Suíça da América: Biden pode converter o Uruguai em paraíso financeiro
Uruguai fortalecer o processo de desmonte do Estado de Bem-Estar e das políticas trabalhistas e sociais.
Publicado 05/02/2021 08:46 | Editado 05/02/2021 08:59
A eleição de Biden para a presidência dos Estados Unidos gerou muitas expectativas e balbúrdia pela América Latina. É preciso destacar, de antemão, o componente humanitário na vitória do candidato democrata.
A ampla participação, ainda mais em tempos de pandemia, e a grande votação em Biden demonstram o rechaço de parte significativa do eleitorado estadunidense ao conservadorismo de Trump. Entretanto, a principal novidade da vitória de Joe Biden será o retorno à dinâmica tradicional da política externa estadunidense.
A necessidade de reconstrução da legitimidade dos EUA como líder global, reforçará práticas renovadas, novas roupagens e algumas flexões. Assim, Biden representa o retorno do bloco identificado como “neoliberalismo progressista” (FRASER, 2017) à Casa Branca. Nesse contexto, a América Latina, de maneira geral, sofrerá os impactos e o Uruguai, especificamente, poderá ocupar um papel de destaque, sendo palco de importantes debates na região.
Para Nancy Fraser (2017), filósofa estadunidense, a perspectiva que descreve como neoliberalismo progressista é a expressão de uma aliança real e poderosa de dois companheiros improváveis: por um lado, as principais correntes liberais dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores mais dinâmicos, de alto nível “simbólico” e financeiro da economia dos EUA (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood). (FRASER, 2017, p. 46)
Essa aliança foi gestada ao longo dos governos de Barack Obama e teve sua expressão mais forte com a candidatura de Hillary Clinton, em 2016. Publicamente vinculada às finanças de Wall Street e à indústria da guerra, a candidata democrata apelou ao fato de que seria a primeira mulher presidenta dos EUA.
Esse fenômeno corresponde precisamente à necessidade de recuperar a imagem dos Estados Unidos no mundo, muito desgastada com a agressividade da política de George W. Bush e as guerras no Iraque e Afeganistão.
Com Obama, a política dos EUA ganhou cores especiais. Ganharam protagonismo na política externa estadunidense estratégias conhecidas como lawfare e soft power. Essas ferramentas compõem elementos importantes no que Domenico Losurdo caracterizou como revoluções coloridas ou golpes de novo tipo marcados por continuidades e descontinuidades da política estadunidense.
Assim, sem abrir mão dos velhos instrumentos, passou-se a priorizar a “mudança de regime imposto pela força, mas sem recorrer ao clássico golpe de estado militar” (LOSURDO, 2014). Casos mais evidentes desse método foram os golpes aplicados no Paraguai contra Lugo, no Brasil contra Dilma Rousseff e na retomada das relações diplomáticas com Cuba.
Diferente do porrete, a trama envolve a articulação entre distintos setores da sociedade (econômicos, midiáticos e sociais), tendo a pauta anti-corrupção como carro chefe, com o objetivo de gerar instabilidade social e política. Para o filósofo italiano, derruba-se um governo “como se o movimento fosse oriundo do seu interior, mas organizado e apoiado de fora do país” (LOSURDO, 2014).
Portanto, ao destacar sua disposição em retomar as políticas de Obama, é disso que Biden está falando. Conforme matéria publicada no jornal estadunidense The New York Times, “Los asesores de Biden dicen que buscarán revivir la campaña anticorrupción que a partir de 2014 provocó várias sacudidas políticas en las Américas, pero que se ha visto estancada en los últimos años.” (TIMES, 2020).
Além disso, Biden já declarou que pretende rearticular o bloco de países “democráticos” da região. Ou seja, podemos esperar a rearticulação da Aliança do Pacífico, alternativa encontrada pelos EUA após a derrota da ALCA, e buscar isolar Cuba, Bolívia e Venezuela. México e Argentina não devem ser declarados inimigos publicamente e serão dois países onde o lawfare deverá ser mais frequente.
