Walter Sorrentino: 2021 quente

São intensas as mudanças no plano internacional. Não é este o espaço em que se podem analisar com profundidade os fenômenos, apenas resenhá-los.

Milícias trumpistas na invasão do Congresso dos EUA / Foto: Reprodução

Levam em conta a pandemia, a crise econômica, a crise da globalização sob domínio dos EUA, o agravamento da desigualdade e profundas incertezas para as massas trabalhadoras quanto ao futuro. Divisões se evidenciam nas classes hegemônicas quanto às formas de seguir mantendo seu domínio em tal situação, apelando a formas iliberais/autoritárias de governo. Na geopolítica segue um movimento de ofensiva reacionária e a resistência de povos e nações. Caminha-se para novo equilíbrio de forças. Desenvolvem-se novas estratégias, meios e tecnologia de guerras multidimensionais, com armas híbridas e de renovada penetração ou letalidade, tendo por centro, para os EUA, o cerco à China e contenção militar da Rússia.

Esse é o espírito do tempo – o mal estar em meio a uma “pan” crise da ordem mundial. De certo modo, fora assim a década de 1920, auge da anterior globalização, terminada com a grande crise de 1929 e duas sangrentas guerras mundiais. Mas a história não se repete, embora as catástrofes possam ocorrer. Hoje, é resultado do neoliberalismo cuja agenda econômica é senil, correlacionado à crise da globalização e do liberalismo político, em meio a grandes transformações nas forças produtivas, potencialmente emancipadoras do trabalho assalariado. Isso leva à crise das identidades de classe e de suas representações políticas. A pandemia acelerou e aprofundou todas essas tendências.

Caso mais recente e marcante é o dos acontecimentos nos EUA quando seria a proclamação oficial da vitória de Biden. Foi um verdadeiro ataque à democracia e às instituições do país. Isso indica que o ovo da serpente foi chocado. Trump busca manter a regra básica, a de moldar a maneira como os conflitos são entendidos pelas pessoas. Ou seja, controlar a narrativa, que é como se expressa hoje a luta ideológica cruenta. Por isso o apelo aos supremacistas brancos para as manifestações: as eleições teriam sido fraudadas. Dividiu-se até mesmo o establishment norte-americano que em parte, de uma forma ou outra, sustentou a presidência de Trump.

O mais importante é que desvela afinal uma nova realidade no país. A famigerada democracia liberal dos EUA sofre um assédio do qual pode se recuperar, mas nunca como antes: a narrativa da “superioridade” intrínseca da democracia americana foi atingida perante o mundo todo. O ataque perpetrado ao Congresso ocorre no mesmo dia em que se fez recorde o número de mortos pela COVID-19 – quase 3.900! O país está dividido e polarizado, com boa parte do povo armada. Foi enfraquecida a defesa da democracia com a narrativa antissistema, pondo um sinal de igualdade entre ela e o sistema político, que seria o responsável pelo mal estar do mundo e falta de progresso social.

Isso indica que mobilizar o povo em defesa da democracia é mais difícil sem invocar ao mesmo tempo o sentimento de indignação com as injustiças sociais crescentes. Por isso mesmo, nos episódios ocorridos no Capitólio é preciso ver novas forças em movimento organizado, como foram principalmente a dos negros norte-americanos, garantindo a vitória dos democratas (desde as primárias dos Democratas, até mesmo a vitória no Senado pela Geórgia, além, evidentemente, da vitória de Biden). Anteriormente e mesmo agora, o movimentos femininos e da juventude ocuparam protagonismos centrais. É coisa alvissareira, que muda o panorama das lutas sociais naquele país.

Sob nova presidência, os EUA tentarão o retorno ao multilateralismo, mas sem garantias de liderá-lo e sem a mesma correlação de forças. Trump desmontou muito dessa arquitetura – rompendo o Acordo de Paris e do Pacífico, o NAFTA, sua presença na ONU e OMS, entre outros exemplos. Expressivo disso é que cristais se romperam entre EUA e UE, e esta busca maior autonomia por seus interesses próprios. Entretanto, a UE tem que pagar o passivo do Brexit. Mas a Alemanha abre espaço para seus interesses.

O declínio relativo do papel dos EUA no mundo e sua crise interna foram bem aproveitados por quem sabe como defender seus interesses nacionais. A China – bem como diversos países – soube tirar consequências e ocupar espaço, além de manter o dinamismo econômico do eixo asiático. São fatos marcantes de uma época de transição no esquema de forças internacionais a aliança China-Rússia, o aprofundamento da ASEAN, a Iniciativa do Cinturão e da Rota com profundas implicações em toda a Eurásia, África e América Latina. Sem falar na retomada do crescimento da China e evidente supremacia no enfrentamento da COVID-19. O Irã se reposiciona no enfrentamento ao bloqueio dos EUA, a Venezuela fez suas eleições democráticas, a guerra da Síria foi vencida e a armação na Bielo-Rússia não prosperou.

Na América Latina verifica-se uma situação claro-escuro, com fluxos e refluxos das forças populares em disputa por desenvolvimento soberano e justiça social, numa situação ainda de defensiva. A Direita governa o Uruguai, Paraguai, Colômbia e Brasil, este isolado internacionalmente, mas ainda detendo papel decisivo no panorama do Continente. Forças nacionais e populares governam o México e a Argentina, recuperaram o governo na Bolívia, o Chile vem de grande progresso ao vencer o plebiscito por nova Constituinte, lutas progressivas no Equador e instabilidade no Peru. Cuba e Venezuela se seguram e têm avanços políticos, em busca de superar os impasses econômicos próprios de uma situação de bloqueio duradouro, assim como a Nicarágua.

Quanto ao Brasil, é um verdadeiro pária internacional nesta hora. Um país à deriva, com um governo trôpego, sem rumo, um desarranjo de tal monta que custará muito recuperar. À imagem e semelhança de Trump, Bolsonaro desmonta o que gerações de brasileiros constituíram em termos de nação e democracia, sabota o combate à COVID-19 e leva a economia à maior bancarrota de sua história. Fez-se desrespeitado aos olhos de todo o mundo.

Como se vê, 2021 começou com grande impacto. Ainda mais pela conquista das vacinas contra a COVID-19, em meio ao desafio logístico gigantesco de vacinar a população do mundo sem sujeitá-la aos imperativos de mercado. Está aí uma das lutas mais significativas e imediatas da atualidade.

Fonte: Hora do Povo

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