“A comunicação tem caráter estratégico”, diz ex-ministra da Bolívia

Marianela Paco comemora vitoriosa campanha dos candidatos do MAS, Lucho e David, para a “descolonização” e reitera compromisso com “a reconstrução da Pátria das ruínas deixadas pelo golpismo”

Marianela Paco considera que democratizar a comunicação e a informação é princípio a ser retomado na Bolívia l Foto: Leonardo Wexell Severo

A porta-voz do Movimento Ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP), jornalista e advogada Marianela Paco, nos recebeu com exclusividade na sede do partido em La Paz para uma avaliação da vitoriosa campanha de Luis Arce Catacora (Lucho) e David Choquehuanca à presidência e à vice da Bolívia. Ex-deputada, autora das principais leis contra o racismo no país andino, a ex-ministra da Comunicação do terceiro governo de Evo Morales (2015-2017) reiterou a “necessidade de um trabalho articulado com as organizações sociais a fim de transformar o plano de governo em realidade”. Para Marianela, “democratizar a comunicação e a informação é um princípio a ser retomado no país, pois a Pátria deverá ser reconstruída das ruínas deixadas pelo golpismo”. “Precisamos aprofundar este grande projeto democrático, revolucionário e cultural”, assinalou a dirigente, para quem “a comunicação tem caráter estratégico na luta contra a descolonização”.

Encerramos com esta entrevista a série realizada durante duas semanas em solo boliviano, com a convicção de que a busca da verdade e da justiça se fortalece dando voz aos sujeitos da história.

Como vês o exemplo da Bolívia para a Nossa América e a necessidade da democratização da comunicação?

Os meios de comunicação são muito importantes, extremamente relevantes para a nossa sociedade. Na Bolívia, a onda comunicacional transcende para além da mídia, tem a ver com um sentido de pertencimento social, de enraizamento. Ao mesmo tempo, dialoga com a organização. Nós, bolivianos, temos por essência a busca por pertencer a algum espaço. E esse espaço são nossas organizações territoriais, sindicais, setoriais, de interesses imediatos comuns que buscam reivindicar ou igualar direitos.

No que diz respeito ao Movimento Ao Socialismo (MAS), o que o mantém mais firme é esta organização territorial com uma sede de justiça histórica, que vem desde a invasão espanhola. Esta busca de justiça histórica e social deu lugar ao Instrumento Político pela Soberania dos Povos (IPSP) e acompanhou um processo de conscientização e descolonização. Em seu momento, de imediato, funcionaram como elementos catalisadores na sua construção os meios de comunicação da Igreja Católica, as rádios populares e as rádios mineiras.

E o que foi feito enquanto o MAS esteve no governo?

Quando estivemos no governo tentamos democratizar a comunicação, mas esta ação tinha certas limitações. Nos limitamos a administrar um espaço eletromagnético do qual 90% era controlado pelo setor privado, que tem como lógica manter o monopólio discursivo e da informação.

Mas apesar do monopólio estar com as forças da reação, a resposta nas urnas veio contrária a elas. O que ocorreu?

É como uma revelação, uma maior consciência e clareza do povo boliviano em torno à realidade e ao que lhe mentem, ao que lhe ocultam e o que não lhes pode deixar manipular. E assim foi modelada a resistência ao governo de Jeanine Áñez, a trincheira comunicacional tem sido as redes. Para além dos riscos que isso implica, das Fake News.

De certa forma, sabíamos que não haviam tantas certezas. Sabíamos, por exemplo, do tráfego na rede – em prol do principal candidato da oposição -, de uma grande aceitação de jovens. Mas os resultados das urnas nos disseram outra coisa: que nas redes estava uma trincheira política do meu partido, de esquerda. Era uma sensação natural que nesta interação, nesta trincheira, a credibilidade dos meios tradicionais fosse relativizada.

Vale lembrar o custo de que com este regime perdemos pelo menos 56 meios comunitários, que foram obrigados a se submeter à sua linha ideológica ou simplesmente foram fechados.

Meios comunitários foram queimados pelos golpistas, como pude comprovar em Cochabamba. Do ponto de vista da democracia, esta recente vitória do MAS aponta para o fortalecimento da informação contra a manipulação?

Antes de entrar no plano comunicacional, gostaria de falar sobre este sentido de pertencimento e organização do povo boliviano. Nosso povo tem mantido um plano de comunicação que não é pessoal, que é grupal, presencial e expressivo. E este outro nível comunicacional vai além da mídia de massa.

Na gestão do governo, nós estivemos envolvidos não só em processos de democratização, mas em empoderamento do direito de comunicação e do direito de informação. Estes direitos foram transversalizados. Vale dizer que esta era da informação, dos meios de comunicação de massa, de redes sociais, encontrou uma sociedade boliviana que se havia alfabetizado, que havia entendido quais são os seus direitos enquanto cidadãos.

Frente a isso o regime entrou com uma atitude de criminalização do povo organizado, com ações dirigidas contra as bases sociais, com guerra suja, e isso não deu resultado. Era uma estigmatização promovida desde os meios de comunicação tradicionais, que se traduzia no dia das eleições em “não vá às urnas”. Este era o seu plano, que não deu resultado diante de uma sociedade boliviana consciente. Diante de tamanho empoderamento, a campanha da mídia tradicional não obteve o impacto e o efeito que buscava.

Então o que é importante? Que toda a sociedade se alfabetize, que toda a sociedade tome consciência de seus direitos, que existam vontades políticas que possam garantir a democratização da comunicação e da informação.

