Com vacinas “minguando”, maior colapso “em cem anos” é inevitável

O infectologista Marcos Boulos criticou a falta de interesse do governo Bolsonaro em comprar vacinas contra a covid-19. “Provavelmente, em uma semana, teremos o caos no atendimento médico por falta de UTIs”

Em vários estados, ambulâncias não param de chegar com novos pacientes para UTIs de cidades maiores que já estão lotando. Foto: Pedro Guerreiro / Ag. Pará

“A nossa geração e a dos nossos pais não sofreram uma situação tão grave quanto essa em saúde pública. O principal evento em cem anos com um ônus enorme exacerbado por uma falta de liderança.” Foi assim que o infectologista Marcos Boulos resumiu, ao portal Vermelho, a situação atual da pandemia no Brasil, em meio a acusações na imprensa de que o governo Bolsonaro recusou a compra de vacinas, quando estas lhe foram oferecidas.

O governo brasileiro rejeitou no ano passado proposta da farmacêutica Pfizer que previa 70 milhões de doses de vacinas até junho deste ano. Do total, 3 milhões estavam previstos até fevereiro, ou o equivalente a cerca de 20% das doses já distribuídas no país até agora. O Instituto Butantan também lembrou que fez a oferta recusada de vacinas em julho, o que acabou atrasando a compra de insumos para fabricação. O calendário com quatro propostas da Pfizer ao governo brasileiro, desde agosto, foi obtido pela reportagem da Folha de S. Paulo.

Balanço da vacinação contra Covid-19 desta segunda-feira (8) aponta que apenas 8.497.929 de pessoas receberam a primeira dose de vacina contra a Covid-19, segundo dados obtidos pelo consórcio da imprensa. O número representa 4,01% da população brasileira.

A segunda dose foi aplicada em 2.848.847 pessoas (1,35% da população do país) em todos os estados e no Distrito Federal. No total, 11.346.776 doses foram aplicadas em todo o país. O ritmo de vacinação é considerado lento, se levar em conta que a vacinação da gripe costuma vacinar um milhão de pessoas por dia, enquanto a campanha atual começou em 17 de janeiro e já dura 50 dias.

O médico consultor do governo do Estado de São Paulo lembra que a pandemia foi “muito mal cuidada, desde o inicio”. “Faltou liderança central que pudesse coordenar como fio condutor o que os estados deveriam fazer. Quais as condutas a serem tomadas, protocolos, protocolos assistenciais, momento de internção, momento de ir para UTI, as condutas dentro da Uti, e, fundamentalmente, o que fazer, como fazer, adquirir vacinas e aplicar vacinas”, pontuou. Não houve nada disso e ficamos à mercê do acaso, diz ele. Cada estado faz o que quiser.

Infectologista fala com exclusividade ao portal Vermelho

As vacinas que deviam ser adquiridas antes de serem lançadas, observa Boulos, “não aconteceu”. “Somos um país que saiu atrás em todas as compras”. O anúncio feito pelo Ministério da Saúde, nesta última semana, de que pretende comprar doses da vacina da empresa norte-americana, ocorreu quase sete meses após a primeira oferta apresentada, que previa que as primeiras entregas fossem feitas ainda em dezembro de 2020.

“Quando a Pfizer e o Butantan ofereceram a vacina, o governo federal não se sensibilizou com a necessidade que a população tinha”, lamentou o médico. A bancada do PCdoB está entrando com mandado de segurança coletivo no STF para obrigar Bolsonaro e o minisstro Pazuello a comprarem todas as vacinas que estejam autorizadas ou registradas na Anvisa ou nas agências reguladoras da China-EUA-Japão-União Europeia.

Sem aprovação do governo, uma nova proposta da Pfizer foi apresentada em 11 de novembro. Com o passar do tempo, governos de outros países foram tomando o lugar do Brasil, e as primeiras doses ficariam para janeiro e fevereiro —2 milhões de unidades. Dessa vez, o contrato ficou em vias de ser assinado, segundo pessoas envolvidas nas negociações disseram ao jornal Folha de S. Paulo.

A vacina chinesa

“A única coisa, foi que ficamos esperando as vacinas que estavam produzindo no Brasil, tanto a do Butantan, como a da Fiocruz”, lembrou. A Coronavac, fabricada em parceira entre o Instituto Butantan e o laboratório Sinovac, da China, só foi possível devido à iniciativa do governo paulista, que enfrentou os ataques do presidente Bolsonaro contra a “vacina chinesa”.

Em 7 de dezembro, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou o plano para iniciar a vacinação em São Paulo no dia 25 de janeiro com as doses da Coronavac. Bolsonaro, então, ensaiou reação na tentativa de contrapor o adversário político.

Dias depois, o Ministério da Saúde chegou a anunciar um memorando de intenção para obter doses da Pfizer, mas a assinatura do contrato foi brecada pelo governo por causa das cláusulas contratuais envolvidas na negociação. A partir daí, pressionado por não ter fechado o acordo, o governo passou a fazer críticas públicas à empresa. Agora, membros do ministério tentam negociar com a empresa entregas a partir de maio.

A Pfizer não foi a única a ter propostas rejeitadas. Documentos mostram que outros laboratórios também tiveram ofertas que previam entregas mais cedo ignoradas, a exemplo do Instituto Butantan, que hoje é responsável por pelo menos 78% das vacinas já distribuídas no país contra a Covid.

Além disso, embora o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, tenha afirmado recentemente que encontrou dificuldade em negociações com o consórcio Covax Facility, da Organização Mundial de Saúde, pessoas ligadas às conversas apontam que foi da pasta a decisão de adquirir doses para apenas 10% da população por meio da iniciativa.

Nesta semana, diante do agravamento da crise e do aumento da pressão de governadores, o Ministério da Saúde Saúde anunciou que prepara contratos com Pfizer, Janssen e Moderna para obter 151 milhões de doses entre maio e dezembro de 2021. Mais uma vez, isto ocorre após o anúncio de intenções do governo de São Paulo de comprar vacinas desses laboratórios.

O infectologista está bastante pessimista em relação à situação da pandemia no Brasil, nas próximas semanas. Como a curva epidemiológica quebra recordes todos os dias, em patamares “extremamente elevados”, “provavelmente, em uma semana, teremos o caos no atendimento médico por falta de UTIs, com as pessoas morrendo por falta de leitos”. Boulos está ciente de que esta situação já é realidade em algumas localidades e acredita que não deve demorar a chegar a São Paulo.

“As vacinas estão minguando. Estão vindo poucas vacinas, principalmente as do Butantan, enquanto as da Fiocruz estão sofrendo atrasos. E não adquirimos vacinas necessárias para completar. Nunca houve uma situação tão dramática como estamos tendo”, reafirmou o médico, que observou várias pandemias desde o período da ditadura militar.

Numa lista de 123 países, o Brasil é 61o. no ranking de população mais vacinada com apenas 5%, segundo a plataforma Our World In Data.
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