Por outro lado, o Brasil de Bolsonaro, um dos grandes derrotados desse processo, deverá tornar-se alvo de Biden, que se valerá da polarização com o governo brasileiro como uma continuidade da luta contra Trump. Conjuntamente a isso, deve apoiar a construção de uma candidatura em maior sintonia com o projeto do Partido Democrata para 2022.
Entretanto, o contexto da pandemia e a contraposição a Trump agregam elementos específicos desse cenário. Se Trump é expressão do negacionismo, Biden defende a ciência. Contra o racismo, o machismo e a intolerância do primeiro, o segundo defende as pautas identitárias e políticas sociais. Sobretudo a retomada do Obama Care e a política de aumento do salário mínimo devem ocupar a agenda interna.
Isso tudo confere um verniz progressista ao papel dos EUA ao nível internacional e na sua relação com a América Latina, principalmente. Porém, conforme afirmado anteriormente, diante de uma política atípica impulsionada por Trump, Biden terá o papel de restabelecer a racionalidade e a normalidade na institucionalidade estadunidense. Ou seja, ainda que repaginado e atualizado em sua versão 4.0, teremos nosso imperialismo de volta.
Historicamente, a política externa dos Republicanos dirige maior atenção ao Oriente Médio, enquanto os Democratas olham com maior afinco para a América Latina. Vale lembrar que o golpe de 2016, assim como o de 1964, ocorreram durante governos Democratas: Obama agora, Kennedy antes e contaram com intensa participação dos EUA.
Além disso, a presença de uma mulher, latina, na vice-presidência do país e a centralidade da pauta dos imigrantes nos debates anuncia que o continente latino-americano ocupará um papel importante na política externa dos EUA.
Contudo, se Donald Trump ressuscitou a Doutrina Monroe, Biden revitalizará a Aliança para o Progresso. A matéria do NYT citada anteriormente menciona as considerações da ex-embaixadora dos EUA no Uruguai. Segundo a reportagem, “Julissa Reynoso, exembajadora de Estados Unidos en Uruguay que también asesora a la campaña de Biden en temas de América Latina, dijo que Estados Unidos puede lograr más si lidera con el ejemplo y fomenta el consenso. Eso empieza por retirar la doctrina Monroe” (TIMES, 2020).
Ainda, segundo o jornal, “Biden y su equipo de expertos, que incluye a inmigrantes latinoamericanos, dicen que adoptarán un enfoque más amplio sobre el problema de la inmigración, y para la región en general. También dicen que abordarán la pobreza y la violencia, las causas fundamentales de la migración y la inestabilidad, impulsando la lucha contra la corrupción e invirtiendo en la creación de empleos y la mejora de la gobernanza” (TIMES, 2020).
Investimentos fortíssimos anunciam-se para a região em um contexto em que o Uruguai poderá assumir um papel de destaque.
Biden e o Uruguai
O Uruguai é um país em que a questão internacional possui um relevo importante, seja pelos investimentos externos que necessita, seja pela atividade exportadora que pratica. Além disso, historicamente produziu-se uma imagem do país como a Suíça da América. Esse título se deve à visão de que o Uruguai foi um país surgido a partir da intervenção da Inglaterra para mediar os conflitos entre Brasil e Argentina. Posteriormente, esse título fortaleceu-se a partir dos níveis de desenvolvimento adquiridos pelo país platino, comparáveis aos indicadores dos países desenvolvidos.
Esse foi um elemento forte na vida dos uruguaios sobretudo durante a primeira metade do século 20. A partir da metade da década de 50 o pacto social construído até então deu sinais de esgotamento, porém a imagem do Uruguai como Suíça da América, mediador de conflitos na região segue forte no país.
Penso que o Uruguai deve ganhar a atenção do governo de Biden devido à trajetória histórica construída no país que consolidou uma cultura liberal, republicana e uma forte estrutura de bem-estar social, distintas dos demais países da região. Chile e Colômbia seguirão sendo aliados dos EUA, porém o primeiro conta ainda com uma direita pinochentista muito forte e o segundo segue imerso no ambiente do conflito social e armado que marca o país há 60 anos.
Assim, o Uruguai apresenta-se como um país de instituições sólidas e uma estrutura de funcionamento da máquina pública, construídas ao longo do tempo, que permitiram, por exemplo, um bom controle da disseminação da Covid-19, até o presente momento. Diante disso, o Uruguai aparece como um ator onde as táticas adotadas pelo governo dos EUA, mencionadas ao longo desse texto, encaixam-se muito bem.
