Na vida só cabe-lhe a tanga rasgada, na morte só cabe-lhe o roto lençol

Estes versos que estão acima, no título, são do poeta abolicionista Castro Alves, em uma das suas mais emocionantes poesias contra a escravidão, “A mãe do cativo”.

Já se passaram quase 140 anos desde que Castro Alves, olhando a escravidão do ponto de vista de uma mãe negra, denunciava a injustiça inata da servidão. 140 anos se passaram… Os negros continuam morrendo como moscas nas cidades brasileiras e sempre existe alguém para justificar, minimizar e, como se diz hoje em dia, “passar pano”.

Talvez não tenham decorridos cinco minutos da morte horrenda de um negro espancado no Carrefour e com certeza algumas pessoas já divulgavam argumentos para relativizar o crime brutal. O próprio vice-presidente da República veio à público dizer que o Brasil não é racista. A mesma coisa que prega o Diretor de Jornalismo da Globo, em seu livro abjeto “Não somos racistas”.

Todos eles, inclusive os imbecis neofascistas brasileiros que escrevem suas tolices nas redes, têm as mãos sujas de sangue. Exagero? Ora, se o racismo não existe, não é preciso combatê-lo, pois não se combate o que não existe. E se não se combate o racismo, ele se perpetuará, assim como a licença tácita para matar negros. Como era mesmo o nome daquele músico morto por soldados do exército em 2019 com 257 tiros de metralhadora? Deixou mulher, filho e muitos amigos e parentes inconsoláveis. Alguém aí lembra o nome? Um herói entrou em meio aos tiros para tentar ajudar a família que estava em pânico no carro sob fogo. Era catador de rua e pardo. Também morreu. E o nome dele? Alguém sabe no que deu o caso? Sinto que escrevo com muita raiva ao lembrar que, na ocasião, choveram mensagens na internet justificando o massacre.

Por que toleramos isso? A desculpa de que “opinião, cada um tem a sua, é a democracia”, é um subterfúgio canalha. Ora, negar o holocausto contra os judeus é crime no Brasil e em pelo menos outros dezesseis países, incluindo a Alemanha, o que, aliás, é justo, pois ao se negar a história deste genocídio fartamente comprovado, abre-se brecha para que ele se repita. Mas se concordamos em que a liberdade de opinião tem limites que são definidos pelo humanismo, porque toleramos Bolsonaros, Mourões, Sérgios Camargos e Ali Kamels?

“Quem sou eu? que importa quem? / Sou um trovador proscrito, / Que trago na fronte escrito / Esta palavra — Ninguém!” Versos de A. E. Zalvar, usados como epígrafe por Luiz Gama no poema, Quem sou eu?

O advogado e poeta negro, nascido em 1830, Luiz Gama, batalhou por sua liberdade e, depois de conquistada, dedicou sua vida à luta pelo fim da escravidão. Ele causou escândalo ao defender a tese de que um escravo que matava seu “senhor” agia em legítima defesa e seria inocente. Mesmo alguns abolicionistas consideraram a ideia muito radical. E em certo sentido estavam corretos, pois ser radical é ir à raiz do problema.

Tem um samba de Nei Lopes e Wilson Moreira (Coisa da Antiga), gravado por Clara Nunes, onde uma filha ouve a mãe negra contar que seu bisavô tinha sido escravo:

ele foi escravo, mas não se entregou à escravidão / Sempre vivia fugindo e arrumando confusão / Disse pra mim que essa história do meu bisavô, negro fujão / Devia servir de exemplo a ‘esses nego pai João’.”

Já passou da hora de ser radical, no sentido original da palavra. Já passou da hora de despertar para o fato de que o racismo é pilar fundamental que sustenta a gritante desigualdade da sociedade brasileira. Que a coisa só piora quando fascistas e racistas encobertos negam o racismo e transformam tudo em “incidente” e “fatalidades” que teoricamente poderiam atingir a qualquer um, mas que em 90% dos casos atingem sempre os da mesma cor. O nome do negro assassinado nesta quinta-feira (19) era João Alberto Silveira Freitas. O nome do negro assassinado em abril de 2019 era Evaldo Rosa. O nome do heroico catador de rua, pardo, morto na mesma ocasião, era Luciano Macedo. São apenas três nomes em meio à incontáveis que são assassinados todos os dias, meses e anos. Mais fácil é gravar o nome dos neofascistas e racistas incubados que proliferam na política, nas ruas, na mídia e nas redes. Não devemos dar a eles um minuto de sossego. Chamá-los pelo que são: criminosos, racistas.

Não faz muito tempo, estava em uma “live” com o ex-ministro da Igualdade Racial do Governo Lula, Elói Ferreira, onde discutíamos as revoltas nos EUA que têm como estopim os assassinatos de negros por policiais. Na ocasião relatei uma cena que havia visto naquele mesmo dia em um Supermercado da Asa Norte em Brasília. O supermercado estava praticamente vazio e havia uma caixa onde uma garota ajudava os clientes a empacotar os embrulhos. Na fila, um cliente branco e logo atrás um negro. A funcionária, branca, ajudou a empacotar o embrulho do senhor branco, quando chegou a vez do negro ela acintosamente passou para a caixa ao lado onde não havia ninguém para atender. O senhor negro, que devia ter por volta dos 30 e poucos anos, olhou para ela, deu um suspiro e nada disse, embrulhou suas compras e foi embora. Não o condeno. Quantas vezes ele passou por coisas semelhantes? Quantas vezes reclamou sem que qualquer coisa acontecesse?

Qual o nome do Supermercado onde presenciei este fato corriqueiro? Pão de Açúcar, do mesmo grupo empresarial do Carrefour. Pão de Açúcar, Carrefour, Centauro, Havan, Riachuelo, Bio Ritmo, Smart Fit, Coco Bambu, Madero, todas essas empresas fazem parte da mesma cepa. “É um absurdo”, protestarão histéricos os empresários, “Nada temos com estas mortes, não somos racistas, até empregamos negros, tem até negro que é gerente”. Ora, quer dizer então que financiam a extrema-direita, o racismo e o fascismo e não querem ter qualquer responsabilidade com as consequências? Vão se catar, para não dizer outra coisa.

Embora eu compreenda a resignação do negro alvo de racismo que relatei acima, o fato é que já está na hora de uma boa rebelião contra o racismo e os pilares que o sustentam. Está na hora de boicotar os racistas, está na hora de protestar ativamente de diversos modos, inclusive nas ruas. Está mais do que na hora de – aqueles que são – deixarem de ser “nego pai João”.

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