Os descaminhos da política externa brasileira

Se considerarmos o fato de que o destino e a geografia nos obrigaram a habitar no mesmo hemisfério da maior e mais agressiva potência econômica e militar do planeta, é compreensível que a nossa política externa tenha de levar em conta a presença desse vizinho incômodo. Recomenda o bom senso que qualquer um que se veja em situação semelhante deve tomar duas providências elementares: manter um relacionamento o mais amistoso possível e evitar intimidades.

Ilustração: Juan Chirioca

Quando se observa a história política do País, pelo menos até o governo Bolsonaro, é possível afirmar que essas atitudes sempre orientaram a formulação de nossa política externa. Embora em alguns momentos a proximidade tenha sido maior que o recomendável, nossa política externa se caracterizou, na maior parte do tempo, inclusive durante o regime militar, por uma posição independente e de não alinhamento automático. E sempre foi essa atitude prudente do Brasil que granjeou respeito internacional e uma grande capacidade de mediação de conflitos. O Brasil sempre foi visto como parte da solução e nunca como parte do problema. O Brasil sempre soube compensar sua falta de poder duro – militar e econômico – com o poder brando, derivado exatamente de sua grande capacidade de mediação e diálogo. Isso contribuiu para o aumento do prestígio internacional do Brasil e trouxe benefícios concretos para o país.

A ascensão de Bolsonaro ao poder marcou uma guinada radical nessa tradição de independência e mediação da nossa política externa. De uma política externa autônoma e altiva passamos para uma política externa dependente e subserviente. Ao alinhar-se de forma incondicional aos Estados Unidos, ou mais especificamente a uma parte deles, pois os Democratas, que poderão assumir o poder em novembro próximo, o abominam, o Brasil passou a ser visto no mundo e, sobretudo, na América Latina como parte dos problemas, uma vez que, como afirmou o ministro das Relações Exteriores, “o Brasil tem um lado”, o lado dos Estados Unidos.

Não seria exagero afirmar que hoje, além dessa metade Republicana dos Estados Unidos, os únicos aliados do Brasil são países dirigidos por políticos de extrema direita cujo traço comum é o desprezo à democracia e o flerte com ideologias extremistas. A atitude negacionista de Bolsonaro em relação à pandemia da Covid-19, fazendo eco às posições de Donald Trump e não por acaso colhendo os mesmos frutos amargos que o presidente americano em termos de infecções e mortes, a atitude negligente e abertamente hostil em relação aos problemas ambientais, sobretudo na Amazônia, o desprezo aos direitos das minorias, nomeadamente das populações indígenas, a apologia à violência policial e ao comércio de armas, a maneira bruta e grosseira de referir-se a outros chefes de Estado que por ventura o critiquem, tornou Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, párias internacionais, que nem mesmo seu maior aliado, o presidente Trump ousa defender abertamente. Ao contrário, em mais de uma ocasião referiu-se pejorativamente ao Brasil. Difícil imaginar, depois da pandemia, algum líder mundial importante que vá querer ser fotografado dando um abraço em nosso presidente.

“A ascensão de Bolsonaro ao poder marcou uma guinada radical nessa tradição de independência e mediação da nossa política externa. De uma política externa autônoma e altiva passamos para uma política externa dependente e subserviente.”

Fosse esse alinhamento incondicional do Brasil aos Estados Unidos, promovido por Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, resultado de uma avaliação de que seria o melhor para o Brasil, a crítica poderia circunscrever-se ao acerto ou não dessa avaliação e aos riscos potenciais a que o Brasil estaria exposto por tal atitude. A questão, entretanto, é que, como os fatos vêm demostrando, não se trata apenas de uma avaliação equivocada, mas de atitudes deliberadas de sabotagem dos interesses nacionais em nome de um alinhamento incondicional com uma determinada corrente política e ideológica, em nome da qual não hesitam em sacrificar os interesses do país. Ao invés do “Brasil acima de tudo” como retoricamente apregoam fica evidente que a sua política externa visa colocar interesses políticos e ideológicos particulares desse grupo acima de tudo, inclusive do Brasil. E isso não é tolerável, pois o Brasil não pode ser tratado como o botim de um aventureiro, que se sente à vontade de dele fazer o que melhor lhe aprouver de acordo com seus interesses pessoais, ou como propriedade de um determinado grupo político que conseguiu, seja da forma que for, chegar ao poder. Mas vamos aos fatos.

