Pandemia: segunda onda no Brasil será pior do que a primeira

Reabertura completa da economia vai alastrar casos de Covid-19

Os números da pandemia do novo coronavírus no Brasil, nas duas últimas semanas, indicam que o País vive o início de uma segunda onda. É o que indica a nota técnica “Situação da Pandemia de Covid-19”, divulgada na segunda-feira (23). O estudo é assinado por cientistas da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade do Estado da Bahia (Uneb), da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia Campus Salvador (IFBA).

“Estamos começando agora a segunda onda – e ela tende a ser pior do que a primeira”, afirma o professor Tarcísio Marciano Rocha Filho, da UnB, um dos responsáveis pelo estudo. Para ele, o País certamente passará por um novo surto de infecções nos próximos meses. “Em todos os países do mundo em que a gente viu uma segunda onda, ela foi pior do que a primeira”, agrega o especialista. “O vírus não desapareceu e estamos muito longe da imunidade de rebanho, que só será atingida com a vacinação em massa.”

Na última terça-feira (24), o Brasil passou de 170 mil mortes em decorrência da Covid-19. Segundo o Ministério da Saúde, foram registradas 630 mortes em 24 horas. Ainda conforme a pasta, a pandemia já provocou a infecção de 6.118.708 pessoas desde o primeiro caso, em fevereiro.

O monitoramento realizado pela Imperial College de Londres mostrou que a taxa de transmissão aumentou no Brasil. O índice Rt atingiu 1,3, apontou o relatório da universidade. Com isso, cem pessoas seriam capazes de infectar outras 130. É a maior taxa no País desde o dia 24 de maio, quando a taxa foi de 1,31. Pela margem de erro do levantamento, a taxa pode ser maior e atingir 1,45, ou menor, indo até 0,86.

“Não vamos voltar à normalidade tão cedo, a não ser que a gente vacine uma grande parcela da população. Ainda assim, vamos ter que viver com surtos localizados”, alerta Tarcísio em entrevista à CartaCapital. Na nota técnica, os autores apontam que a queda dos níveis de isolamento social, a ausência de campanhas de esclarecimento e a falsa sensação de segurança disseminada na população são fatores para o “aumento explosivo” ou “manutenção da grande circulação do vírus”. Leia a entrevista:

CartaCapital: A nota técnica aponta a falta de testagem sistemática como um dos motivos para a segunda onda. O que é o ideal, e o que estamos fazendo?
Tarcísio Marciano Rocha Filho: O que é ideal, e que alguns países asiáticos fizeram, como China e Cingapura, é que se teste qualquer caso suspeito. Então, (se há) um sintoma de febre, gripe, mal-estar, você testa. Caso dê positivo, você vê com quem a pessoa teve contato, em que lugares ela foi nos últimos dias, no tempo em que poderia estar contaminando outras pessoas. Você testa e, se houver positivo, isola essas pessoas. A China é muito restrita, por isso conseguiu conter até hoje. A pessoa espirrou, é testada e já vai para casa. Com isso, você consegue controlar um pouco a situação do vírus.

É testagem sistemática e rastreamento. A Europa tentou fazer isso, funciona por algum tempo, não eternamente. Tenho a impressão que certamente poderíamos fazer melhor. Sei de casos de pessoas que claramente tiveram Covid-19, não tinham como pagar um laboratório privado e não puderam fazer em um público, porque não havia testes disponíveis. É sabido que o Brasil vem testando menos. No começo, até se testou um pouco mais, e essa testagem vem caindo. Isso é um problema que a gente enfrenta para identificar os casos. Em muitos lugares há esse problema. Acho que no Brasil é um pouco mais acentuado.

CartaCapital: Nossa situação de testagem pode ser comparada à normalidade de outros países?
Tarcísio: Se você pegar, por exemplo, a Alemanha, conheço gente lá que teve sintomas de Covid-19 e não conseguiu testar, porque só estão testando os casos mais graves, quando pessoas precisam ir ao hospital. Na maioria dos casos, você pode ficar em casa. Isso acontece em outros países. É assim no Brasil. Você normalmente vai ser testado se for um caso mais sério. É uma limitação.

O Brasil testa menos que outros países desenvolvidos, mas isso é um fenômeno generalizado. Há dificuldade de se adquirir kits de testagem no mundo, a concorrência é imensa por razões óbvias. Todos os países do mundo querem comprar testes. Isso requer um planejamento com antecedência, para comprar, distribuir e aplicar. Mesmo com deficiências, acho que a gente poderia testar mais para identificar casos. Mas é um problema mundial. Tem países melhores, mas até piores do que a gente.

CartaCapital: Outro motivo apontado para a segunda onda é a falta de uma ação coordenada pelo governo federal. Qual seria a diferença?
Tarcísio: Os países que tiveram maior êxito no controle da pandemia tiveram uma ação centralizada. Você tem que ter um discurso único. Sinto muita falta, por exemplo, de campanhas para a toda a população, explicando o que tem que ser feito. É necessário coordenar recursos, aquisição de respiradores, testes, otimizar a distribuição para os estados. A mesma coisa vai acontecer com a vacina.

