O genocídio de Bolsonaro, por Paulo Kliass

As forças progressistas, o movimento sindical, os partidos de oposição e demais entidades da sociedade civil têm de assumir para si a responsabilidade política de dar um basta ao genocídio de Bolsonaro.

A dureza do título do artigo poderia levar à interpretação equivocada de que se trata de uma provocação barata de algum opositor esquerdista ao presidente da República do Brasil, alguém que não apresentaria nenhum compromisso com o respeito à ordem institucional e aos valores democráticos.

Pois, a verdade é que, mais uma vez, as aparências enganam. A personalidade que terminou por aderir a esse tipo de qualificação ao chefe do Executivo é um dos 11 integrantes da mais alta corte de justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Gilmar Mendes foi nomeado em 2002 para integrar o colegiado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele é bastante conhecido nos meios políticos e jurídicos brasileiros por seu perfil assaz conservador, com decisões judiciais e posições públicas quase sempre alinhadas com os interesses das elites.

No entanto, o inusitado da declaração é exemplar no que se refere a mudanças recentes na relação dos poderosos com o atual governo. Os rumos adotados por Bolsonaro passaram a incomodar também parcela dos setores dominantes, que lhe haviam prestado apoio na disputa eleitoral de 2018. Apesar da concordância explícita com a linha liberal e privatizante do ministro da Economia, tudo indica que os limites entre civilização e barbárie passaram a contar também para o recuo observado em determinados grupos sociais no tocante ao apoio ao governo.

A questão da saúde faz parte desse cardápio amargo de desgosto e desencanto. Desde o início da pandemia, o presidente brasileiro reforçou seu alinhamento automático com a estratégia do seu homólogo norte-americano. Assim, manteve uma postura de subestimação da gravidade da doença, qualificando-a como uma “gripezinha” provocada pelo “vírus chinês”. Seu governo ignorou a explosão do número de casos e de óbitos, apelando de forma irresponsável e demagógica para a necessidade de não adotarmos quaisquer medidas de isolamento e de confinamento.

Os membros de sua equipe buscavam criar no imaginário popular uma contradição entre “salvar a economia” e “combater a pandemia”. Para escapar de ser responsabilizado pelos índices alarmantes de desemprego e recessão, Bolsonaro sempre dizia que sua intenção era colocar a economia em marcha. Mas o Congresso Nacional, os governadores dos estados, os prefeitos dos municípios, os partidos da oposição e os grandes meios de comunicação o impediam de fazê-lo. Essa era a ardilosa estratégia de vitimização também usada por Trump, para tentar se preservar do desgaste inevitável em sua popularidade.

No entanto, ao contrário de Trump, Bolsonaro não recuou em seu negacionismo quando a realidade da pandemia passou a gritar mais alto. Ele continuou aparecendo cotidianamente em locais públicos, estimulando a aglomeração de seus simpatizantes, sem nenhuma medida de proteção, nem mesmo o uso da máscara preventiva. Ao mesmo tempo, lançava declarações sistemáticas desacreditando os especialistas em epidemiologia e as instituições públicas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele oferecia quase todos os dias suas opiniões favoráveis a medicamentos não reconhecidos por elas como adequados para tratamento da Covid 19, a exemplo da hidroxicloroquina. Além disso, obrigou os laboratórios do Exército a fabricarem um volume absurdo de comprimidos dessa droga de eficácia duvidosa, com a formação de um estoque desnecessário e de custo elevado.

A passividade do governo contribuiu sobremaneira para o crescimento exponencial das estatísticas trágicas associadas à pandemia. Esse era o contexto em que se expandia o clima de indignação generalizada reinante ainda em julho do ano passado. Pois foi no dia 11 daquele mês que Gilmar Mendes saiu-se com a mencionada acusação grave. Bolsonaro havia demitido o segundo titular do Ministério da Saúde e mantinha um general da ativa no posto de forma interina. Mais à frente, o general Pazuello viria a ser efetivado no cargo.

Por aqueles dias, o número de mortes causadas pelo coronavírus havia alcançado a marca de 71 mil. Mendes não se conteve e lançou a crítica: “O Exército está se associando a esse genocídio”. Apesar desse e de inúmeros outros alertas de políticos, especialistas e entidades da sociedade civil, o governo não mudou sua postura irresponsável. O quadro crítico se aprofundou e, em menos de um mês, foi atingida a marca trágica de 100 mil óbitos em 8 de agosto.

O mais impressionante é que nada disso parecia abalar a estratégia do presidente. Ele continuou colocando obstáculos ao desenvolvimento de pesquisas para as vacinas e dificultando a adoção de um planejamento efetivo de combate à pandemia. O Brasil sempre contou com instituições de pesquisa com renome internacional e vasta experiência na descoberta e na fabricação de imunizantes. Dentre outros, podem ser mencionados o Instituto Butantã e a Fiocruz. Mas o comportamento de Bolsonaro foi, ao contrário do que se poderia esperar de um chefe de governo minimamente preocupado com seus cidadãos, de criação de maiores dificuldades para a ação de tais instituições.

A explosão descontrolada da pandemia por todo o território nacional expôs o caráter amador da resposta do governo. Ao subestimar a gravidade da doença, Bolsonaro parecia aguardar uma espécie de “solução de mercado” para o seu fim, sem nenhum tipo de ação mais incisiva do poder público em termos de prevenção da mesma. Suas aparições públicas sem proteção estimulavam a população a fazer o mesmo, em claro desrespeito às normas e recomendações das organizações da medicina e da saúde. A subordinação do Ministério da Saúde a tal conduta negacionista completa a cena da tragédia.

Após alguns meses em que as estatísticas diárias haviam se estabilizado em um patamar elevado, a partir de novembro as curvas voltam a ficar preocupantes. O Brasil entra definitivamente na chamada “segunda onda”. As curvas de casos e mortes retomam taxas de aceleração preocupantes. Quando este artigo for publicado, provavelmente já teremos ultrapassado a triste marca das 200 mil vidas perdidas.

Enquanto boa parte dos países do mundo e da América do Sul já começam seus programas de vacinação, Bolsonaro continua criando dificuldades para que tal processo tenha início e êxito no Brasil. Ele não estimula a aprovação dos protocolos das vacinas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a cada novo dia de atraso em tal regulamentação e autorização são mais de mil vítimas fatais a serem adicionadas à contabilidade mórbida do sistema oficial de saúde.

Ora, esse conjunto de fatores talvez ajude a compreender as razões que devem ter levado o ministro do STF à sua fala, à caracterização como sendo um genocídio o comportamento do governo Bolsonaro. No entanto, para além da gravidade do discurso, seria importante que esse alerta se generalizasse também nos dias de hoje, no início do novo ano e da segunda onda. Este é momento em que novas medidas de isolamento e confinamento se fazem mais do que necessárias. Este é o momento em que a continuidade do benefício emergencial extinto pelo governo se faz ainda mais urgente. Este é o momento em que um plano nacional de vacinação se torna prioridade absoluta.

As forças progressistas, o movimento sindical, os partidos de oposição e demais entidades da sociedade civil têm de assumir para si a responsabilidade política de dar um basta ao genocídio de Bolsonaro.

Publicado originalmente no Sinal Aberto

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