e até animais se vestem como ela. A baixa estatura, atitude séria e longas pausas na fala se tornaram marcas registradas da juíza.

“Acredito que pessoas de todas as idades ficam entusiasmadas ao verem uma mulher na vida pública que tem demonstrado que, mesmo aos 85 anos, pode ser inabalável em seu compromisso com a igualdade e com a justiça”, disse em 2018 Irin Carmon, uma das autoras de Notorious RBG, livro sobre a vida da juíza. “Não temos muitas figuras como ela.”

Direitos das mulheres

Joan Ruth Bader nasceu no bairro de Flatbush, no Brooklyn, em Nova York, em 1933, de pais imigrantes judeus. Depois de se formar na Universidade de Cornell em 1954, ela se casou com Marty Ginsburg e, pouco depois, teve seu primeiro filho.

Enquanto estava grávida, foi “rebaixada” no trabalho, em um escritório de assistência social. O fato de ter tido o salário reduzido na época — a discriminação contra mulheres grávidas ainda era legal nos anos 50 — a levou a esconder sua segunda gravidez anos depois.

Em 1956, ela se tornou uma das nove mulheres matriculadas na Faculdade de Direito de Harvard — onde, em um episódio que depois ficaria famoso, o reitor provocou as estudantes pedindo que justificassem o fato de terem “tomado o lugar” que seria dos homens na instituição.

Mais tarde, Ginsburg transferiu o curso para a Escola de Direito de Columbia, em Nova York, e virou a primeira mulher a trabalhar nas publicações jurídicas de ambas faculdades. Formou-se em Direito e, apesar de ter sido a melhor da classe, teve que lutar para conseguir emprego. Nenhum escritório de advocacia em Nova York me contrataria”, disse certa vez. “Eu era judia, mulher e mãe.”

Ela acabou virando professora na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, em 1963, onde ministrou algumas das primeiras aulas de mulheres e Direito, e foi cofundadora do projeto de direitos das mulheres na União Americana pelas Liberdades Civis.  Em 1973, se tornou assessora geral dessa organização, o que deu início a um produtivo período de atuação em casos de discriminação de gênero, seis dos quais a levaram diante da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Ela ganhou cinco dos casos que defendeu na época, incluindo o de um homem que reivindicava a pensão da esposa falecida após o parto. Também foi nessa época que trabalhou no caso de uma capitã da Força Aérea que havia engravidado e a quem haviam mandado escolher entre abortar o bebê ou perder o emprego.

Clinton, então presidente dos EUA, a nomeou para a Suprema Corte em 1993 i Foto: Mark Reinstein

A segunda mulher no Supremo Tribunal

Em 1980, o Presidente Jimmy Carter nomeou Ginsburg para o Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Distrito de Columbia. Ela ganhou reputação de centrista, com posições às vezes mais próximas dos conservadores — por exemplo, quando se recusou a ouvir o caso de discriminação de um soldado que disse ter sido dispensado da Marinha por ser gay.

O presidente Bill Clinton a nomeou para a Suprema Corte em 1993, após um longo processo de escolha. Ginsburg se tornou a segunda mulher indicada à mais alta Corte dos Estados Unidos.

‘Notorious RBG’

Um dos casos mais importantes de que participou no tribunal foi o chamado Estados Unidos versus Virginia, que anulou a política de admissão apenas de homens ao Instituto Militar da Virgínia.

Ao explicar sua decisão, Ginsburg argumentou que nenhuma lei ou política deveria negar às mulheres “plena cidadania, a mesma oportunidade de aspirar, alcançar, participar e contribuir com a sociedade em função de seus talentos e habilidades individuais”.

À medida que a Corte se tornou mais conservadora, Ginsburg se moveu cada vez mais para a esquerda, ficando famosa por suas inflamadas divergências de opiniões do resto dos juízes. Foi uma posição que a tornou tão conhecida que uma jovem estudante de direito chamada Shana Knizhnik criou uma conta no Tumblr dedicada a Ginsburg chamada Notorious RBG, uma referência ao falecido rapper The Notorious BIG.

A conta reintroduziu Ginsburg a uma nova geração de jovens feministas e tornou-se tão popular que Knizhnik e Carmon, coautora do blog, a transformaram em um livro com o mesmo nome, que se tornou um best-seller.

“Eu acho que isso é algo que realmente tem agradado a juíza nos últimos anos”, disse na época Schiff Berman, que trabalhava para Ginsburg. “Para ela, é muito emocionante sentir que seu legado pode inspirar uma nova geração de mulheres, especialmente jovens”, completa.

Um ícone pop

A internet acabou se debruçando sobre vários aspectos da vida de Ginsburg, profissionais ou não. A intensa rotina de exercícios da juíza foi um desses temas: em um quadro em seu programa de TV, o comediante Stephen Colbert chegou a acompanhá-la na academia e a treinar junto com ela.

RBG foi também celebrada por seu estilo, desde a sua predileção por luvas de renda até seus elaborados jabots, os colarinhos que ela usava sobre túnicas — incluído aí seu famoso “colarinho da divergência”, que ela usava em alguns dos casos em que discordava da maioria.

A juíza não foi imune a críticas, entretanto — nem a erros

Durante as eleições de 2016, ela chamou o então candidato Donald Trump de “farsante” e disse que não podia nem imaginar um mundo em que ele fosse presidente dos Estados Unidos. “Ele diz tudo o que vem à cabeça no momento, é realmente um egocêntrico”, disse Ginsburg à CNN.

Suas declarações foram criticadas tanto pela direita quanto pela esquerda, que argumentaram que tais comentários poderiam comprometer sua imparcialidade e autoridade no tribunal. BG acabou se desculpando.

Colarinhos que usava sobre a túnica eram outra marca do estilo da juíza

Aposentadoria?

Durante os dois mandatos do presidente Barack Obama, alguns especialistas questionaram se não era hora de Ginsburg se aposentar naquele momento, com um democrata no poder, o que permitiria a entrada de outro juiz liberal no tribunal. Os apelos foram recebidos por ela com certa irritação. “Muita gente tem me perguntado: ‘Quando você vai renunciar?’, Mas, enquanto eu puder continuar a fazer meu trabalho a todo vapor, continuarei aqui”, disse ela em entrevista.

RBG passou por problemas de saúde na última década — em 2018, quebrou as costelas e, em 2014, fez uma cirurgia no coração. Seu primeiro diagnóstico de câncer de pâncreas veio em 2009. Mesmo assim, ela nunca perdeu um dia de discussões no Tribunal.

“Ela sempre volta com mais determinação e resistência. Ela está nesse trabalho há pelo menos meio século e ainda não acabou para ela”, disse em 2018, quando a juíza quebrou a costela, Irin Carmon.

Veja o trailer do filme “Suprema” (“On the Basis of Sex”), que conta a história de Ruth Bader Ginsburg

Fonte: BBC Brasil