Acredito, então, que o cenário permite que Lacalle Pou retome a imagem do Uruguai como Suíça da América. Biden, portanto, representa uma válvula de escape ao presidente uruguaio, que tem de um lado a Argentina, governada pelos peronistas, que possuem relações estreitas com a Frente Ampla. De outro, o Brasil de Bolsonaro e o fortalecimento de posições mais conservadoras na região, que acabaram levando Lacalle Pou mais para a direita. Assim, esse contexto permite que o presidente recém-eleito adote políticas de corte mais liberal, aos moldes dos anos 1990, permitindo investimentos financeiros internacionais, elevando a presença e a influência dos bancos estrangeiros no país. O Uruguai poderia, portanto, tornar-se polo financeiro da América do Sul e fortalecer o processo de desmonte do Estado de Bem-Estar e das políticas trabalhistas e sociais.
Por outro lado, o país pode desempenhar o papel de mediador de conflitos no continente, promovendo seu protagonismo geopolítico regional. Mesmo durante os governos frenteamplistas, o Uruguai foi fortemente assediado a incorporar-se à Aliança do Pacífico. Com Lacalle Pou, a adesão ao bloco dos países alinhados à Washington deve ser considerada dada, a distinção será com relação ao papel que o país jogará neste processo.
Além disso, uma identificação maior com o projeto do Partido Democrata dá condições para que Lacalle Pou crie uma imagem de uma direita liberal renovada, jovem e moderna. Durante os primeiros dias do ano, um dos principais destaques nos meios uruguaios é o porte físico do presidente e como ele surfa nas praias uruguaias.
Quer dizer, há margem para a construção de uma imagem mais arejada ou moderada da direita uruguaia, segundo alguns. Esse elemento abre a possibilidade de Lacalle Pou buscar apoio de parte do eleitorado frenteamplista.
A questão é que, ao contrário disso, Lacalle Pou é o filho de Luis Alberto de Lacalle – ex-presidente do Uruguai. Nada mais oligárquico e tradicional na política da América Latina que um filho herdar o patrimônio político do papai.
E essa característica faz com que Lacalle Pou tenha que lidar com dois problemas: o primeiro será mediar os conflitos no interior de sua própria aliança, que já andam bem acirrados, para não permitir que o bloco imploda. Aí, um conjunto de compromissos que viabilizaram a aliança e a eleição do candidato do Partido Nacional foram firmados. O segundo será a forma como Lacalle Pou dialogará com o agronegócio uruguaio, que possui um peso substancial na economia nacional — o Uruguai tem uma população de 3,5 milhões de habitantes, aproximadamente, e 12 milhões de cabeças de gado.
As relações comerciais com a China, imprescindíveis para a nação sul-americana, exercerão uma forte pressão do outro lado da corda, o que favorecerá posições pragmáticas no comércio exterior do país.
Por fim, no país platino a esquerda não pode ser considerada derrotada. A reação da Frente Ampla na reta final da eleição mostrou uma força pujante que acaba de vencer novamente as eleições para a prefeitura de Montevidéu. A vitória de Carolina Cosse mantém a capital oriental sob condução da Frente Ampla que representa, aproximadamente, 50% da população do país. Este é, portanto, um cenário complexo e os debates estão absolutamente abertos, o que pretendemos aqui foi compartilhar algumas reflexões acerca de tendências que podem impactar na região e no Uruguai.
REFERÊNCIAS
LOSURDO, Domenico. A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra. Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois, 400 p. 2016.
FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Tradução de Paulo S. C. Neves. Política & Sociedade: Revista de Sociologia Política, 17 (40), pp.43-64. 2018.
LONDOÑO, Ernesto. Los planes de Biden para América Latina: combatir la corrupción, el cámbio climático y fomentar las inversiones. Rio de Janeiro, 28 out. 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/es/2020/10/28/espanol/america-latina/joe-biden-politica-exterior.html. Acesso em: 13 jan. 2021.
Publicado orginalmente no Diálogos do Sul