Impactos da segunda onda e fim do auxílio recairão sobre periferias

“As pessoas ainda estão sofrendo as consequências da primeira pandemia. É como se uma estivesse emendada na outra”, diz Bruno Kesseler, presidente da Cufa DF.

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, as periferias foram mais cruelmente atingidas pela situação. Tanto pela geografia e arquitetura, que dificultam o distanciamento social, quanto pelo fato de os moradores exercerem ocupações que de alguma forma os deixaram vulneráveis na situação de emergência. Isso inclui desde pessoas que perderam o ganha-pão, como domésticas ou vendedores autônomos, até trabalhadores que atuam em áreas essenciais que nunca pararam, como supermercados e transporte público. Estes conviveram com o medo de levar a doença para casa.

A chegada da segunda onda de contágio (ou repique da primeira, a depender da análise e do especialista), assim como o fim do auxílio emergencial a partir de janeiro trazem novos desafios à população dessas áreas, que, diante da ineficiência do Estado no auge da crise sanitária, recorreram de maneira intensa à autogestão. São pessoas como a vendedora Joice Nunes Ferreira, de 29 anos.

Mãe de três filhos e moradora da Cidade Estrutural, uma das mais famosas favelas de Brasília, Joice fazia trufas em casa para vender quando a pandemia chegou em março. Ela havia sido demitida do emprego em uma hamburgueria no final de 2019 e os bombons foram a alternativa que encontrou para continuar sustentando a casa. O marido estava em uma situação semelhante.

Com experiência como pasteleiro, há algum tempo não conseguia emprego com carteira assinada. Então, começou a dar aulas de bateria em casa. Com a emergência sanitária, tanto a produção das trufas de Joice quanto as aulas de bateria do marido tiveram de ser suspensas. Segundo ela, o casal passou por enormes dificuldades entre março e junho, antes de conseguir o auxílio emergencial.

“Só foi aprovado em 21 de junho. A gente passou muito apertado. Sobrevivemos de doações, cestas”, conta a vendedora autônoma, que, aos poucos, foi retomando a produção das trufas com a flexibilização das regras sanitárias. “Estou conseguindo vender. Vendo onde dá, pelo celular, saio na rua com meu filho, aceito encomenda”, relata. A situação, no entanto, continua difícil.

Joice Nunes Ferreira é moradora da Cidade Estrutural – Foto: Arquivo Pessoal

O marido ainda não pode retomar suas aulas e a redução no valor do auxílio, de R$ 600 para R$ 300, fez muita diferença, principalmente diante da aceleração da inflação.

“[O valor] não é suficiente, os preços das coisas estão subindo muito. O governo não anunciou nada [sobre prorrogação do auxílio], a gente está na expectativa”, comenta Joice, que, apesar de reconhecer a necessidade no momento, não defende um auxílio permanente.

Na opinião dela, seria preferível o governo federal investir em políticas públicas para gerar empregos. No entanto, ela acha que a transferência de renda deveria continuar pelo menos até a economia se reestruturar. “Tem que prorrogar [o auxílio] até as famílias brasileiras poderem se organizar direitinho. Tem muita gente precisando, assim como eu”, comenta.

Após perder emprego, Joice passou a fazer trufas: “Vendo onde dá” – Foto: Arquivo Pessoal

Políticas perenes para autonomia

Joice exprime o desejo de ter autonomia, uma palavra que cada vez mais se torna central no movimento comunitário brasileiro. A ideia também é defendida por Bruno Kesseler, presidente da Central Única das Favelas (Cufa) no Distrito Federal.

“As favelas no Brasil, como um todo, necessitam de diversos ciclos de incentivos e políticas públicas que não resolvem de imediato mas trarão benefícios a longo prazo. O governo tem sempre que apagar incêndio porque não olha para esses territórios com o carinho e atenção que eles precisam e merecem”, afirma. Segundo ele, a nova onda de contágios cria uma situação dramática.

“As pessoas ainda estão sofrendo de forma muito cruel as consequências da primeira pandemia. É como se uma coisa estivesse emendada na outra, infelizmente. Estão sofrendo com desemprego, dificuldade de retomada e um governo totalmente omisso. Além da dificuldade muito grande de ter acesso a recursos, tratamento, casos todos os dias de pessoas morrendo nas filas dos hospitais”, diz.

Ele recorda também uma verdade implacável sobre a pandemia. “A favela nunca parou. Não tem como. Foi uma questão que a gente conversou muito. As pessoas falam: ‘Fica em casa, fica em casa’. Qual é a visão de casa, de lar que essas pessoas têm? Quem mora em uma favela como a Estrutural a casa é de madeirite, com dois cômodos onde vivem cinco, seis pessoas. As pessoas às vezes se sentem muito mais confortáveis no trabalho do que em casa”, afirma.

Com relação ao auxílio emergencial, Kesseler considera que o benefício termina em um momento ainda de extrema dificuldade para as famílias. De acordo com ele, a Cufa deve continuar com ações como distribuição de cestas básicas e seu próprio programa de transferência de renda. Mas mesmo as doações devem ser mais difíceis, pois as pessoas estão empobrecidas e o custo de vida aumentou.

“Para algumas pessoas [o auxílio emergencial] foi muito importante, ajudou, só que acabou agora e as pessoas vão voltar para a mesma situação ou até pior. Para quem não recebia nem um salário mínimo, famílias com três, quatro pessoas, fez uma diferença muito grande. Mas gás de cozinha, carne, medicamentos, tudo aumentou agora”, comenta.

Pressão sobre o Congresso

Presidente da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam) e membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Getúlio Vargas Júnior também antevê uma situação dramática em 2021, principalmente porque o financiamento das medidas necessárias está indefinido.

“A gente tem feito uma pressão forte pelo debate tanto da LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] quanto da LOA [Lei Orçamentária Anual]. O projeto de lei orçamentária anual não prevê manutenção dos créditos orçamentários para a saúde, nem para o auxílio emergencial, nem para nada”, afirma. Segundo ele, uma das maiores preocupações são os gastos com saúde.

“A maioria das grandes cidades, o índice de ocupação das UTIs hoje é muito parecido com o que era 90 dias atrás. O que nos preocupa mais é que, sem essa previsão orçamentária, quantos leitos vão ser fechados? Os equipamentos de proteção, a própria questão da vacina, se não tiver os créditos extraordinários vão comprar com que recursos? Há muita demanda reprimida do SUS durante a pandemia. Será preciso recuperar todas essas cirurgias, todas as consultas adiadas.”

Segundo ele, como a maior parte da população das periferias depende do SUS, sem o auxílio emergencial e sem a previsão de recursos para a saúde, elas novamente serão as mais afetadas.

“A solidariedade é uma marca do movimento comunitário. A pandemia demonstrou essa característica das comunidades, cotizar cesta básica, fazer mutirão de obras. O problema é que essa rede teve muita força antes do auxílio emergencial. O fato de não ter no início de 2021 nos preocupa muito”, afirma ele, que, como Bruno Kesseler, prevê maior dificuldade para mobilizar ajuda agora. “É claro que as redes vão existir, mas não podem substituir a ação do poder público do Estado. Também terão menos fôlego porque está todo mundo empobrecido”, diz.

O projeto da LDO, que define as prioridades orçamentárias do governo para um determinado ano, pode ser votado na próxima quinta-feira (16), em um esforço concentrado de análise anunciado por Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado e do Congresso Nacional. Ainda não há acordo para votar projeto da LOA, que é o orçamento propriamente dito, e pode ficar para o ano que vem.

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