Sobretudo, fazer como vários países fazem: essa coordenação central tem uma comissão de especialistas de várias áreas, fazem análises e recomendações aos governantes. França, Alemanhã e Itália são assim. O que você vai fazer em cada estado varia. Mas no fundo, a gente dispõe das mesmas ferramentas. Ações coordenadas evitam que algum estado tome medidas mais extremas enquanto outro não tem nenhuma medida.

Sobre os recursos, cabe ao governo federal, por exemplo, o auxílio emergencial. É essencial, porque você mantém em casa uma pessoa que precisa trabalhar durante o dia para comer no jantar. Você não vai exigir que uma pessoa sem condições financeiras fique em casa sem trabalhar. Isso é impossível para ela. É preciso dar apoio financeiro. Sem ajuda econômica importante, você não consegue manter as pessoas isoladas.

CartaCapital: Mas a conduta do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia contraria governadores. Assim, pode não ocorrer uma ação coordenada dessa forma. Seria possível haver algum sucesso que não dependa do governo federal?
Tarcísio: O que a gente viu no Brasil foram os estados, individualmente, tomaram as medidas que julgavam melhores. De certa forma, conseguimos um grau de controle da pandemia, dentro do que era possível. A gente atravessou a primeira onda e estava diminuindo. Agora, é claro que há um custo econômico, o impacto é em todo o País. Aí é que entra o papel do governo federal para coordenar essa transição.

Estamos começando agora a segunda onda, e ela tende a ser pior do que a primeira. Por que digo isso? Primeiro, porque em todos os países do mundo em que a gente viu uma segunda onda, ela foi pior do que a primeira – praticamente todos, na Europa, nos Estados Unidos. Ela é pior porque é mais difícil adotar medidas duras que a gente incorporou em março e abril, como fechar absolutamente todas as atividades não essenciais, comércio, shopping, para as pessoas ficarem em casa, e isso realmente teve um impacto grande.

Há um cansaço natural das pessoas, muita desinformação também. Vou dar um exemplo: um dono de restaurante fecha o estabelecimento por um mês e não se dá nenhum apoio a ele. Aí, fica difícil. Então a tendência é haver muita resistência em políticas de isolamento mais duras e isso leva à disseminação do vírus e à segunda onda que acaba lotando os hospitais. Se a segunda onda for pior que a primeira, haverá um colapso ou saturação do sistema de saúde. É um medo que a gente precisa ter. E essa utilização de recursos requer ação do governo federal, pois ele que coordena o SUS.

CartaCapital: Então as ações coordenadas não são apenas na economia.
Tarcísio: Ações, por exemplo, como construção de hospitais de campanha, aquisição de equipamentos, de testes e futuramente na confecção e distribuição de vacinas.

CartaCapital: Outro fator que vocês apontam na nota é o afrouxamento do isolamento sem evidências empíricas.
Tarcísio: Vou dar o exemplo da França. Lá, no inverno, eles tiveram um pico muito grande. Na primavera isso foi diminuindo até que no verão a circulação do vírus diminuiu bastante. Foi aí que eles começaram a abrir a economia deles. Agora, veio a segunda onda que era inevitável.

Um número que devemos ter em mente é o de quantos casos novos se tem a cada semana para 100 mil habitantes. No começo do verão na Europa, esse número estava em menos de dez. A França chegou a ter três casos para cada 100 mil habitantes. São Paulo está com 89 casos por 100 mil habitantes. O menor número para o Brasil, agora, é o Maranhão com 23 casos. Brasília tem 122. Rio de Janeiro, 65. Amazonas tem 100. O Acre foi a 167. São números elevados.

O correto seria esse número cair bastante para se reabrir (a economia). Qual o risco de se fazer isso com um número elevado? Inevitavelmente, terá a segunda onda e ela virá. Está começando agora. O vírus não desapareceu e estamos muito longe da imunidade de rebanho, que só será atingida com a vacinação em massa.

Então, se há um vírus circulando, longe da imunidade de rebanho e com aumento de contato entre pessoas que fazem a transmissão, inevitavelmente teremos a segunda onda. Aconteceu em todos os países que reabriram, mesmo que parcialmente. Não precisa ser cientista da Nasa para perceber o que está a caminho. Ou contemos a pandemia agora ou saturamos o sistema hospitalar – e, se isso acontecer, a taxa de mortalidade vai aumentar.

CartaCapital: Qual a sua avaliação sobre o lockdown?
Tarcísio: Isso tem que ser avaliado em cada região, estado e município, pois as situações variam. Mas o lockdown nunca foi implantado no Brasil. Nós tivemos medidas de isolamento que tiveram seu efeito.

Fonte: CartaCapital

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *