Como o comunismo chinês venceu a “guerra do povo” contra a pandemia
Sob a liderança do Partido Comunista, China mobilizou seu vasto aparato para atingir profundamente o setor privado e a população em geral, derrotar o novo coronavírus e superar a pandemia
Publicado 09/02/2021 09:52 | Editado 09/02/2021 11:45
A ordem veio na noite de 12 de janeiro, dias depois de um novo surto do novo coronavírus ter ocorrido em Hebei, uma província na fronteira com Pequim. O plano do governo chinês era ousado e direto: ele precisava erguer cidades inteiras de moradias pré-fabricadas para deixar as pessoas em quarentena, um projeto que começaria na manhã seguinte.
Parte do trabalho ficou nas mãos de Wei Ye, dono de uma empresa de construção, que construiria e instalaria 1.300 estruturas em terras ocupadas. Tudo – contrato, planos, pedidos de materiais – foi “resolvido em poucas horas”, disse Wei, acrescentando que ele e seus funcionários trabalharam exaustivamente para cumprir o prazo apertado. “Há pressão, com certeza”, afirmou. Mas ele estava “muito honrado” em fazer sua parte.
Desde que o novo coronavírus começou sua marcha pelo mundo, a China fez o que muitos outros países não fariam ou não poderiam fazer: mobilizou seu vasto aparato do Partido Comunista para atingir profundamente o setor privado e a população em geral, no que o líder do país, Xi Jinping, chamou de “guerra do povo” contra a pandemia. E os chineses venceram!
O país agora está colhendo benefícios duradouros que poucos esperavam quando o vírus surgiu pela primeira vez na cidade de Wuhan, no centro da China. O bom resultado tem posicionado bem a China, econômica e diplomaticamente, para se opor aos Estados Unidos e outros países preocupados com sua ascensão aparentemente impossível de conter. A experiência da China serviu como um modelo para outros seguirem.
Enquanto Wuhan inicialmente hesitou, as autoridades agora entram em ação a qualquer sinal de novas infecções, embora às vezes com zelo excessivo. Em Hebei, no mês de janeiro, as autoridades implantaram sua estratégia bem aprimorada para testar milhões e isolar comunidades inteiras. Tudo com o objetivo de fazer com que os casos – de apenas dezenas por dia em uma população de 1,4 bilhão – voltassem a zero.
O governo investiu em projetos de infraestrutura, ao mesmo tempo em que concede empréstimos e benefícios fiscais para apoiar as empresas e evitar demissões relacionadas à pandemia. A China – que teve dificuldades no início do ano passado – é a única grande economia que voltou a um crescimento estável.
Para desenvolver vacinas, o governo ofereceu terrenos, empréstimos e subsídios, a fim de que novas fábricas as produzissem. As aprovações foram aceleradas. Duas vacinas chinesas estão em produção em massa, outras estão a caminho. Embora essas vacinas tenham mostrado taxas de eficácia ligeiramente inferiores às de rivais ocidentais, 24 países já registraram interesse por elas, uma vez que as empresas farmacêuticas prometeram, a pedido de Pequim, distribuí-las mais rapidamente.
Os êxitos da China em cada dimensão da pandemia – médica, diplomática e econômica – reforçaram a convicção de que a o regime foi uma vantagem decisiva que fez falta em outras grandes potências, como os EUA, incapazes de mobilizar rapidamente pessoas e recursos. O Partido Comunista liderou não apenas o governo e as empresas estatais – mas também as empresas privadas e a vida pessoal, priorizando corretamente o bem coletivo sobre os interesses individuais.
Nos últimos dias de 2020, os sete integrantes do Comitê Permanente do Politburo (principal órgão político do país) se reuniram em Pequim para o equivalente a uma avaliação de desempenho anual. A exaltação à liderança do partido foi um consenso. “O mundo atual está passando por uma grande transformação do tipo que não se via há um século”, disse Xi a autoridades em outra reunião em janeiro. “Mas o tempo e a conjuntura estão do nosso lado.”
Um partido mobilizado
Nas últimas semanas, conforme novos casos surgiam, o Gabinete do governo, o Conselho de Estado, emitiu uma diretriz abrangente. “Não pode haver um pingo de negligência sobre o risco de ressurgimento [do vírus]”, disse. Províncias e cidades foram autorizadas a criar centros de comando que operassem 24 horas por dia.
Centros de quarentena foram abertos com o objetivo não só de abrigar pessoas em até 12 horas após um resultado positivo para Covid-19 – mas também para isolar até centenas de contatos próximos para cada caso confirmado. Cidades com até 5 milhões de habitantes devem criar a capacidade de administrar um teste nucleico (NAT) a cada residente em dois dias. Cidades com mais de 5 milhões podem levar de três a cinco dias.
A chave para essa mobilização está na capacidade do partido de explorar sua vasta rede de funcionários, que está presente em todos os departamentos e agências em todas as regiões. O governo pode facilmente redistribuir “voluntários” para novos pontos críticos, incluindo mais de 4 mil profissionais de saúde enviados para Hebei após o novo surto em janeiro. “Um integrante do Partido Comunista vai para a linha de frente do povo”, disse Bai Yan, um estudante universitário de 20 anos que tem ambições de entrar para o partido.
Segundo Zhou Xiaosen, membro do partido em um vilarejo fora de Shijiazhuang, cidade de 11 milhões de habitantes que estava entre aquelas sob lockdown, os designados podem desde ajudar a patrulhar violações ao bloqueio total até dar assistência aos que necessitarem. “Se eles precisarem sair para comprar remédios ou vegetais, faremos isso por eles”, disse.
O governo despertou nos chineses, mais uma vez, um sentimento de patriotismo, dever e abnegação. O rigor é total: mais de 5 mil funcionários locais do partido e do governo foram demitidos no ano passado por não conterem o novo coronavírus sob seu comando. Há pouco incentivo para moderação.
“Muitas medidas pareciam exageradas, mas, para eles, era necessário exagerar”, disse Chen Min, um escritor e ex-editor de um jornal chinês que esteve em Wuhan durante todo o período de lockdown. “Se você não fizesse isso, não produziria resultados.” As medidas em Hebei funcionaram rapidamente. No início de fevereiro, a província registrou seu primeiro dia em um mês sem uma nova infecção pelo novo coronavírus.
Uma economia recuperada
Em muitos países, houve debates intensos a respeito do equilíbrio entre proteger a saúde pública e manter a economia em funcionamento. Mas a China fez as duas coisas. “Coordenamos o progresso no controle da pandemia e no desenvolvimento econômico e social, dando urgência à recuperação da vida e da produção”, disse Xi no ano passado.
Mesmo em Wuhan – onde praticamente tudo foi fechado no ano passado por 76 dias –, grandes indústrias continuaram funcionando, incluindo siderúrgicas e fábricas de semicondutores. Elas repetiram essa estratégia quando surtos menores ocorreram, indo a extremos para ajudar as empresas.
A experiência da China ressaltou o conselho que muitos especialistas sugeriram, mas poucos países seguiram: quanto mais rápido se controlar a pandemia, mais rapidamente a economia poderá se recuperar. Embora a dor econômica tenha sido severa no início da crise, a maioria das empresas fechou por apenas algumas semanas. Poucos contratos foram cancelados. Poucos trabalhadores foram demitidos, em parte porque o governo ofereceu empréstimos e isenção de impostos para ajudar as empresas.
A Zhejiang Huayuan Automotive Parts Co. perdeu apenas 17 dias de produção. Com a ajuda das autoridades regionais, a empresa alugou ônibus para trazer de volta os trabalhadores, que haviam se dispersado para o feriado do Ano-Novo Lunar e não podiam retornar facilmente – grande parte do país estava paralisada pelo lockdown no início da crise.
Os passes do governo permitiam que os ônibus circulassem por postos de controle que restringiam as viagens. Os trabalhadores só podiam ir e vir entre a fábrica e os dormitórios, e tinham suas temperaturas verificadas com frequência. A BYD, um grande cliente, começou a fabricar máscaras e enviar suprimentos para Huayuan. Em pouco tempo, a empresa teve mais pedidos do que podia atender.