É o momento de superar limitações?

Como Movimento Ao Socialismo temos um segundo momento, que podemos qualificar como nova oportunidade. Precisamos reafirmar uma relação de soberania, de respeito com outros países, e isso implica também com empresas transnacionais. Nos anos anteriores de gestão demonstramos capacidade para o desenvolvimento, para o crescimento econômico com autossuficiência e autossustentabilidade, que deve ser retomada.

Ingressamos em um processo de industrialização que podemos continuar, mas com apego aos princípios que temos como instrumento político. Dentro destes princípios está o respeito à Constituição Política do Estado, que respeita à Mãe Terra, que respeita a soberania alimentar do povo boliviano, que aponta para o desenvolvimento num marco de harmonia e equilíbrio, não somente com a satisfação de necessidades materiais das pessoas, mas também das espirituais.

Assim está planificado o nosso programa de governo, de longo alento para os próximos cinco anos, frente ao Bicentenário Boliviano, planejado para agosto de 2025.

Respondemos a questionamentos e observações, que em alguns casos poderiam ser apontados como erros, mas sobretudo é preciso melhorar para continuar caminhando rumo ao horizonte comum. Caminhar rumo ao “Bem-viver”, atendendo as necessidades materiais e espirituais das pessoas, em harmonia com a Pachamama, a Mãe Natureza, e que nos permita também um relacionamento de soberania, dignidade e respeito com quem quer que seja.

É parte do nosso projeto destes quase 14 anos gerar mais recursos que sejam de autossustentabilidade, que tenham sua base também de tipo ecológico. Por isso temos plantas eólicas de geração de energia e painéis solares, hidrelétricas e termoelétricas, todas extraídas dos nossos próprios recursos para o desenvolvimento energético.

Estávamos orientando todo o plano estratégico para que possamos exportar esses recursos e fazer da Bolívia um centro energético, para poder aumentar nossas divisas. São projetos que foram paralisados e teremos de retomá-los. Isso será parte da reativação econômica.

No marco do programa apresentado ao Tribunal Eleitoral em relação à retomada do modelo econômico-comunitário-produtivo, como vês a estratégica comunicacional para que os cidadãos tenham acesso à informação, uma vez que a censura ou a autocensura dominou a ação do governo Áñez?

Precisamos retomar o princípio da democratização da comunicação e da informação, em apego ao que estabelece a Constituição Política do Estado. A Constituição é clara: a informação e as opiniões emitidas através dos meios de comunicação social devem respeitar os princípios da veracidade e da responsabilidade; os meios não poderão formar de maneira direta ou indireta monopólios ou oligopólios e o Estado apoiará a criação de meios comunitários em igualdade de condições e oportunidades.

Em apego ao mandato constitucional, é preciso que os meios de comunicação promovam os valores cívicos, democráticos e patrióticos, do contrário serão sancionáveis, como em qualquer parte do mundo. Da mesma forma, é necessário que hajam em consonância com as leis que garantem a liberdade de expressão e de imprensa. Com o governo golpista não havia informação e eram tratados como sediciosos todos aqueles que pensavam diferente.

No meio da campanha eleitoral, apesar de relevante, o debate sobre o papel libertador econômico do lítio foi ocultado pela mídia. Na sua opinião, qual o papel deste mineral para a execução do projeto de emancipação nacional?

O lítio é um elemento chave para o nosso desenvolvimento e também um componente chave para o relacionamento geopolítico e empresarial, para o tipo de investimento que se tem de fazer. E este relacionamento vai novamente incorporar os princípios de respeito e de soberania. Este relacionamento deve continuar, portanto, sobre a base destes dois pilares.

Entendemos que para a nossa economia o lítio é sumamente importante e precisamos equilibrar com as outras necessidades que temos enquanto país para atrair tecnologia, algo que nos permita uma exportação adequada às nossas normativas.

O país deverá ser reconstruído das ruínas deixadas pelo golpismo.

O que representa esta vitória do MAS para a tão sonhada integração regional?

Estamos conscientes de que esta é uma vitória importante do conjunto do povo boliviano e que vai se irradiar pela região. Vai compor uma base ideológica e de relacionamento para mantermos independência e, ao mesmo tempo, para fortalecer as capacidades que temos para construir uma relação equilibrada. Ao mesmo tempo, para além da nossa consciência, está a expectativa dos irmãos da América Latina com a nossa resistência.

No caso boliviano, foi uma resistência marcada de forma orgânica. Isso quer dizer que estivemos ligados a sindicatos e associações de moradores. E que a soma de entidades populares novamente abriu a possibilidade de uma resposta tão contundente, que é um exemplo para os demais irmãos da região.

Sabemos que isso também nos traz uma grande responsabilidade, como nos manifestaram os presidentes da Argentina e do México. Disseram que nos veem com muita esperança para fortalecermos o que foi a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), a Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) e a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Então estes são desafios não só para o povo boliviano, no que implica nossa plena libertação enquanto povos ancestrais, no que diz respeito aos indígenas originários camponeses, mas também para as comunidades mais modernas. Tudo isso traz muita esperança e muita responsabilidade. Da nossa parte, reiteramos que estamos dispostos a acompanhar todos os povos e processos que queiram assumir nossa experiência de resistência e recuperação da democracia para colocá-la nas mãos de uma sociedade organizada. Precisamos agora aprofundar este grande projeto democrático, revolucionário e cultural.

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