A questão das cotas de importação do etanol

Em agosto de 2019, já sob protestos dos produtores brasileiros, o Brasil havia renovado e aumentado a cota de importação de etanol sem tarifa de 600 milhões de litros/ano para 750 milhões de litros/ano, beneficiando principalmente os produtores de milho e etanol dos Estados Unidos, que respondem por 90% das importações brasileiras do produto.

A justificativa para o aumento da cota naquela época era a mesma de hoje. Que esse gesto supostamente facilitaria as negociações para o aumento da exportação de açúcar do Brasil para os Estados Unidos, atualmente limitadas por uma cota muito reduzida. A produção brasileira de açúcar, em 2020, será de 25 milhões de toneladas, mas a cota de exportação de açúcar para os Estados Unidos é de apenas 152,7 mil toneladas. A República Dominicana que produz apenas 530 mil toneladas tem uma cota de exportação para os Estados Unidos de 183,3 mil toneladas.

Passados 12 meses, nada ocorreu, o que levou o governo brasileiro, em agosto de 2020, a anunciar, sob pressão dos produtores locais e do Ministério da Agricultura e do Ministério das Minas e Energia, que a cota não seria renovada. Tal medida chegou a ser concretizada, pois como a cota não foi renovada dentro de seu prazo de vigência, ou seja, até 30 de agosto de 2020, acabou por perder a validade.

Tal decisão evidentemente não agradou ao governo dos Estados Unidos e muito menos ao presidente Trump, para quem a não renovação da cota significou uma derrota política. A não renovação desagradou particularmente os fazendeiros americanos dos estados de Iowa, Indiana e Missouri, do chamado “Corn Belt” dos Estados Unidos, que tradicionalmente votam com os republicanos, mas que neste ano estão sob ataque do candidato democrata Joe Biden.

Diante da insatisfação de Trump, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, entrou em campo para fazer lobby a favor dos Estados Unidos e convencer o setor produtivo e seus colegas de governo contrários à renovação a rever sua posição sob a justificativa de que a renovação da cota facilitaria as negociações para aumentar o acesso do açúcar brasileiro ao mercado norte-americano.

Ninguém, evidentemente, entrou nessa conversa, dado que nos 12 meses anteriores os Estados Unidos tiveram tempo suficiente para tratar do assunto e não tomaram medida nenhuma. Além disso, no dia 28 de agosto, o presidente Trump anunciou novas restrições às exportações brasileiras de aço semiacabado para os Estados Unidos, sob a justificativa de que as importações de outros países haviam caído substancialmente, mas que as importações do Brasil haviam apresentado uma queda pouco expressiva.

“Trata-se, sim, de um caso inédito de um ministro das Relações Exteriores cuja obrigação é defender os interesses nacionais, mas que decide fazer lobby para um governo estrangeiro e agir contra os interesses do País, claramente explicitados pelo setor privado nacional e setores do próprio governo, para favorecer eleitoralmente um determinado grupo político estrangeiro, com o qual ele e o presidente se identificam ideologicamente.”

O ministro Araújo não se fez de rogado e continuou a fazer lobby dentro do governo a favor de Trump, mesmo diante de todas as evidências de que a renovação não fazia nenhum sentido, contrariava os interesses nacionais e representava um prejuízo à indústria nacional de etanol, sobretudo a de etanol de milho, que está em fase de estruturação no centro-oeste brasileiro – Goiás e Mato Grosso – e já vinha enfrentando dificuldades com a queda do consumo de combustíveis em decorrência da pandemia da Covid-19 e de distorções tributárias que favorecem o produto importado. De janeiro a julho de 2020, o Brasil produziu 1,3 bilhão de litros de etanol de milho, 93% a mais que no mesmo período de 2019, mas o consumo caiu. As vendas domésticas de etanol na primeira semana de agosto diminuíram 16% em relação ao mesmo período do ano anterior e estoques em 31 de julho de 2020 estavam 55% maiores.

