Guerra suja e terrorismo midiático nas eleições bolivianas

Na sede da Federação de Mulheres Bartolina Sisa de Cochabamba, lideranças e combatentes pelos direitos humanos afirmam que “as palavras democracia e soberania voltarão à Bolívia no próximo dia 18

Porfirio Cochi, Severina Baltazar e Dolores Arce na sede das Bartolina Sisa de Cochabamba l Foto: Leonardo Wexell Severo

“Estamos na reta final das eleições um ano após termos não só sofrido um golpe de Estado, senão o roubo do nosso voto, o desrespeito ao voto majoritário do povo boliviano, já que o informe da Organização dos Estados Americanos (OEA) nunca demonstrou nenhuma fraude. Na realidade, a guerra suja e o terrorismo midiático foi parte fundamental para induzir a uma convulsão social, em uma fase prévia às eleições onde aplicaram uma estratégia de desgaste cotidiano, de sabotagem, conspiração e manipulação da informação”.

A afirmação é de Dolores Arce, ex-diretora-executiva do Centro de Produções Radiofônicas da Bolívia (Cepra) e ex-chefe das Rádios dos Povos Originários (RPOs) – vinculadas ao Ministério da Comunicação, em entrevista exclusiva, nesta quinta-feira, na sede da Federação de Mulheres Bartolina Sisa de Cochabamba.

Ao lado de Severina Baltazar, dirigente das Bartolina Sisa, e de Porfirio Cochi, pesquisador e cientista social, Dolores denunciou como “os grandes meios de comunicação foram quem impuseram na opinião pública e no imaginário coletivo as ideias de Evo autoritário e Evo ditador, em que pese ter sido eleito com mais de 50% e 60% dos votos em três eleições gerais”. Da mesma forma, agora, tentam inculcar o fantasma da “fraude eleitoral”, transmitindo por seus jornais e emissoras de rádio e televisão a satanização dos movimentos sociais e do Movimento Ao Socialismo (MAS), “identificando os masistas como sinônimo de violentos, selvagens e assassinos”.

Enquanto isso, recordou Dolores, esta mesma mídia aponta os “cívicos” e as “pititas” [como ficaram conhecidos os golpistas] como salvadores da democracia, “não importando se queimaram tribunais, residências de ex-autoridades e familiares, ou se estes grupos armados de choque promovem atos violentos e de racismo”. “Diante dos constantes atos de corrupção e violência estatal, que se traduz em violações de direitos humanos – como os massacres com 37 mortos, mais de 800 feridos e mais de mil presos – a perseguição política e judicial, os meios guardam um silêncio cúmplice e fazem uma campanha de desprestígio da gestão anterior de governo”, assinalou.

Nesta conjuntura eleitoral, destacou Dolores, “a palavra de ordem da mídia poderia ser resumida em ‘Todos contra o MAS’, com ela martelando a ideia de que democracia é evitar que o MAS retorne ao poder, mesmo que seja a maior força política”. “Tudo isso obviamente não deve nos surpreender, pois a propriedade dos grandes meios de comunicação reflete a perversa relação entre o poder político e o poder econômico, com a casta oligárquica”.

Exemplos escandalosos desta relação promíscua é o fato do líder separatista e fascista Branko Marinkovic, atual ministro da Economia, ser um dos acionistas majoritários do Canal 9-ATV [uma das três principais emissoras de televisão da Bolívia, junto a UNITEL e RED UNO, que abarcam mais de 70% da atual publicidade governamental]; da família de latifundiários Monastérios ser proprietária de UNITEL; do banqueiro e empresário Ivo Kuljis ser dono de RED UNO, e do empresário político Raul Garafulic [vinculado aos criminosos processos de capitalização durante o governo de Sánchez de Lozada], ser dono do jornal Página Siete, um dos principais do país.

Não é mera casualidade, alertou Dolores, que entre os primeiros afetados ou perseguidos se encontrassem comunicadores e jornalistas de meios comunitários e alternativos. “Já nos primeiros dias de novembro o diretor da Rádio Comunidade foi amarrado a uma árvore, houve a queima das rádios Soberania e da rádio Klawsachun Coca, por hordas ligadas à Resistência Juvenil Cochala, de Cochabamba, mal chamados de cidadãos cívicos”.

Aparelhos ideológicos de manipulação de massa

Para o cientista social Porfírio Cochi, “ao se comportarem como aparelhos ideológicos de difusão de interesses econômicos extremamente conservadores e de classe, os meios de comunicação bolivianos fazem um desserviço à construção de uma Pátria independente”.

“Durante os 14 anos do governo de Evo esta mídia tomou o partido da oposição, alinhando-se e reverberando o discurso da oligarquia e das transnacionais, opondo-se às ações estatais no processo de transformação”, disse o pesquisador. “Medidas positivas que modificaram para melhor a vida das pessoas, com planos, políticas e programas voltados às mais necessitadas foram completamente invisibilizados”, frisou.

