Um desejo urgente de Clarice

A autora completaria cem anos nesta quinta-feira (10). A erradicação da fome, tema da crônica “Daqui a Vinte e Cinco Anos”, continua longe de se tornar realidade

Clarice Lispector, considerada intimista, escreveu em sua coluna do dia 16 de setembro de 1967, no Jornal do Brasil, sobre uma de suas maiores preocupações sociais: a fome. Instigada por um interlocutor a fazer uma previsão para o país, Clarice foi direta e enfática em sua mensagem: “Mas, se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome”. Mais de cinquenta anos depois, cerca de 86 milhões de pessoas sofrem com algum grau de insegurança alimentar no Brasil. 

1967

O Brasil no final da década de 1960 oferecia muitos elementos para motivar Clarice a escrever sobre o tema. Duas décadas depois da fome ser compreendida como um problema social por Josué de Castro na obra “Geografia da Fome”, o assunto estava nos jornais, na arte e nas ruas das cidades brasileiras. 

As crônicas exigiam de Clarice periodicidade e a atualidade, conceitos que não lhe eram impostos nos contos. Naturalmente, o contexto em que os escritores estão inseridos e experiências pessoais costumam influenciar com mais intensidade na produção desse gênero narrativo. Nas próprias palavras da autora, registrada na crônica Fernando Pessoa Me Ajudando, de 1968:

“Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer.”

Naquele momento, o Brasil vivia sob uma ditadura militar instaurada em 1964. Os militares haviam tomado o poder de João Goulart, que tinha na reforma agrária um de seus projetos centrais. A tensão política dominou o assunto de combate à fome.

A cena cultural no período foi contestadora, com expoentes como Chico Buarque – que é citado em algumas crônicas da autora -, Caetano Veloso, Rita Lee, Millôr Fernandes, Glauber Rocha entre muitos outros. A fome era um tema observado pelos movimentos culturais para retratar o Brasil e questionar a atuação do governo militar. 

Em 1968, Geraldo Vandré expõe nos versos da música Pra Não Dizer Que Falei das Flores um dos paradoxos brasileiros. A população que trabalha no campo não tinha condições para comprar o alimento. A música foi proibida de tocar nas rádios e Vandré foi exilado do Brasil em 1968.

“Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões 

Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão”.

Clarice na passeata contra a ditadura militar, no Rio de Janeiro, em 22 de junho de 1968. (da esquerda para a direita Carlos Scliar, Hélio Pellegrino, Clarice Lispector, Oscar Niemeyer, Glauber Rocha, Ziraldo e Milton Nascimento)

É difícil mensurar a fome no país no período em que Clarice escreveu a crônica Daqui a Vinte e Cinco Anos por falta de refinamento metodológico ou regionalidade das pesquisas. O primeiro levantamento do rendimento e do consumo familiar foi o Estudo Nacional da Despesa Familiar, feito em 1975 pelo IBGE – reformulado no governo Médici no projeto de centralização e valorização nacional. A pesquisa não foi publicada na íntegra, mas uma matéria intitulada “Baixa renda é a maior causa da desnutrição”, publicada na Folha de S.Paulo no dia 30 de novembro de 1981, reporta um estudo feito por técnicos do Banco Mundial com dados do ENDEF em que 62,7% das famílias tinham deficiência calórica na alimentação. Não por acaso, a matéria enfatiza que o número das famílias no país com renda mensal de até dois salários mínimos era de 62,4%.

A falta de nutrientes na dieta brasileira, definida como “fome oculta” por Josué de Castro pela ausência de características físicas, estava relacionada ao acesso da parcela mais carente da população a quantidades e qualidades satisfatórias de alimentos. 

Na crônica sobre o futuro do país, Clarice denunciou o problema na população. “A fome é a nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E, na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os sintomas físicos, morais e mentais da fome”.

Patrícia Jaime, vice-coordenadora científica do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), comenta as consequências da falta de nutrientes na dieta. “Há diversos impactos na saúde relacionados à falta de nutrientes essenciais, como as hipovitaminoses. Mas o impacto da insegurança alimentar vai além disso.”  

A pesquisadora destaca que a insegurança alimentar é um problema social, pois a falta de nutrientes, principalmente durante a infância, alimenta um ciclo de pobreza. “Quando a gente tem um retardo do crescimento, baixo peso, insegurança ou deficiência de nutrientes, isso impacta no capital humano. Impacta a saúde da criança, o que é absolutamente relevante, mas tem também um impacto social porque as crianças com desnutrição têm o pior desempenho na escola.”

2020

Desde então, o Brasil e o mundo passaram por transformações sociais, políticas e tecnológicas, mas o problema da fome ainda persiste no país 52 anos depois do desejo de Clarice. Aliás, os dados mais recentes da Pesquisa do Orçamento Familiar (POF), coletados entre 2017 e 2018, indicam uma piora no quadro de segurança alimentar nos últimos anos. 

Hoje, são 10,2 milhões de pessoas sujeitas à insegurança alimentar grave no país. O número estava em queda desde a primeira pesquisa em 2004, atingindo o menor número na última aferição em 2013, que contribuiu para o Brasil sair do Mapa da Fome da ONU. Ao considerar qualquer insegurança alimentar na população – leve, moderada e grave – o número de afetados é de 84 milhões de pessoas, cerca de 36,7% da população. 