Como a própria China, Huayuan se recuperou rapidamente. Em abril, a cidade pediu quase US$ 10 milhões em novos equipamentos para iniciar uma segunda linha de produção altamente automatizada. Agora, planeja adicionar 47 técnicos à sua equipe de 340 trabalhadores especializados.
Antes da pandemia, as multinacionais ignoravam a China para suas operações, em parte manipuladas pela guerra comercial do governo Trump com Pequim. O próprio vírus aumentou os temores sobre a dependência das cadeias de abastecimento chinesas. Mas a crise sanitária global reforçou o domínio chinês, enquanto o restanteo do mundo lutava para permanecer aberto para negócios.
No ano passado, a China ultrapassou inesperadamente os EUA como destino de investimento estrangeiro direto pela primeira vez, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. No mundo todo, os investimentos despencaram 42%, enquanto na China, cresceram 4%.
Uma ferramenta diplomática
Em fevereiro de 2020, enquanto o novo coronavírus devastava Wuhan, um dos maiores fabricantes de vacinas do país, a Sinovac Biotech, não estava em condições para desenvolver uma nova vacina para detê-lo. A empresa não tinha um laboratório de alta segurança para conduzir as pesquisas arriscadas necessárias, não possuía uma fábrica que pudesse produzir as doses, nem recursos para construir uma.
Foi então que o CEO da empresa, Yin Weidong, pediu ajuda ao governo. Em 27 de fevereiro, ele se encontrou com Cai Qi, integrante do Politburo da China, e Chen Jining, prefeito de Pequim e cientista ambiental. Após a reunião, a Sinovac passou a ter tudo de que precisava.
As autoridades deram aos pesquisadores acesso a um dos laboratórios mais seguros do país, disponibilizaram US$ 780 mil e designaram cientistas do governo para ajudar. Abriram também caminho para a construção de uma fábrica em um distrito de Pequim – a cidade doou o terreno. O Banco de Pequim, do qual o município é o principal acionista, ofereceu um empréstimo de US$ 9,2 milhões a juros baixos. Quando a Sinovac precisou de tanques de fermentação que normalmente levam 18 meses para serem importados do exterior, o governo ordenou que outro fabricante trabalhasse 24 horas por dia para produzi-los.
Foi o tipo de abordagem governamental que Xi esboçou em uma reunião do Comitê Permanente do Politburo dois dias depois que Wuhan entrou em lockdown. O órgão incentivou o país a “acelerar o desenvolvimento de medicamentos e vacinas”, e Pequim generosamente despejou recursos.
A CanSino Biologics, uma empresa privada, fez parceria com o Exército de Libertação Popular, trabalhando com pouco descanso para produzir as primeiras doses dos ensaios clínicos até março. A Sinopharm, empresa farmacêutica estatal, obteve financiamento do governo em três dias e meio para construir uma fábrica. Yin, da Sinovac, chamou o projeto de “Operação Coronavírus”, no espírito da guerra do país contra o surto. “Foi apenas sob essas condições exaustivas que nossa fábrica pôde ser posta em produção”, disse ele ao jornal estatal The Beijing News.
Menos de três meses após a reunião de Yin em 27 de fevereiro, a Sinovac criou uma vacina que poderia ser testada em humanos e construiu uma fábrica gigante. Hoje, a empresa está produzindo 400 mil vacinas por dia e espera produzir até 1 bilhão este ano.
O movimento intensivo para vacinar uma nação acabou abrindo uma oportunidade diferente. Com o novo coronavírus amplamente eliminado em casa, a China poderia vender mais de suas vacinas no exterior, como “um bem público global”, conforme prometeu Xi à Assembleia Mundial da Saúde em maio de 2020.
Embora as autoridades mostrem indignação com a premissa, a “diplomacia da vacina” ajudou a fortalecer a posição global da China num momento em que estava sob pressão dos EUA e de outros países. Claro que a eficiência da China em casa não se traduziu em um triunfo fácil no exterior. Ainda assim, muitos países que registraram interesse pelas vacinas chinesas – caso do Brasil – reconheceram que não podiam esperar meses por aquelas produzidas por americanos ou europeus.
Com informações do The New York Times, via Estadão