Olimpíada: Chefe renuncia após falas sexistas; Jogos estão em risco

Crescem as dúvidas sobre a viabilidade de manter o evento em 2021 diante do segundo avanço da pandemia pelo mundo

Yoshiro Mori, presidente do Comitê Organizador dos Jogos de Tóquio, renunciou ao cargo

Após ser adiada em um ano devido à pandemia de Covid-19, a Olimpíada-2020 – que tem Tóquio como cidade-sede e era cotada para ser uma das melhores na história, está em risco. Nesta sexta-feira (12), o presidente do Comitê Organizador dos Jogos, Yoshiro Mori, renunciou ao cargo por conta de uma série de deploráveis comentários sexistas feitos em uma reunião na última semana. Não bastasse essa baixa, crescem as dúvidas sobre a viabilidade de manter o evento em 2021 diante do segundo avanço da pandemia pelo mundo.

“Minha declaração provocou muito caos. Desejo renunciar como presidente a partir de hoje”, disse o execurito japonês de 83 anos durante um encontro de conselheiros e diretores executivos das Olimpíadas. “Vou renunciar ao cargo de presidente do comitê”, confirmou.

Em 3 de fevereiro, Mori detonou a crise ao criticar a proposta para ampliar a participação das mulheres na gestão executiva do evento esportivo. Segundo ele, as mulheres “têm dificuldades e são problemáticas” porque “falam excessivamente”. A seu ver, era preciso “limitar” o tempo de fala delas porque, do contrário, isso seria “irritante”.

No dia seguinte, o ex-premiê japonês pediu desculpas por suas palavras “pouco oportunas” e disse que gostaria de “retirar tudo que disse”. O então presidente do Comitê Organizador ainda afirmou que entende que sua fala vai contra o “espírito dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos”.

No entanto, era tarde demais. Mais de 5 mil voluntários entraram em contato com os gestores do evento para criticar a fala e cerca de 500 desistiram de atuar nos Jogos. Além disso, líderes políticas de Tóquio e de outras partes do Japão se negaram a se reunir com Mori em sinal de protesto.

Ainda não há indicação de substituto para chefiar o Comitê, mas a mídia japonesa cita que entre os candidatos estão o ex-presidente da Associação de Futebol do Japão Saburo Kawabuchi e a ministra para as Olimpíada, Seiko Hashimoto. O maior evento esportivo do mundo está agendado para os dias 23 de julho a 8 de agosto.

Ainda há, porém, muitas dúvidas se a Olimpíada vai de fato ocorrer. Com a explosão de casos de Covid-19 em escala mundial, aumentou a pressão pelo cancelamento ou segundo adiamento dos Jogos. O discurso oficial continua sendo o de que o evento está mantido. O Comitê Olímpico Internacional (COI) não pretende abrir mão dos contratos de televisão, estimados entre US$ 2 bilhões e US$ 3 bilhões, que representam cerca de 75% de suas receitas.

Presidente do COI, o alemão Thomas Bach é advogado e sabe que também terá dificuldades para receber a cobertura do seguro se assumir a responsabilidade de desistir da Olimpíada. A companhia de seguros pode não reconhecer a pandemia como desastre natural e se recusar a cobrir os prejuízos, como aconteceu nos Estados Unidos, onde os clubes da liga profissional de beisebol acreditavam estar protegidos das perdas causadas pelo novo coronavírus e agora processam as seguradoras.

Como a pandemia não dá sinais de trégua, também é muito improvável que o governo nacional do Japão não tenha um plano de emergência para o caso de surtos da doença inviabilizarem os Jogos, mesmo durante as competições. Mas as autoridades evitam confirmar a existência de qualquer projeto nesse sentido porque poderia resultar numa enxurrada de processos jurídicos contra o país por danos sofridos com um cancelamento de Tóquio-2020.

