Invasão do Capitólio à luz da História: a tradição da extrema direita

Sobre o trumpismo, é urgente considerar que a extrema direita nos Estados Unidos é maior do que o incontrolável presidente. Ela é parte das tradições norte-americanas como o próprio contrato social que agora é questionado por muitos.

Soldados dos EUA estão em frente ao edifício do Capitólio dos EUA (U.S. Army National Guard photo by Sgt. Andrew Walker)
Mary Anne Junqueira – Foto: Acervo pessoal

No dia 6 de janeiro uma multidão tomada por fúria e ressentimento tomou de assalto o Congresso dos Estados Unidos. Tratou-se da maior ocupação do prédio público que se tem notícia. Antes disso, o Capitólio esteve sob fogo cerrado na guerra de 1812 com a Inglaterra. Na época, o país europeu quis restringir a veloz conquista do Oeste por parte dos Estados Unidos e conter o comércio do país, sobretudo com a França, em razão das guerras napoleônicas. Os norte-americanos atearam fogo em Toronto, Canadá, em abril de 1813. A retaliação veio em agosto de 1814, quando Washington foi tomada, e Capitólio, Casa Branca e estaleiros da U. S. Navy incendiados.

Há ainda registros de outros tipos de violência no prédio desde sua construção em 1800, mas o que vimos no dia 6 de janeiro foi inédito, brutal e grotesco: edifício invadido, depredado e conspurcado. Mais: levado a cabo por nacionais. A iniciativa posta em prática pela extrema direita, alguns de última hora mobilizados por Donald Trump e redes sociais, não é boa para os Estados Unidos nem para os que prezam governos pautados por contratos sociais. Já que o país é referência na matéria, apesar dos limites e contradições. O país que garante eleições indiretas e contínuas desde 1789, quando da formação da República representativa, tem convivido muito bem com aspectos não democráticos do país desde então.

Muito se tem falado do presidente que insuflou a invasão, Donald Trump, e do trumpismo. O homem, apesar dos mais de 74 milhões de voto, perdeu muito: a presidência, apoios na Câmara e Senado e o seu lugar entre os republicanos. Partido que tem abrigado a extrema direita e agora se vê frente a dilemas quanto ao seu futuro.

Sobre o trumpismo, é urgente considerar que a extrema direita nos Estados Unidos é maior do que o incontrolável presidente. Ela é parte das tradições norte-americanas como o próprio contrato social que agora é questionado por muitos. Entretanto, essa extrema direita, supremacista branca, que faz uso de táticas militares e iniciativas terroristas, nos remete ao pós Guerra Civil (1861-1865). Período da emergência das sociedades secretas, supremacistas brancas, constituídas no sul derrotado. Entre elas, The Knights of the White CameliaWhite League e a famosa e influente Klu Klux Klan, fundada em 1865. Essas e outras organizações ganharam apoiadores e se ramificaram entre os sulistas.

A Klan atravessou os séculos entre declínios e ressurgimentos, alcançando o século 21. A maioria dessas sociedades secretas foi fundada por ex-oficiais confederados, inconformados e ressentidos com a derrocada do Sul. Acima de tudo, temerosos de que os negros adquirissem direitos políticos. Elas foram centrais para pavimentar o caminho para a segregação racial no Sul que acabou por atingir todo o país.

Muitos dos que invadiram o Capitólio, em 6 de janeiro, ostentavam orgulhosamente a bandeira da Confederação e insígnias da Klan, entre outros símbolos. A bandeira confederada era (e é) distintivo do que se configurou chamar “nacionalismo sulista”. Para se ter ideia dos usos do passado da Confederação: apenas em 2020 — após o supremacista Dylan Roof, em 2015, abrir fogo na igreja de afro-americanos, em Charleston, e da consequente batalha dos monumentos —, os Marines Corps aboliram o uso de símbolos sulistas na arma.

Do mesmo modo que a extrema direita solidamente estabelecida, a existência de congressistas que apoiam supremacistas brancos está ancorada firmemente na História norte-americana. A lista não é pequena, muitos ex-klansmen serviram como deputados, senadores, juízes federais e governadores, nos séculos 19 e 20. Na mesma direção, em 2021, alguns congressistas não esconderam seu apoio a Trump e aos movimentos extremistas. Muitos devem a atual posição aos votos que receberam de apoiadores desse espectro político.

Donald Trump é líder prestigiado dessa extrema direita. Ele deu lugar a ela na política e reforçou a comunicação com grupos extremistas. Entretanto, essa liderança é circunstancial. As indicações são de que ela (a extrema direita), permanecerá, ainda que não saibamos se ganhará mais espaço ou voltará às margens onde esteve, por exemplo, durante a Guerra Fria. Portanto, o trumpismo é circunstancial tanto quanto Donald Trump.

