Guedes, homem de Wall Street, reedita tecnocracia da ditadura militar

Métodos autoritários e chantagistas receberam aval das oligarquias financeiras.

Em 1979, o então ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen, deixou o comando da equipe econômica do governo do ditador João Baptista Figueiredo recomendando ao seu sucessor, Antônio Delfim Netto, ideias sobre “estabilidade”, “necessidade de ajustes” e “austeridade fiscal”. Em seu discurso de posse, o novo ministro pediu aos empresários que preparassem suas máquinas para uma época de muito trabalho – algo muito repetido pelo ministro da Economia do governo do presidente Jair Bolsonaro, Paulo Guedes.

Por trás daquelas recomendações estavam concepções plantadas pela ditadura militar e que resultaram, nos anos 1980, na famosa “década perdida”. Somava-se ao diagnóstico conservador a afirmação de Simonsen de que o Brasil não teria como sustentar o ritmo vigoroso de crescimento dos anos 1970 e que ”duros ajustes” eram necessários. O resultado? Bem, não é preciso muito conhecimento de economia para saber quem pagou a conta daquele desastre.

As marcas na vida do país foram profundas: inflação fora de controle por longos 15 anos, o que originou uma sucessão de fracassados planos econômicos; pouco investimento em atividades produtivas; descrédito internacional e por aí a lista segue. Foram as marcas deixadas pelo chamado “milagre econômico” dos militares golpistas, que representou uma afluência excludente — a uns foi dado o acesso aos padrões de vida de uma sociedade industrial e a outros apenas a cota de sacrifício necessária àquele salto econômico.

Como escreveu Celso Furtado no livro O Brasil pós-milagre, publicado em 1981, “poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão antissocial.” A pesada carga social posta nas costas do país piorou com a herança maldita deixada pela “era” neoliberal comanda pelos governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). Quando o governo do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, eleito em 2002, começou a enfrentar o nefasto legado da ditadura e da “era” neoliberal, havia muita coisa por fazer.

Foram necessárias ações vigorosas para revogar aquela lógica de fazer do Estado um simples mediador do processo de financeirização da economia. Pode-se dizer que não houve um rompimento com a ordem inaugurada em 1964 para tirar a gestão econômica do país das mãos de uma tecnocracia privada que representa os negócios privados dentro do governo, mas o Estado passou a assumir outras responsabilidades.

Um dos principais avanços foi desatar o país dos sucessivos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Não se chegou a uma reconfiguração do Estado de modo a fazer da Justiça um contrapeso rigoroso e ágil às forças do “mercado” e aos conflitos que são lugar-comum em uma sociedade regida pela ditadura dos grupos econômicos e financeiros, mas houve avanços no sentido de oferecer um melhor clima para a atuação dos setores populares na institucionalidade do país, como o reconhecimento formal das centrais sindicais.

Mas, com o golpe do impeachment fraudulento da ex-presidenta Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro para presidente da República em 2018, a velha ordem da tecnocracia renasceu das cinzas. Voltaram os tecnocratas com as ideias plantadas por Eugênio Gudin, Octávio Bulhões e Roberto Campos, responsáveis por tantos desacertos desde as primeiras picaretadas ditas liberais na “era Vargas”, ocupando lugar central no governo, com poderes absolutos para gerir as contas públicas. Tomar conta do caixa do país – o que significa gerir as finanças de todos, numa definição. É uma ditadura de um grupo que administra as contas públicas com irresponsabilidade social e mesmo matemática.

No comando da trupe está o homem de Waal Street, o ministro da Economia Paulo Guedes, com ares onipresentes e oniscientes e pose de joãozinho do passo certo. Ele sentou-se no caixa do Estado e defende sua lógica com toda sorte de bravatas, procurando dar o eixo ao país com seu já conhecido naipe de absurdos. É a imposição da lógica privada no espaço público, o controle dos mecanismos de diretrizes econômicas — e consequentemente políticas — para impor à sociedade valores rarefeitos e conceitos obtusos, acompanhados de um narcisismo acintoso.

Como disse Brian Winter, editor da revista Americas Quarterly – publicação dedicada à política, negócios e cultura nas Américas, segundo sua autodefinição –, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 5 de setembro de 2018, a maioria dos “investidores” de Wall Street preferia o candidato presidencial do PSDB Geraldo Alckmin, mas mudou de opinião com a indicação por Bolsonaro de Paulo Guedes como “ministro da Fazenda”.

De acordo com ele, sob a tutela de Guedes Bolsonaro prometeu “reforma nas aposentadorias” e “chegou a mencionar a possibilidade do Cálice Sagrado de Wall Street – a privatização da Petrobras”. “Um investidor me disse, empolgado, que o Brasil pode ter seu primeiro presidente verdadeiramente liberal em pelo menos meio século”, escreveu. De acordo com Brian Winter, os “investidores” encaravam os riscos do autoritarismo propalado por Bolsonaro como irrelevantes. “Muitos tenderão a responder ‘ouvimos o mesmo sobre Trump, e as coisas estão ótimas’ ou ‘qualquer um menos Lula’”, afirmou.

O editor comentou também “o elemento moral”. “Como os investidores podem apoiar um candidato com posições como as de Bolsonaro sobre mulheres, minorias e direitos humanos? Essa é a pergunta mais fácil. Conheço muitas pessoas íntegras em Wall Street que sentem repulsa por Bolsonaro. Mas elas admitem em conversas particulares que não há espaço para sentimentos. Como me disse uma, ‘meu trabalho é garantir que os títulos sejam pagos na data. Quanto ao resto – cabe aos brasileiros decidir’, escreveu.

São revelações da alma de Waal Street, tanto sobre o “elemento moral” de Bolsonaro quanto do autoritarismo do governo. O presidente e o ministro da Economia nunca esconderam suas predileções, como acaba de reiterar Paulo Guedes ao dizer que o Brasil pode ir para “uma hiperinflação muito rápido” caso não consiga rolar sua dívida com urgência. É uma chantagem ao Congresso Nacional para tentar desempacar o seu programa de privatizações selvagens para arrecadar R$ 1 trilhão, conforme prometera a Wall Street.

O ministro citou “acordos políticos”, tanto na Câmara como no Senado, como entraves à sua privataria. “Estou bastante frustrado com o fato de estarmos aqui há dois anos e não termos conseguido ainda vender nenhuma estatal. Por isso, um secretário nosso foi embora, Salim Mattar (ex-secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercado), que deixou o Ministério em agosto. Precisamos recompor nosso eixo político para fazermos as privatizações prometidas na campanha”, disse.

Esse enredo é bem conhecido. Na “era” neoliberal dizia-se que a taxa de retorno social com as privatizações seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. Dizia-se que seria necessário privatizar para “abater” a dívida pública e liberar “bilhões de dólares” das despesas com juros para financiar investimentos sociais, como afirmou FHC.

O então presidente da República, como faz Guedes agora com sua chantagem, deu uma sentença cabal: “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais.” Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros seguiu estratosférica.

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