Ângelo Agostini, o pioneiro que inspirou o Dia do Quadrinho Nacional

O autor ítalo-brasileiro criticou o regime imperialista brasileiro, teve papel importante na luta abolicionista e foi um artista fundamental nos primórdios das HQs no Brasil (e no mundo)

uito se discute acerca de quem foi o primeiro a produzir uma história em quadrinhos. Alguns defendem que foi Richard Outcault; outros, Rodolphe Töpffer; e há ainda aqueles que acham possível ter sido o ítalo-brasileiro Angelo Agostini.

Agostini nasceu em Vercelli, região italiana do Piemonte, em 1843. Depois, mudou-se para Paris, onde estudou desenho, concluindo o curso em 1858. Então, vem para o Brasil e se estabelece em São Paulo, aos 16 anos de idade, acompanhando sua mãe – a cantora lírica Raquel Agostini. Antes de chegar à Revista Illustrada, Agostini publicou em vários jornais e revistas em São Paulo, começando por O Diabo Coxo, que também editou. Fez o mesmo ainda em O Cabrião.

Já no Rio de Janeiro, contribui em alguns números do Arlequim em 1867 e segue para a Vida Fluminense, em 1868. É nela que seus desenhos amadurecem e ele publica pela primeira vez a sua obra Nhô Quim ou Impressões de uma viagem à corte, no dia 30 de janeiro de 1869. Essa é considerada nossa primeira história em quadrinhos.

Na sequência, Agostini publica no jornal O Mosquito,entre 1869 e 1875; após sua saída, passa os meses seguintes organizando o lançamento da sua Revista Illustrada, que ocorre em 1876. Agostini contribuiu decisivamente para a imprensa no Segundo Reinado do Império do Brasil. No Rio de Janeiro publicou e editou sua famosa publicação, que carregou o nome do autor até o fim da publicação, mesmo quando ele não desenhava nela há bastante tempo.

Catálogo destaca diversidade do quadrinho no exterior

Revista Illustrada foi o que de mais relevante circulou nesse período no campo das artes gráficas. A ironia de Agostini e o retrato permanente do imperador como expressão máxima da política da época foram as marcas do que o autor produziu. Joaquim Nabuco, figura expressiva do movimento abolicionista e parlamentar no período imperial, chegou a dizer que a Revista Illustrada era a bíblia abolicionista dos que não sabiam ler.

É de se destacar a força da revista como instrumento na campanha abolicionista, que se caracterizou como referencial político e cultural na campanha pelo fim da escravidão, a luta mais importante do período para Agostini. Marco da imprensa no Brasil, a Illustrada foi a publicação satírica de maior destaque em todo o Império.

Também foi publicada na Revista Illustrada a segunda grande obra sequencial do autor. Após Nhô Quim,surge o Zé Caipora, em 27 de janeiro de 1883 – personagem que figura nas páginas da Revista em 24 capítulos, publicados de maneira irregular. Após o sucesso, Agostini decide lançar o Zé Caipora em fascículos, criando o que pode ser considerada a primeira história em quadrinhos com personagem fixo publicada no Brasil. 

HQ publicada na Revista Illustrada. (Reprodução).

Autor prolífico, período barra-pesada

Foram cerca de duas mil páginas durante os doze anos da publicação da Revista Illustrada, em meio a um dos períodos mais conturbados da história brasileira.

Curiosamente, os autores do Império tinham a liberdade de desenhar o que quisessem, pois a Revista Illustrada não tinha nenhum tipo de financiamento governamental. Na verdade, seu sustento se dava com o apoio dos leitores. Chegou a ter o espantoso número de 4 mil assinantes semanais em uma Corte com grande presença de analfabetos, índice até então não alcançado por qualquer jornal da América do Sul. 

A Revista Illustrada não publicava os chamados “pedidos”, não possuía anunciantes até 1889 e sobreviveu ao custo dos leitores e assinantes. Agostini denunciava, por exemplo, o Jornal do Commércio por receber favores oficiais. Crítico do Império do Brasil, principalmente da figura de Dom Pedro II, acabou por aderir à causa abolicionista, enxergando nesta uma forma de minar mais e mais as estruturas de sustentação da monarquia brasileira. Suas charges desmoralizaram a escravidão e os senhores de escravos.

Agostini se junta à causa não por motivos humanitários – ao menos, não a princípio; mas acaba tendo uma participação bastante expressiva na luta pela libertação dos escravos e pela proclamação da República. 

O desenho detalhado de Agostini fez dele o principal artista gráfico brasileiro da segunda metade do século XIX. Chama atenção a forma como deu destaque aos maus tratos que sofriam os escravizados, com imagens fortes e detalhes sobre as condições de trabalho e as punições. Agostini fazia ilustrações elaboradas com esmero de detalhes, que tinham alcance e grande repercussão na Corte e nas províncias. A defesa do fim da escravidão marca sua obra, em especial a partir de 1880. Neste momento, a obra de Agostini atingiu parte da intelectualidade, dos jornalistas e dos parlamentares, chegando até a sensibilizar parte dos proprietários de terra.