Apesar da resistência generalizada, dentro e fora do governo, Ernesto Araújo intensificou o lobby a favor de Trump e no final acabou prevalecendo. No dia 09 de setembro o presidente Bolsonaro anunciou aos produtores que iria renovar proporcionalmente a cota (187,5 milhões de litros) por 90 dias, ou seja, até novembro, quando ocorrerão as eleições presidenciais nos Estados Unidos.

Para fingir que estava retribuindo o gesto brasileiro, Trump anunciou no dia 20 de setembro que do aumento de 90,7 mil toneladas de açúcar bruto adicionadas à cota da safra atual, 80 mil toneladas serão para o produto brasileiro. Além de ser um procedimento rotineiro, trata-se de valor insignificante se considerarmos que apenas em agosto de 2020 o Brasil exportou 3,7 milhões de toneladas de açúcar. Esse aumento representaria, caso venha a se concretizar, uma receita extra, pelos preços médios atuais, de apenas US$ 23 milhões. Já a cota de 187,7 milhões de litros de etanol renderia aos exportadores americanos à cotação atual do produto (US$ 1,3029/galão) o triplo desse valor, algo em torno de US$ 65 milhões, mais os subsídios que recebem do governo americano. Para os importadores brasileiros, com impostos e sem os custos de internalização (R$ 2.490/metro cúbico e R$ 5,25/dólar), colocados no Porto de Suape, em Pernambuco, custariam algo em torno de US$ 90 milhões. Uma coisa não compensa a outra.

A questão, entretanto, não é aritmética; poderia ser até o contrário, mesmo porque não há garantias de que vamos importar todo esse etanol ou exportar essa ninharia de açúcar. Trata-se, sim, de um caso inédito de um ministro das Relações Exteriores cuja obrigação é defender os interesses nacionais, mas que decide fazer lobby para um governo estrangeiro e agir contra interesses do País, claramente explicitados pelo setor privado nacional e setores do próprio governo, para favorecer eleitoralmente um determinado grupo político estrangeiro, com o qual ele e o presidente se identificam ideologicamente.

A eleição do novo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

Atropelar o Brasil, adotando medidas contra os interesses do país, sem tomar o menor conhecimento da alardeada amizade com o presidente brasileiro, tornou-se um hábito de Trump. A recente eleição do novo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi apenas o episódio mais recente.

Desde que o banco foi criado, em 1959, tem valido a regra não escrita de que o presidente da instituição de desenvolvimento voltada para a América Latina é sempre um latino-americano, da mesma forma que o presidente do FMI é um europeu e o presidente do Banco Mundial (BIRD) um americano. Nos últimos 60 anos o BID teve apenas quatro presidentes, todos latino-americanos. Isso faz sentido porque, mesmo sendo os Estados Unidos o maior acionista do banco, com 30% das cotas, o BID atende os países da região, financiando, sobretudo, projetos de infraestrutura.

Trump resolveu quebrar essa tradição e decidiu indicar para a presidência da instituição um de seus assessores, Mauricio Claver-Carone e que, até recentemente, ocupava a direção para a América Latina do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O objetivo da indicação, como o próprio Claver-Carone afirmou, é o de transformar o BID em um peso-pesado financeiro para conter a influência da China no hemisfério ocidental. Em outras palavras, transformar um instrumento de desenvolvimento regional, criado sob inspiração da CEPAL, em instrumento político dos Estados Unidos para manter sua hegemonia na região.