No século 21, a extrema direita que vinha crescendo desde as últimas décadas do 20, irrompeu graças às redes sociais e à Deep web, e não só nos Estados Unidos. Hoje recebe nomes diversos: alt-rightfar-rightextreme right etc. Congrega milícias (como Oath KeepersProud BoysThree Percenters), grupos cristãos diversos (muitos anticatólicos), neo-nazistas, como o Creativity Movement, entre outros. Parte das milícias compara-se aos patriotas do período da Independência do país. Isso explica por que o ano da emancipação, 1776, é clamado por esses grupos. Por exemplo, a loja on-line dos Proud Boys, que reúne apenas homens, a quem Trump pediu prontidão (stand by) quando da eleição em novembro, orgulhosamente chama-se: 1776.shop.com

Ainda que enraizada na tradição, a extrema direita nos Estados Unidos mobiliza símbolos, discursos e iniciativas não apenas da tradição supremacista do país, mas também dos nazistas e fascistas europeus. Mesmo as organizações supremacistas norte-americanas do 19 mobiliza(va)m temas da Europa medieval. Hoje, além de Cruzados e Templários, ostentam mitologia racial nórdica, cujos símbolos foram igualmente expostos na invasão do Capitólio.

Se a extrema direita está solidamente radicada na tradição histórica dos Estados Unidos, o que é atual na invasão do Congresso? Pode-se destacar pelo menos dois aspectos recentes: a própria natureza desse tipo de direita é mais diversificada, de alcance nacional e com vínculos internacionais. Para se ter ideia, em 2019, o site Southern Poverty Law Center que monitora grupos de ódio (antissemitas, anti-imigrantes, supremacistas, misóginos, islamofóbicos etc.) rastreou 940 grupos nos Estados Unidos. Número que certamente cresceu em 2020. Além disso, registrou a existência de 1747 símbolos da Confederação em todo o território nacional, contra os quais moderados e progressistas, entre eles o movimento Black Lives Matter, têm se defrontado nos últimos anos.

O segundo aspecto está relacionado com a mais incontornável iniciativa do presidente e seguidores: não aceitar os resultados da eleição de novembro de 2020. Não é novidade que milicianos e organizações secretas rejeitem o status quo. Mas pelo menos na História recente do país, é a primeira vez que regras do jogo antes acordadas são tão veementemente recusadas. Tal negação, tenta deslocar o democrata Joe Biden para o espaço nebuloso da ilegitimidade, o que pode abrir para situações inusitadas como a que vimos em 6 de janeiro.

Críticas ao sistema são comuns: note-se as feitas ao Colégio Eleitoral, outra tradição norte-americana, responsável por distorções nos pleitos. Entre elas, a de assumir a Casa Branca o candidato que não leva no voto popular.

Tal deturpação, prejudicou, e muito, os democratas no século 21. Al Gore ganhou no voto popular, mas foi George W. Bush que levou em 2000, e o mesmo se deu com Hillary Clinton e Donald Trump, na eleição de 2016. Ainda que Al Gore tenha pedido recontagem dos votos, a Suprema Corte decidiu pelo Colégio Eleitoral. Al Gore e Hillary aceitaram os resultados em nome da manutenção do processo que orienta o país. Confirmar e honrar o sistema sempre foi importante para os políticos e para a maioria dos norte-americanos. Reitera-se que o que se viu nas últimas semanas foi a recusa inusual de um candidato à reeleição — que perdeu no voto popular em 2016 e 2020 — e de seus apoiadores às regras do jogo acordadas e consolidadas.

Não resta dúvida de que o democrata Joe Biden contabiliza importantes vitórias, e ele já responde àqueles que o alçaram ao mais alto posto da nação. Além dos mais de 81 milhões de votos, os democratas conduzirão a Câmara e o Senado, ainda que o último esteja dividido em 50% para cada partido. Ele, com a inestimável ajuda de Stacey Adams, ativista e ex-congressista, ajudou a virar o estado da Georgia aos democratas — num feito inédito — após 28 anos de domínio de republicanos no estado. Ainda assim, a divisão do país é incontestável. Biden herdará o país cindido por rachadura que Trump ajudou a aprofundar. No momento, Trump e a invasão do Congresso ofuscaram a transição e a celebração que deveria ser de Biden. O democrata moderado de 78 anos, de estilo discreto, reservado e avesso a arroubos, certamente terá anos difíceis pela frente.

Mary Anne Junqueira, professora Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH) da USP e do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP

Do Jornal da USP

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