O fim da freguesia

Oitenta anos de Pelé: com direito a gol na estreia contra a Argentina, o rei brecou a freguesia no confronto

Pelé estreia na Seleção com gol contra a Argentina, em 7 de julho de 1957 (Foto: Arquivo Diários Associados-RJ/Acervo IMS)

Introibo ad altare Dei. Naquele tempo, a missa era em latim e era assim que começava, o padre avisando que ia entrar no altar e entrava. E houve certa vez o caso célebre de um noviço que pela primeira vez se paramentava e entrava, vamos dizer, como se fosse na Basílica de São Pedro de Roma, apinhada de fiéis, que atravessou muito comodamente a nave e, para espanto geral, subiu ao altar e entrou a oficiar ele mesmo, nas barbas de toda a cúria presente. Era prodigioso como conhecia a liturgia. Poucos anos depois, dois ou três, o fenômeno era feito pontífice máximo. É fato acontecido. É antigo mas há registro.

Muito bem, aquele noviço, em quem um profeta local vaticinara, naquele mesmo ano, o Superior cujo pontificado foi de quase duas décadas, vai fazer agora 80 anos. Em outubro. É Pelé. O profeta era Nelson Rodrigues, chamando-o “rei” já em 1957, o ano da primeira “missa”, dita no Maracanã.

Mas são também agora os 50 anos da copa do México, em que Pelé, aos quase 30 de idade, chegou a um segundo auge físico e técnico durante as três semanas que o torneio durou. Torneio em que ele a bem dizer encerra sua carreira fulgurante com aquele admirável tour de force. Foi eleito o melhor jogador daquela copa de altíssimo nível, entre gente como Cubillas, Pedro Rocha, Sepp Maier, Beckenbauer, Breitner, Overath, Gordon Banks, Bobby Moore, Charlton, além, naturalmente, de Gerson e Tostão.

Mas voltemos ao noviço, à “basílica”, àquele exploit inaugural.

Brasil x Argentina, primeira partida pela Copa Roca de 1957, na tarde de 7 de julho no Maracanã. Primeiro tempo, 1 a 0 Argentina, gol do fabuloso Labruna. Para o segundo tempo, os alto-falantes do estádio anunciaram três substituições no Brasil. Sílvio Pirillo, o técnico, tirou Zito e botou Urubatão de volante, ambos do Santos, trocou Mazola, do Palmeiras, por Moacir, do Flamengo, no comando do ataque, e na meia-esquerda, mais dois do Santos, saiu Del Vecchio e entrou Pelé, este estreando ali com a camisa amarela. E que não tomando conhecimento de Amadeo Carrizo, uma lenda dentro da grande tradição argentina de goleiros, estufou-lhe a caçapa empatando o jogo.

Eis a foto, publicada em O Jornal de 9 de julho de 1957. Eis o momento em que um menino de 16 anos, camisa 13, decretava o fim da “freguesia” Brasil-Argentina. Freguês-de-caderno, está no Houaiss, é um “time ou jogador frequentemente derrotado por um determinado adversário”. O Brasil em relação à Argentina, por exemplo, até aquele dia inclusive, porque Juárez desempatou e a coisa acabou 2 a 1 eles. Mas aí chegou.

Para o segundo jogo, três dias depois no Pacaembu, Pelé já era titular. Ele e Mazola, Brasil 2 a 0, e a Copa Roca, que trouxéramos da última disputa, em 1945, ficou em casa.

Desde quando o Brasil disputou seu primeiro full international match, definição da FIFA para jogos entre seleções nacionais principais – e justamente contra a Argentina em Buenos Aires em 1914, até a estréia de Pelé 43 anos depois, houve 35 encontros desta que, de todas, é de longe a maior rivalidade mundial inter-seleções. Foram seis empates, 10 vitórias brasileiras e 19 argentinas, quase o dobro. Em 1939 houve um 5 a 1 para eles, e, em 1940, 3 a 0, 6 a 1 e 5 a 1. Quer dizer, a mais flagrante “freguesia”.

Até 1960, a diferença ainda subiria a 10 vitórias deles a mais.

A partir do jogo do Pacaembu, foram 17 partidas, até 8 de março de 1970, última vez que Pelé disputou o clássico: Brasil 2 a 1, o segundo dele, no mesmo Maracanã da estréia. Nesses treze anos, foram dois empates – com ele em campo -, sete vitórias argentinas – três ele jogando – e oito brasileiras – quatro com ele.

(Parêntese: a carreira de Pelé no Brasil, 18 anos como profissional – iniciados jogando com Jair Rosa Pinto no Santos e contra Zizinho, do São Paulo, no campeonato paulista – coincide com a era de ouro do nosso futebol, entre 1958 e 1970. Foram 12 anos de hegemonia planetária do futebol brasileiro, como não se conhece outra de tão insofismável clareza e tamanha duração. E que, no período, só conheceu a derrota diante de outro produto “indústria brasileira” genuíno, a bagunça, que foi a [des]organização da Seleção de 1966. O futebol brasileiro teve uma sorte que por exemplo argentinos e italianos não tiveram: no auge dos platinos, a década de 1940, não houve copa do mundo por causa da guerra; e os peninsulares perderam no acidente aéreo do Torino talvez mais de metade do time que viria ao Brasil no ano seguinte para a copa de 1950. A nós nos tocou o bilhete premiado de que o Maioral jogasse num tempo em que jogaram Garrincha, Didi, Dino Sani, Dida, Zito, Mazola, Coutinho, Evaristo, Julinho, Djalma e Nilton Santos, Amarildo – e, em seguida, Gerson, Tostão, Carlos Alberto, Rivelino, Clodoaldo, Ademir da Guia, Paulo César, Jairzinho… Fecha.)

Com estes “perebas” estabeleceu Pelé o equilíbrio que passou a haver entre a Argentina e o Brasil. Em treze anos, 17 jogos, apenas uma vitória nossa a mais. Equilíbrio e breque na “freguesia”.

Não permitam os deuses dos estádios – e o sumo sacerdote nem sonhando pretendeu – a extinção da fabulosa escola de professores como Sastre, Pedernera, García, Labruna, Carrizo, Sívori, Maschio, Néstor Rossi, Moreno, Di Stefano, Ardiles, Maradona, Tévez, Messi. A graça está na força deles e em sermos tão fortes quanto eles.

Pelé começou, com 9 vitórias deles a mais e deixou o confronto ainda em 8 de vantagem para eles. Tinha freado a coisa. A igualdade se alcançou em 1989, 27 vitórias para cada lado. Em 2002, o saldo de gols ainda era deles, 139 a 129. O último jogo do grande clássico foi no 15 de novembro passado, Argentina 1 a 0, em Riad, Arábia Saudita. A coisa atualmente anda em 43 vitórias nossas, 38 deles e 25 empates; 165 gols para nós, 158 para eles. Diferenças mínimas num universo de 106 partidas, quase um quarto das quais terminado em empate.

Este grande equilíbrio se iniciou num Maracanã com gente até na marquise, na tarde de domingo, 7 de julho de 1957, por decreto de um adolescente negro brasileiro. A partir dali, não me lembro que concílio determinou que o rito passasse a se oficiar em Português do Brasil.

(Pesquisa: Andrea Wanderley. A quase totalidade destes números e dados está na Enciclopédia da Seleção, de Ivan Soter, edições Folha Seca, Rio, 2014. As atualizações foram igualmente fornecidas pelo autor.)

Fonte: Instituto Moreira Salles (IMS)

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