México, Chile, Argentina e Costa Rica, que conjuntamente detêm 22% dos votos, posicionaram-se logo de início contrários ao pleito norte-americano e propuseram, por causa da pandemia da Covid-19, adiar por seis meses as eleições, que estavam marcadas para o dia 12 de setembro. A expectativa era de que uma eventual derrota de Trump, em novembro próximo, poderia criar um novo quadro político e reverter a situação, mesmo porque com um eventual presidente democrata, ter um ex-assessor de Trump como presidente do BID seria algo complicado até para os Estados Unidos.

O Brasil se posicionou favoravelmente à manutenção do pleito, impedindo que se alcançassem os 25% necessários para não dar quórum e adiar as eleições. Trump deve, portanto, em grande medida, ao Brasila indicação de seu assessor para a presidência do BID.

Segundo noticiado pelo jornal New York Times, quando a candidatura de Claver-Carone foi lançada, este teria telefonado para as autoridades brasileiras pedindo a retirada do candidato brasileiro Rodrigo Xavier, que o Brasil pensava eleger com o apoio de Trump. O presidente americano nem tomou conhecimento da demanda brasileira e o Brasil, obsequiosamente retirou seu candidato e foi um dos poucos países a declarar abertamente apoio ao candidato norte-americano.

Diz-se que o Brasil teria retirado a candidatura brasileira em troca de ter no número 2 do banco, mas, ao que tudo indica, isso pode não acontecer, e o Brasil corre o risco, mesmo sendo o principal responsável, na região, pela eleição do americano, de ficar com menos influência no banco do que tem hoje, uma vez que Claver-Carone teria feito outros acertos com outros países  também oferecendo posições de destaque. Trata-se de mais uma concessão que Bolsonaro e Ernesto Araújo fazem aos Estados Unidos, em prejuízo do Brasil e, neste caso, dos vizinhos latino-americanos, a troco de nada. Ou melhor, mais uma vez o governo Bolsonaro sacrifica os interesses do Brasil para favorecer um grupo político estrangeiro ao qual está ligado ideologicamente.

A visita de Mike Pompeo a Roraima

A menos de 50 dias para as eleições nos Estados Unidos, a vinda do Secretário de Estado dos Estados Unidos ao Brasil para realizar uma visita relâmpago ao centro de acolhimento de refugiados venezuelanos em Boa Vista, capital do estado de Roraima, pode ser vista, no plano mais imediato, como parte da estratégica eleitoral de Trump com o objetivo de conquistar votos republicanos no estado da Flórida. Mas vai muito além disso.

Mostrar-se duro contra o governo de Nicolás Maduro e determinado a removê-lo do poder, seja porque meio for, é uma forma de atrair o voto da comunidade conservadora latina da Flórida. Boa parte dessa comunidade latina é composta por membros da elite econômica da Venezuela,  de Cuba e de outros países da região, inclusive do Brasil, que migraram para os Estados Unidos..  

O problema, porém, é ninguém saber até que ponto Trump deseja ir com essas provocações. Há o risco real de Trump replicar na América do Sul a mesma estratégia que utilizou no Oriente Médio – afinal, lá e cá há petróleo em jogo – e mergulhar a região em uma guerra fraticida de consequências potencialmente devastadoras para a região. Transformar, portanto, território brasileiro em palanque eleitoral para Trump em clara violação dos princípios constitucionais que orientam a política externa brasileira é um erro grave a respeito do qual o governo deve ser responsabilizado.

Mais uma vez estamos frente a um caso de violação da soberania nacional por membros do governo brasileiro, cuja primeira obrigação deveria ser defendê-la, apenas com o objetivo de favorecer um grupo político estrangeiro ao qual o presidente brasileiro e seu ministro das Relações Exteriores se alinham ideologicamente. Isso não é aceitável.

E não é aceitável não só porque é uma humilhação para o Brasil, que se rebaixa à condição de colônia dos Estados Unidos, que se dá ao desfrute de usar o território brasileiro para ameaçar um país vizinho, como se nosso território fosse um protetorado norte-americano ao qual eles têm livre acesso para fazer o bem entendem, mas também porque isso prejudica concretamente os interesses do Brasil na região e arrisca transformar a América do Sul em um novo Oriente Médio.

