Nicolelis: “Não temos a menor condição de abrir as escolas no Brasil”
Para cientista, Brasil, como regra, fracassou diante da pandemia
Publicado 08/10/2020 11:45 | Editado 08/10/2020 16:25
“É muito difícil dizer que o pior já passou. No Brasil, a gente aprendeu que essa frase é extremamente perigosa de ser usada.” Assim o médico e cientista brasileiro Miguel Nicolelis avalia a crise do novo coronavírus no País. Em entrevista à revista CartaCapital, Nicolelis afirma que os brasileiros estão “em um patamar de instabilidade – qualquer surto mais importante pode levar a um crescimento de casos, vide o que aconteceu no Rio de Janeiro”.
Para ele, o Brasil, como regra, fracassou diante da pandemia. “O vírus sofreu pequenos constrangimentos com o isolamento social parcial adotado – e vejo a região Nordeste com maior destaque nesse sentido, ainda que não da maneira ideal. Mas, na maior parte do País, o que vimos foi a dinâmica do vírus sendo imposta por conta própria, sem nenhum grande impedimento”, analisa.
O cientista assumiu em março a coordenação da comissão científica do Consórcio Nordeste. A seu ver, a união dos estados e municípios da região para enfrentar a pandemia foi uma estratégia eficaz. “Há impactos positivos na contenção do vírus em locais que fizeram algum lockdown, ainda que não completamente, como São Luís (MA), Fortaleza (CE), Recife (PE) – com menos ênfase – e grande João Pessoa (PB). O efeito é duradouro.”
Em contrapartida, um exemplo negativo foi Salvador, onde o prefeito ACM Neto (DEM) ignorou as recomendações de especialistas e subestimou a crise. “[Em Salvador] se recomendou o lockdown ainda em junho. Mas o prefeito, infelizmente, achou ser exagero”, diz Nicolelis. “Todas as projeções que fizemos em relação ao número de óbitos à época se materializaram. É muito triste ver isso.”
Ele também critica a estratégia errática adotada em São Paulo pelo governador João Doria (PSDB). Segundo Nicolelis, o estado “tem a quarentena mais longa do mundo” por uma razão objetiva: Doria “nunca efetuou um lockdown correto” e, por isso, não conteve a crise. A capital, especialmente, virou o epicentro da pandemia.
“Um estudo epidemiológico nosso indicou que a cidade de São Paulo foi responsável por mais de 85% do espalhamento de casos pelo Brasil, nas primeiras três semanas de pandemia. E as rodovias que cruzam a cidade e saem para o restante do País, 26 federais, foram responsáveis por 30% do espalhamento dos casos”, afirma o cientista.
Segundo o cientista, o maior estado do País registra “mais de 200 mortes por dia, além de milhares de casos diários” – o que é “uma catástrofe”, apesar do discurso oficial. “A recomendação inicial foi para que se fizesse um lockdown preciso por algumas semanas, restringindo inclusive o tráfego não essencial pelas rodovias. A meu ver, o manejo no estado foi absolutamente inapropriado”, avalia Nicolelis.
Um dos desdobramentos do combate despreparado à Covid-19 é a reincidência de casos em diversas regiões. Trata-se do chamado “efeito bumerangue”, no qual o interior de um estado leva a pandemia de volta para a capital. “Em Manaus, basicamente a dinâmica do vírus foi ao Deus-dará: pode agir da maneira como quis.”
De acordo com o cientista, medidas como o isolamento social e, eventualmente, novos lockdowns podem ser necessárias por mais tempo, mesmo com as pressões pela reabertura da economia. “Madrid, na Espanha, está retornando ao lockdown parcial, que pode virar total a qualquer momento. A Inglaterra está fazendo a mesma coisa. A França está resistindo, mas provavelmente não vai ter o que fazer”, compara.
“Nenhum país do mundo renunciou ao isolamento social como forma de mitigar os problemas causados pelo coronavírus até que exista uma vacina. O efeito da estratégia já foi demonstrada em vários artigos científicos”, afirma Nicolelis, que denuncia também o erro da volta precipitada às aulas. “Os exemplos internacionais já são múltiplos. Na França, que reabriu as escolas em setembro, houve uma explosão de casos – tanto que muitas escolas tiveram que ser fechadas e alunos, postos em quarentena”.
Por isso, o cientista lamenta o lobby no Brasil pela volta às aulas. “Não temos a menor condição de abrir as escolas no Brasil”, comenta. “Evidentemente, acho que não tinha que ter liberado aglomerações em bares, liberado o futebol. Foram atos completamente irresponsáveis que geraram problemas como o que estamos vendo no Rio de Janeiro.”
Ele afirma que o risco da reabertura das escolas vai além dos estudantes. “As pessoas não param para pensar que não serão só as crianças as expostas – mas professores, funcionários, o entorno das unidades. Dizer que as escolas têm que ser reabertas porque reabriram bares é um absurdo, um raciocínio que não faz o menor sentido.”
Na opinião de Nicolelis, um símbolo da crise da Covid-19 no Brasil é a realização de um jogo de futebol oficial, no Rio de Janeiro, ao lado de um hospital de campanha. “Tivemos imagens que vão permanecer por décadas, como o jogo do Flamengo, pelo campeonato carioca, no Maracanã, do lado de um hospital de campanha, onde pessoas lutavam pela própria vida e, aparentemente, naquele dia, duas pessoas faleceram”.
“Qual a mensagem que se passa quando se tem um jogo acontecendo ao lado de um hospital, no meio de uma pandemia fora de controle? Que imagem do Brasil nós estamos construindo?”, indaga Nicolelis. “Um país que se vangloriava de ser feliz, amigável, de valorizar a boa vida, hoje dá mostras de completa falta de empatia humana, e torna-se exemplo negativo no mundo todo.”
Não bastassem os impactos do novo coronavírus, o Brasil, sob o governo Jair Bolsonaro, também é visto por outros retrocessos em série. “A pandemia acontece enquanto 20% do Pantanal é queimado e uma fração inominável da Amazônia desaparece. Esse é o Brasil de hoje – a antítese de qualquer sociedade que se diz civilizada.”