No princípio, o foco da Revista Illustrada não se deu propriamente na escravidão. Agostini desenhava de tudo um pouco, levando um tempo razoável para figurar a primeira ilustração que criticou o regime escravocrata em si. Isso só ocorreu em 1880, na capa da edição 222 do 5º ano da publicação. As charges e histórias em quadrinhos colaboraram muito para a tomada de consciência por parte da elite da desumanidade no trato com os negros.

A obra de Agostini desnuda nuances pouco conhecidas e estudadas da História de nosso país. Exemplo disso é o retrato da escravidão de orientais, que antecedeu a dos negros africanos, feita pelo autor em 1878, no 3º ano de publicação da Revista Illustrada. Também pudemos ver o que foi o carnaval no Brasil, as campanhas de saúde pública da época, detalhes do cotidiano da Corte, tudo ricamente retratado no desenho realista do autor.

Marginal, afinal

Angelo Agostini foi posto à margem da corte do Império. Suas publicações incomodavam e desestabilizavam a figura do imperador, principal retrato das ideias em uso na época. Todo o possível foi feito para desacreditar o desenhista e mandá-lo de volta à Europa.

O mais curioso é que isso acontece depois da abolição. Agostini retorna à Europa justo em em um momento que havia passado a elogiar o Imperador e a família real.

Agostini desenhou a revista Illustrada até a edição de número 510, que circulou no dia 18 de agosto de 1888. A própria revista virá a noticiar que ele seguiu para a Europa naquele mesmo ano. Sua saída do Brasil se deu por conta de um relacionamento com uma jovem menor de idade, Abigail de Andrade, com quem teve a filha Angelina, um escândalo à época. Em Paris, Agostini vive a tragédia de perder seu segundo filho, que morre ainda bebê, e logo depois sua mulher. 

 A Revista Illustrada foi a revista mais relevante nas artes gráficas no período do Segundo Reinado. A ironia de Agostini e suas críticas ao Imperador foram suas marcas.

Após sua saída, Luiz Andrade e Pereira Neto passaram a comandar a publicação em todos os seus aspectos, se esforçando para terem grande semelhança com as ilustrações de Agostini.

Agostini então volta ao Brasil e funda a Revista Don Quixote, que seria publicada por quase dez anos (1895-1906), colaborando também com a revista O Tico-Tico, importante publicação do período, onde traz de volta um personagem que o havia marcado: o Zé Caipora. Ainda colaborou na Gazeta de Notícias e na revista O Malho. Nela, ele publica mais 40 capítulos inéditos da saga do Zé Caipora, de 1905 a 1906, encerrando a história no de número 75, com um gancho para uma continuação que nunca viria a acontecer. A obra tem momentos cômicos, uma fase de aventura e outra de romance. O Senado Federal chegou a publicar em 2002 um álbum reunindo as histórias de Nhô Quim e Zé Caipora publicadas entre 1869 a 1883 – uma leitura essencial.

Pioneiro das HQs

Não há como contestar que a página 08 da Revista Illustrada trazia uma ilustração que podemos tranquilamente considerar uma charge de algum acontecimento do período, no geral vinculada a figuras de destaque da corte e das políticas da época.

As páginas centrais, contudo, não são simples de classificar. A sequência de quadros com textos no rodapé não é considerada por todos os pesquisadores da área como sendo necessariamente uma história em quadrinhos. Eu sou daqueles que me arrisco a enquadrá-las na categoria da arte sequencial. Mesmo não tendo balões as entendo como histórias em quadrinhos no seu estágio embrionário. O Menino Amarelo de Outcault também não os possuía – o texto estava contido no camisolão do personagem principal. Ainda assim todos consideram esta uma história em quadrinhos.

Joaquim Nabuco chegou a dizer que a Illustrada era a “bíblia abolicionista dos que não sabiam ler”.

A influência de Agostini ainda é grande no Brasil do século 21. Uma das principais premiações de HQs do Brasil leva o seu nome, o Troféu Angelo Agostini da Associação de Quadrinhistas e Caricaturistas. Mas não só: há pesquisadores que consideram os desenhos publicados por Agostini para O Cabrião como a primeira charge produzida no Brasil. A partir deste material, se deram as bases para o conjunto das charges do século 20 e 21, que são veiculadas em praticamente todos os grandes jornais do país.

Ali está o toque do deboche, ora sutil, ora escrachado, das autoridades constituídas, do poder e da política brasileira, uma tradição inaugurada ainda no Império na crítica ao rei e sua corte, caminho seguido na República pelos mais variados chargistas. Também está no Zé Caipora e em Nhô Quim o traço da retratação do cotidiano do brasileiro, em particular do mais humilde, do cidadão do interior, tudo com muito humor e sarcasmo. 

As minúcias de nossa história têm sido revisitadas por vários autores nacionais nos últimos anos, herdeiros diretos da tradição que busca a compreensão de quem é e como vive o brasileiro, quais as suas contradições, angústias e características – algo que podemos ler hoje nas HQs de Flávio Colin, Marcelo D’ Salete, José Aguiar; mas também nas sátiras do cotidiano feitas por Laerte, Angeli e Glauco, nos tempos da Chiclete com Banana. Tudo tem um toque de Agostini.

Fonte: Revista Grito (o texto foi publicado originalmente na edição impressa da revista Plaf)

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