Apesar do crescimento da insegurança alimentar, a média dos rendimentos de todas as fontes se manteve relativamente estável entre 2014 e 2019 no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD). A análise estratificada dos números, porém, revela que o quinto da população com menores rendimentos apresentou retração no período, especialmente os 5% mais pobres. 

Próximo à porcentagem de insegurança alimentar leve, quase 1/4 das famílias brasileiras sobrevivem com dois salários mínimos (R$1.908) ao mês e gastam em média R$328 em alimentação. As crises econômicas afetam o poder de compra dessa população e restringem o acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficientes. As consequências da pandemia já podem ser observadas, principalmente na faixa de renda mais baixa.

O desemprego é outro fator que deve contribuir para a piora do quadro de segurança alimentar. No terceiro trimestre de 2020, de junho a setembro, cerca de 1,3 milhão de pessoas se juntaram ao contingente total de 14,1 milhões de desempregados, um número maior que a população do município de São Paulo. 

A inflação acumulada prevista para o ano também é elevada, com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de 4,21%, segundo o relatório Focus, divulgado pelo Banco Central (BC). O maior peso na composição do índice tem origem nos alimentos.  De janeiro a novembro, de acordo com o IPCA, a inflação no grupo de produtos alimentícios cresceu 12,14%, com destaque para o óleo de soja  (94,1%), arroz (69,5%) e batata-inglesa (55,9%). Até o final do ano, provavelmente o número de pessoas na zona de insegurança alimentar terá aumentado, assim como é esperado uma piora do quadro de quem já se encontra em uma situação vulnerável. 

O professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e o pesquisador da geografia do trabalho e luta pela terra, Lucas Lima, não tem dúvidas que os trabalhadores serão impactados pela recessão econômica, principalmente nos países periféricos como o Brasil. “Somado ao término do auxílio emergencial, o cenário não é promissor. Ele é terrível. E tudo indica que a situação não vai melhorar em 2021 e o número de desempregados até aumente.” 

No artigo Covid-19 e Ampliação da Fome, Lima enxerga uma consolidação da tendência que se apresenta desde 2014. O pesquisador também considera que a austeridade do governo Jair Bolsonaro e o congelamento de gastos públicos por 20 anos determinados pela Emenda Constitucional n° 95 –  conhecida como teto de gastos -, restringem a ação do estado para socorrer a população. Além das consequências da pandemia, as alterações promovidas pelas reformas Trabalhista e da Previdência retiraram ainda mais a segurança do trabalhador. “Nesse sentido, a situação soa ainda mais dramática, porque além de vivenciar uma pandemia, essa pandemia é vivenciada em um contexto de subtração de direitos”, afirma Lucas Lima. 

O professor caracteriza a lógica mercantil de acesso à alimentação básica como determinante no fracasso da erradicação da fome. A principal conclusão para o pesquisador é que será “impossível acabar com a fome se a gente não acabar com esse sistema alimentar global absolutamente financeirizado e alheio de fato às demandas da fome.”

As políticas públicas de distribuição de renda são fundamentais neste momento para garantir o acesso a serviços básicos e a uma vida digna. O Bolsa Família, maior programa social do governo, atende famílias com renda de até R$189 reais por pessoa. Desde 2012, o Bolsa Família alcança menos casas a cada ano. No ano passado, foram 13,5% dos domicílios brasileiros atendidos frente a 15,9% de lares contemplados no início da série. 

Inclusive, a fila de espera para receber o recurso voltou a existir em 2019 depois de ser zerada em 2017. O ministério da Cidadania não divulga os dados mensalmente e disponibilizou apenas a média de pessoas na fila em 2019 – próximo a 500 mil pessoas. Neste ano, a Folha de S.Paulo conseguiu por meio da Lei de Acesso à Informação o número de pessoas nessa situação em março, junho e setembro. No mês que a Organização Mundial da Saúde classificou o surto de Covid-19 como pandemia, havia 1,7 milhões de famílias na espera do recurso. Após o governo aumentar a verba do programa, a fila encolheu para 433 mil famílias em junho. No fim de setembro, com a redução no valor-base do auxílio – de R$ 600 para R$ 300 –, a fila disparou e chagou ao patamar de 1 milhão de cadastros.  

O pesquisador sobre fome e relações internacionais e professor de gestão pública na pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Thiago Lima, acredita que o acesso ao alimento pode ser promovido com as políticas de transferência de renda. Por outro lado, o professor comenta que é necessário um esforço em diferentes áreas para promover a segurança alimentar e nutricional, que “remete ao direito humano à alimentação, a uma vida saudável, demanda um conjunto mais amplo de políticas sociais”.

Entre as políticas públicas necessárias, Thiago Lima cita alimentação escolar, restaurante populares, medidas de reforma agrária, apoio à produção de povos camponeses, ribeirinhos, quilombolas, reeducação alimentar, políticas da regulação da produção e comércio de alimentos para promover uma dieta mais saudável da população. 

Nas crônicas de Clarice Lispector, a fome surge em mais de uma ocasião como um sentimento intolerável, um incômodo urgente. Mas foi em Daqui a Vinte Cinco Anos que a autora foi mais enfática sobre o assunto. No fim, Clarice faz menção às lideranças políticas.

“Os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do câncer.

Thiago Lima, doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca o trecho e reafirma a importância do engajamento da classe política no assunto. “Se há uma coisa que está claro, do ponto de vista acadêmico, é que a fome no mundo só existe porque ela é politicamente permitida. A solução passa pelo desejo político.”

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