É da responsabilidade de um eventual fracasso da Olimpíada que os políticos japoneses tentam se manter distantes, também por causa das eleições gerais para o Parlamento. A escolha do primeiro-ministro precisa ocorrer até a segunda quinzena de outubro, logo após a Paraolimpíada, que termina em 5 de setembro. Isso explica por que autoridades japonesas tentam dividir o ônus de uma eventual desistência, seja por um parecer da Organização Mundial da Saúde (OMS) orientando a não realização dos Jogos, seja por uma interferência da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo cancelamento.

As incertezas acenderam o estopim de descontentamento da população com a Olimpíada – e os bastidores da política local pegaram fogo em janeiro. O ministro da Reforma Administrativa, Taro Kono, um dos favoritos a assumir o comando do Japão nas próximas eleições, tomou a dianteira e foi o primeiro membro do governo a dizer que o cancelamento não poderia ser descartado. O primeiro-ministro Yoshihide Suga só reconhece a possibilidade de adiamento para este ano.

Kono deixou a impressão de que lavava as mãos no caso de fracasso da organização dos Jogos. Se era essa mesma ou não sua intenção, o premier Suga, na dúvida, decidiu logo na sequência nomeá-lo chefe da campanha de vacinação contra a Covid-19. Agora, seu trabalho está umbilicalmente ligado ao sucesso do evento e, consequentemente, ao posto de primeiro-ministro, que tanto deseja.

A situação incômoda saiu das fronteiras japonesas e invadiu o cenário internacional após o jornal inglês The Times publicar reportagem, com base numa “fonte anônima”, dizendo que o governo japonês estaria planejando o cancelamento dos Jogos e tentando, em troca, assegurar a realização em 2032, após os Jogos em Los Angeles.

A onda especulativa permitiu que políticos de Osaka, por exemplo, se aproveitassem para propor a Olimpíada japonesa em 2024, no lugar de Paris, que estaria enfrentando dificuldades para avançar nas obras por causa da pandemia. Nesse caso, os Jogos na capital francesa iriam para 2028 e os de Los Angeles, para 2032. Esse calendário cairia perfeitamente para Osaka, que organiza a Expo 2025.

Porém, pressionados pelo COI, o governo japonês e os comitês que organizam os Jogos de Tóquio se uniram para desmentir as informações do The Times. Na França, os organizadores de Paris-2024 reconheceram que os trabalhos estavam atrasados, mas nada que impedisse a realização da Olimpíada na data prevista.

A pressão sobre os comitês organizadores aumentou e resultou no lançamento às pressas, em 3 de fevereiro, de um manual de conduta para conter a proliferação da Covid-19 durante os Jogos. O material será revisado com versão final prevista para junho. Trata-se de um apanhado das diretrizes que já estavam sendo divulgadas, como autoconfinamento por duas semanas no país de origem da viagem, testes de covid-19 antes do embarque para o Japão e periódicos em território japonês, uso de aplicativo de celular para controle de sintomas da doença e orientação para que espectadores apenas aplaudam, e não gritem.

Uma vez no Japão, o guia recomenda aos integrantes de delegações somente os deslocamentos necessários, como a centros de treinamento, e desaconselha o uso de transporte público. Existe a possibilidade de incluir o descredenciamento dos atletas que cometerem infrações graves.

As normas têm como base os exemplos considerados bem-sucedidos, como a competição de ginástica Amizade e Solidariedade, que reuniu 30 atletas do Japão, da Rússia, China e dos Estados Unidos, em novembro passado. Os organizadores criaram uma espécie de “bolha” para os participantes. As delegações foram separadas no hotel por andar, com elevadores próprios.

O Japão não é um país acostumado a improvisos, e o adiamento da Tóquio 2020 em meio à pandemia é um teste duríssimo para a organização japonesa. Há a certeza de que Tóquio-2020 será a Olimpíada de verão mais cara de todos os tempos. Com orçamento oficial de US$ 15,5 bilhões, resultará em prejuízo bilionário ao país.