Nunca é demais lembrar que a América do Sul tem sido uma região livre de guerras em grande parte graças à diplomacia brasileira, cujo símbolo maior é o Barão do Rio Branco que, à frente do Itamaraty, engrandeceu o papel do Brasil ao resolver disputas de fronteiras e garantir a resolução pacífica de conflitos.

 O Brasil, como a maior economia da região, tem se beneficiado grandemente disso, não só porque, ao longo de décadas, pôde se preocupar apenas com seus problemas internos como, principalmente, graças a essa relação amistosa com todos os países da região, tem garantido mercados para exportação de seus produtos, sobretudo manufaturados, de maior valor agregado, e aberto oportunidades para o investimento externo de empresas brasileiras. Nunca é demais lembrar que em todo lugar que se vá da América Latina, inclusive na Venezuela, vamos encontrar empresas brasileiras atuando nos mais diversos setores e frequentemente dominando fatias expressivas dos mercados locais.

Tudo isso o governo Bolsonaro e seu inacreditável ministro das Relações Exteriores estão jogando para o ar, ao fomentar a fragmentação política da região em blocos antagônicos, como os que se formaram na eleição do presidente do BID – México, Chile e Argentina, de um lado, e Brasil e Colômbia, do outro. Como lembrou o economista Pedro Silva Barros em artigo recente publicado no jornal Folha de S.Paulo[1], “O contexto de fragmentação política e desintegração comercial da América do Sul torna nosso subcontinente um palco aberto para disputas de potências extrarregionais” – leia-se Estados Unidos, Rússia e China – e não resta a menor dúvida: o grande prejudicado será o Brasil.
A questão do 5G

O Brasil vem sendo pressionado há meses pelo presidente americano Donald Trump a excluir a empresa chinesa Huawei, líder mundial na produção de equipamentos de telecomunicações para tecnologia 5G, do rol das empresas habilitadas a fornecer os equipamentos para a rede 5G brasileira que começará a ser implantada no próximo ano. A alegação dos norte-americanos é de que haveria risco de os equipamentos chineses serem utilizados em atividades de espionagem, comprometendo a segurança dos Estados Unidos e seus aliados. Não há, contudo, nenhuma comprovação técnica dessa possibilidade e muito menos de que a China teria intenção de fazer isso, dando um tiro no próprio pé. Tudo indica que o real motivo desse cerco à empresa chinesa seja o de impedir que a China abocanhe uma fatia importante do mercado global de alta tecnologia, até agora dominado sobretudo por empresas norte-americanas.

“Mais uma vez estamos frente a um caso de violação da soberania nacional por membros do governo brasileiro, cuja primeira obrigação deveria ser defendê-la, apenas com o objetivo de favorecer um grupo político estrangeiro ao qual o presidente brasileiro e seu ministro das Relações Exteriores se alinham ideologicamente.”

O leilão das frequências para as operadoras de 5G estava previsto para 2020, mas foi adiado para 2021, o que levou ao adiamento da deliberação final sobre se a empresa chinesa Huawei poderá ou não participar do fornecimento dos equipamentos para o Brasil.

Entretanto, há sinais concretos de que o Ministério das Relações Exteriores esteja operando a favor dos Estados Unidos, mais uma vez sem levar em conta os interesses do Brasil. Como destaca matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo, em 12/6/2020, “O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, general Augusto Heleno, convenceram o presidente Jair Bolsonaro de que o leilão do 5G deve oferecer restrições aos fabricantes chineses de equipamentos como a Huawei. Resultado dessa pressão, Bolsonaro afirmou em transmissão via internet, na quinta-feira (11/6), que o certame levará em conta a “soberania, a segurança de dados e a política externa”[2]. Ou seja, a escolha dos novos padrões tecnológicos da telefonia deixou de ser técnica e ganhou conotação geopolítica.