Tão somente preocupados com a defesa de seus interesses, esclareceu Porfírio, “os meios preferiram desinformar com dados falsos que se estava desestimulando o investimento privado, enquanto na realidade nunca houve tanto apoio ao crescimento do mercado interno”. “Diferente disso, tentavam ligar os governantes ao rentismo, à corrupção e ao narcotráfico, projetando suas criminosas práticas sobre os demais”, enfatizou.

Embora a mídia tente ocultar, lembrou o pesquisador, “na última década a economia boliviana se caracterizou pela estabilidade com crescimento inclusivo, sempre acima dos 4% do Produto Interno Bruto (PIB), permitindo o pagamento do décimo quarto salário e uma política de redistribuição de renda entre empresários e trabalhadores”. “E quem esteve dirigindo esta política foi Luis Arce, atual candidato à presidência, que vem para garantir os avanços sociais com a industrialização do país, acelerando o combate à pobreza e ampliando investimentos para alcançar a igualdade”, defendeu Porfirio.

Falta de garantias e transparência

Para Severina Baltazar, secretária-executiva da Federação Departamental de Mulheres Camponesas Originárias Indígenas de Cochabamba Bartolina Sisa, pelo quadro acima exposto, “há uma profunda preocupação pela falta de garantias e transparência com relação ao processo eleitoral”. A situação se agrava ainda mais, frisou, “pela violência sistemática que tomou conta da campanha política com palavras racistas e cheias de ódio movidas por representantes da direita”.

Mulher aimará e heroína indígena, companheira de Túpac Katari, Bartolina Sisa organizou e liderou o cerco a La Paz contra os espanhóis, sendo presa, torturada e cruelmente assassinada em 5 de setembro de 1782. Hoje a organização que honra seu nome integra o “Pacto de Unidade” conjuntamente com a Confederação de Camponeses, a Confederação Sindicalista de Comunidades Interculturais e a Confederação de Povos Indígenas. O movimento foi chave para a construção e manutenção do Estado Plurinacional bem como para impulsionar, a partir da ação dos 36 povos originários, as primeiras transformações realizadas no governo do MAS. Por sua coerência e compromisso, as Bartolinas têm sofrido na própria pele o peso do retrocesso.

“Depois de 13 anos e nove meses de avanços sociais, particularmente para a questão dos direitos das mulheres, dos indígenas e dos trabalhadores, em que a nacionalização dos hidrocarbonetos nos permitiu espraiar a construção de escolas, hospitais, moradias e rodovias por todo o país, tivemos nestes poucos meses em que os golpistas tomaram de assalto o poder uma tragédia sem precedentes”, enfatizou Severina. “Com o velho ranço neocolonial, os mesmos neoliberais que sempre se submeteram ao estrangeiro, voltaram com o assédio, a censura e a perseguição contra as nossas organizações, nossos dirigentes e nossa base em geral, porém com ainda mais raiva contra os nossos candidatos. E na tentativa de justificar o racismo e a discriminação, e desqualificar o MAS”, alertou, “caluniam, mentem e difamam nos chamando de terroristas e narcotraficantes”, condenou.

Conforme Severina, “a desconfiança se torna total com a ação do ministro de Governo, Arturo Murillo, que esteve recentemente nos Estados Unidos, em chamadas reuniões de ‘alto nível’, usurpando funções que corresponderiam em todo caso à Chancelaria e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)”. Os sucessivos anúncios de “fraude” com que têm trabalhado, ressaltou, “apontam para criar novamente o caos e um clima de violência que atenta contra eleições limpas”.

A Rede de Comunicação Popular divulgou com nome, sobrenome e posto militar na ativa e na reserva, a tropa que estaria sendo mobilizada pelos golpistas para realizar atos terroristas antes, durante e depois das eleições. O eixo central da farsa seriam a multiplicação de cenários com “falsos positivos” como a colocação de artefatos explosivos fora e dentro dos hotéis para incriminar o MAS.

“Por tudo o que aconteceu ao longo destes meses, não há nenhuma confiança na transparência das eleições, nem nas Forças Militares, na Polícia, nos meios de comunicação ou no TSE, pelo qual exortamos a todos os organismos internacionais que possam enviar missões de observadores para nos auxiliar com garantias de pleno e democrático desenvolvimento do pleito”, declarou a liderança das Bartolina Sisa.

“O golpe de Estado de 2019 nos ensinou que precisamos redobrar a vigilância cidadã e o controle social, e que, diante das falsas montagens e armações às vésperas da vitória de Luis Arce e David Choquehuanca, que representam o resgate da democracia na Bolívia, mais do que nunca o acompanhamento da comunidade internacional se torna imprescindível”, assinalou Severina Baltazar.

Fonte: Carta Maior

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