Instituições financeiras e centros de estudos apresentam estimativas diferentes. No caso de cancelamento, a corretora Nikko Securities projeta perdas de US$ 75 bilhões, incluindo consumo de turistas e divulgação de novas tecnologias. Já um estudo da Universidade de Kansai, em Osaka, prevê prejuízo de US$ 42 bilhões. A realização em meio à pandemia seguraria o saldo negativo abaixo do patamar de US$ 10 bilhões.

Esses levantamentos são imprecisos porque ainda há muitas dúvidas em relação à forma como os Jogos acontecerão. Não se sabe, por exemplo, quantos ingressos serão postos à venda. A bilheteria de cerca de US$ 860 milhões era dinheiro dado como certo e ainda está no orçamento. Existe a certeza de um rombo com a queda das vendas de ingressos, mas não se sabe de quanto, nem como será coberto. Estuda-se permitir a presença de metade da capacidade de público de cada local.

Os efeitos do adiamento dos Jogos para este ano já afetaram a bilheteria. Até dezembro, o COI registrou pedidos de reembolso de aproximadamente 81 mil ingressos de pessoas que desistiram ou não poderão ir aos locais das provas nas datas remarcadas. Isso representa 18% dos 4,45 milhões de bilhetes vendidos antes da pandemia.

Outra questão em aberto é a assistência médica nas cidades que receberão delegações de 182 países para o período de pré-temporada. As associações de médicos e enfermeiros acreditam em dificuldades para atender 513 localidades, em diferentes idiomas. Há também o risco de concentração de pessoas na Vila Olímpica. Voluntários estariam desistindo de trabalhar nos apartamentos e restaurantes que serão frequentados por pessoas que podem levar o novo coronavírus de várias partes do mundo.

A capacidade de 18 mil leitos nos Jogos Olímpicos e 8 mil nos Paralímpicos deverá ser reduzida. Delegações também poderão ser alojadas em hotéis na região da baía de Tóquio, que se encontram com baixa ocupação por causa da pandemia. A Vila Olímpica, aliás, já virou alvo de disputa na Justiça. Famílias que compraram apartamentos reclamam que terão de esperar um ano para receber o imóvel.

Os que não desejam a realização da Olimpíada neste ano cobram uma posição sobre o cancelamento ou adiamento até 25 de março, quando começa o revezamento da tocha olímpica, em Fukushima, cidade afetada por terremoto e tsunami que destruiu uma usina de energia nuclear na costa leste do país há uma década. Um novo adiamento já foi descartado pelo COI por causa dos gastos administrativos. Reorganizar os Jogos para este ano custará cerca de US$ 2,9 bilhões, entre salário de funcionários, aluguel dos 43 locais para as provas e medidas contra a proliferação do coronavírus.

Para conter os críticos, o governo central programou um calendário para que os casos de covid-19 caiam a níveis aceitáveis e influenciem o apoio da população. O estado de emergência anunciado por um mês, em janeiro, foi estendido até 7 de março. Assim, o total de infectados, que atingiu pico de quase 8 mil casos na primeira semana do ano e recuou para um patamar abaixo de 1,5 mil, deve cair ainda mais nos próximos dias.

Pesquisa divulgada no mês passado pela agência de notícias Kyodo indicou que 80,1% dos japoneses não querem a Olimpíada em 2021: um novo adiamento é defendido por 44,8%, e 35,3% são a favor do cancelamento. Em comparação com o levantamento dos Jogos de Tóquio em 1964, os números não são tão ruins. Naquele ano, faltando apenas dois meses para o evento esportivo, somente 2,2% acreditavam na importância dos Jogos. Cerca de 60% achavam que os investimentos deveriam ter outra destinação.

O primeiro-ministro Suga, que assumiu o governo em setembro com aprovação de 73%, conta agora com o apoio de apenas 33%, segundo levantamento do jornal Mainichi realizado na primeira quinzena de janeiro. O índice de desaprovação atingiu 57%, e 10% não souberam se posicionar.

Com informações da Ansa e do Valor