Caberia novamente neste caso perguntar onde está o interesse nacional e que medida o posicionamento do Ministério das Relações Exteriores e do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) estão agindo de acordo ou contrariamente aos interesses do Brasil apenas para agradar o presidente norte-americano, que fez do combate à China um ponto importante de sua agenda política e eleitoral.

O alegado risco de espionagem, se existe, com certeza não é maior do que o risco existente no uso de qualquer equipamento produzido por outro fabricante em qualquer lugar do mundo. O país que utiliza de forma mais intensiva a espionagem eletrônica são os próprios Estados Unidos. Em 2013, foi revelado que os Estados Unidos estavam monitorando as conversas da então presidente Dilma, por meio de seu telefone celular, o que levou ao cancelamento de uma visita que ela faria os EUA naquele mesmo ano. Conforme matéria do jornal O Globo: “A Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) monitorou o conteúdo de telefonemas, e-mails e mensagens de celular da presidente Dilma Rousseff e de um número ainda indefinido de “assessores-chave” do governo brasileiro. Além de Dilma, também foram espionados pelos americanos nos últimos meses o presidente do México, Enrique Peña Nieto, — quando ele era apenas candidato ao cargo — e nove membros de sua equipe”[3]

Operadoras de serviços de telecomunicação, assim como diversos setores do próprio governo, inclusive militares, são contrários à proibição da participação da empresa chinesa na rede brasileira de 5G. Apontam que liberar a participação chinesa não teria maiores consequências negativas para o Brasil. Talvez, a retirada do apoio americano à entrada do Brasil na OCDE, o que não muda muito a situação atual, já que inúmeros países europeus são contra. Fala-se também que os Estados Unidos poderiam excluir o Brasil de seu programa de capacitação em segurança cibernética, mas, como revelou recentemente reportagem do jornal Valor[4], os militares preferem não depender dos Estados Unidos nessa seara.

Por outro, a exclusão da empresa chinesa seria uma clara sinalização de que o Brasil está definitivamente alinhado com os Estados Unidos em sua guerra contra a China. Isso obviamente teria consequências potencialmente devastadoras para nossa economia. Onde iríamos achar mercado para os quase US$ 70 bilhões que exportamos para a China todo ano? Iriam os Estados Unidos, que concorrem conosco em exportações agrícolas, absorver o que deixaríamos de exportar para a China? Evidentemente que não!

De acordo com a já citada reportagem da Folha de S.Paulo, no documento enviado pelo ministério das Relações Exteriores à Presidência da República, justificando a posição contrária do MRE sobre a liberação da participação da empresa chinesa, o ministro Ernesto Araújo “defende que o Brasil não sofreria nenhum tipo de sanção comercial porque a China possui como maiores fornecedores de matérias-primas e alimentos os Estados Unidos, o Brasil e a Austrália. Para ele, se os três se juntassem em apoio a Donald Trump, os chineses não teriam saída e continuariam importando desses países”. Já a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, segundo a mesma matéria, não pensa assim. Para ela, qualquer tipo de restrição à China na oferta de equipamentos de rede 5G terá efeitos danosos sobre o desempenho do agronegócio, único setor ativo neste momento de pandemia.

É preciso ainda destacar que a exclusão da Huawei da implementação do 5G no Brasil, além de não fazer nenhum sentido geopolítico e econômico, uma vez que o Brasil não tem nada a ganhar com isso, representará um prejuízo concreto ao país, cujo custo será arcado pelo conjunto dos brasileiros na forma de tarifas mais caras e atraso na oferta dos serviços. Isso porque os equipamentos da Huawei, além de melhores e mais baratos, têm a vantagem de “falar” com todos os equipamentos dos demais fabricantes – Nokia, Ericsson e Samsung – coisa que os equipamentos desses fabricantes não fazem. Como parte da rede atualmente em operação nas tecnologias 3G e 4G utilizam equipamentos da Huawei, o uso exclusivo dos equipamentos desses outros fabricantes na rede 5G obrigaria as operadoras a trocar todos os equipamentos da Huawei atualmente utilizados nas redes 3G e 4G, o que significaria um custo maior, que ao fim e ao cabo recairiasobre os usuários, e uma demora muito maior para que essa nova tecnologia com grande potencial para revolucionar inúmeros serviços e aumentar a produtividade das empresas fique à disposição das pessoas, empresas e governos. Na Inglaterra, país muito menor que o Brasil, o custo dessa troca foi estimado em £2 bilhões e um atraso de 3 anos na implantação da rede[5].

Como nos casos anteriormente analisados, fica mais uma vez evidente que a posição do Ministério das Relações Exteriores nesse assunto não tem nada a ver com os interesses nacionais e está orientada exclusivamente para atender aos interesses de uma potência estrangeira e da chamada “ala ideológica” do governo brasileiro.

A ação conjunta do Brasil e dos Estados Unidos na OMC contra a China

Estados Unidos e Brasil submeteram conjuntamente na OMC uma proposta estabelecendo que o princípio de economia de mercado tenha de valer para todos os seus membros, para garantir condições equitativas de competição econômica no comércio internacional. Trata-se de um ataque direto à China, organizado pelos Estados Unidos, com o objetivo de, ou excluir a China daquela organização, ou forçar mudanças profundas nas suas regras que permitam aos Estados Unidos e seus aliados imporem as sanções que bem entendam à China.

A China reagiu, argumentando, com razão, que o assunto é complexo demais e que não cabe à OMC definir o que é ou não uma economia de mercado, mas apenas verificar se as regras de comércio internacional por ela estabelecidas estão sendo cumpridas pelos seus membros. Até mesmo a Índia, que está em séria disputa com a China por questões de fronteiras que levou, recentemente, a confrontos que deixaram mortos dos dois lados, não apoiou a posição do Brasil, alegando que se alguém tem dúvida quanto a isso deveria recorrer ao Órgão de Apelação da OMC que, diga-se de passagem, está paralisado pelos Estados Unidos, que não aceitam a nomeação de novos juízes, como forma de chantagear o órgão. Apenas União Europeia (27 países), Japão, Austrália, Canadá, Suíça, Coréia do Sul, Noruega e Taiwan apoiaram a proposta brasileira e americana. O fato de os Estados Unidos terem escolhido o Brasil para apresentar conjuntamente a proposta, quando havia inúmeros outros países que poderiam fazê-lo, é um recado para a China de que aqui quem manda são eles. Trata-se, evidentemente, de uma provocação totalmente desnecessária ao nosso principal parceiro econômico. O Brasil não tem absolutamente nada a ganhar com isso.

Conclusão

Poderíamos continuar a desfiar um rosário de situações em que o mesmo padrão de comportamento do Ministério das Relações Exteriores, sob o comando de Ernesto Araújo, se repete sistematicamente: submeter os interesses nacionais à agenda política de um grupo aninhado no governo brasileiro, alinhado ideologicamente com a extrema direita norte-americana, cujos interesses são totalmente estranhos ao Brasil. Agem orientados por essa verdadeira Internacional da extrema-direita e não hesitam em sacrificar os interesses nacionais em nome de seus objetivos políticos. É preciso reagir a isso. O Brasil acima de tudo!


[1] Barros, P. S. Mike Pompeo na Ilha das Guianas. Folha de S. Paulo, 18/9/2020,

[2] Wiziack, J. e Uribe, G. Bolsonaro transforma 5G em disputa geopolítica e leilão deve ficar para 2021. Folha de S. Paulo, 12/6/2020.

[3] Tardáguila, C. e Gama, J. EUA espionam Dilma. O Globo, 01/09/2013;

[4] Exman, F. A desconstrução da ala ideológica no 5G. Valor, 08/07/2020.

[5] Fildes, N. e Warrell, H. Why UK has decided to ban use of Huawei’s 5G kit. Financial Times, 14/7/2020.

Fonte: Bonifício

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